O secretário-executivo da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco), Carlos Silva, defendeu tese de doutoramento em saúde pública na Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) intitulada Promoção da saúde na escola: modelos teóricos e desafios da interesetorialidade no município do Rio de Janeiro. Com formação básica na área de pediatria, aproximou-se da saúde coletiva através das questões que envolvem a saúde de crianças e adolescentes nas escolas de ensino fundamental. Entender os processos de saúde e adoecimento desse público no contexto da instituição de ensino sempre foi desafiante para construção de programas de saúde na escola que privilegiassem a constituição de cidadãos críticos e com o controle de suas condições de saúde e de vida. Como coordenador do Programa de Saúde Escolar da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, de 1992 a 2009, conviveu com o desafio de empreender colaboração intersetorial entre os setores da Saúde e o da Educação. Confira a seguir a entrevista sobre a tese, que teve orientação da pesquisadora do Departamento de Ciências Sociais da Ensp/Fiocruz Regina Bodstein.
Porque o seu interesse pelo tema "saúde na escola"?
Carlos Silva: Surgiu a partir da prática pediátrica pelo desejo de olhar a criança para além dos aspectos clínicos e biológicos. O ingresso na escola marca mudanças na vida das crianças e desse novo núcleo de convivência ela traz ao setor saúde questões fora do escopo biológico do adoecimento como, por exemplo, queixas relativas ao mau desempenho escolar e/ou problemas relativos à aprendizagem. Embora decorrentes de questões políticas e pedagógicas, os serviços de saúde se apropriaram das tentativas de responder e o fizeram de forma equivocada e fundamentalmente, através da medicalização. Os programas de saúde escolar conduzem essas práticas com base nos referenciais teóricos que determinam diferentes modelos e assim, permitem ou não, mudanças e transformações no pensar e agir dos serviços de educação e de saúde; e claro, dos próprios escolares e seus familiares.
Qual foi o objetivo da pesquisa?
Silva: Ao partir da minha experiência de coordenador do Programa de Saúde Escolar da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, quis explorar para além do papel de gestor, como se dava o desenvolvimento de programas de saúde escolar e as suas repercussões na saúde da comunidade escolar. Assim, os principais objetivos foram: identificar os principais modelos de saúde escolar e referenciais teóricos que subsidiam suas práticas no contexto brasileiro, desde a década de 20 (do modelo higienista até os mais recentes que tem por base a promoção da saúde, particularmente o da iniciativa Escolas Promotoras da Saúde); analisar a trajetória do programa de saúde na escola no município do Rio de Janeiro, no período de 2000 a 2009, caracterizando as principais teorias e dimensões do programa nas diferentes etapas do seu desenvolvimento; e dimensionar a institucionalização do programa e Saúde na Escola no Rio de Janeiro tendo por base os princípios da promoção da saúde e da intersetorialidade.
A convivência no lócus da ação como gestor do programa exigiu um exercício cuidadoso como observador e avaliador na sistematização do desenvolvimento e evolução do programa trazendo a tona o desejo de compreender e compartilhar essa história de dez anos da saúde na escola no município do Rio de Janeiro, com base na produção do conhecimento científico.
Qual a metodologia adotada?
Silva: O caminho metodológico vem da literatura sobre avaliação em promoção da saúde que questiona os processos e impactos dos programas tradicionais de saúde pública. Esta literatura mostra a importância da busca de teorias e valores que mobilizam e desenvolvem os programas, bem como a de identificar mecanismos e estratégias que explicam as mudanças pretendidas, como elas se processam e quais são: formação de vínculos, a mobilização e articulação de atores em uma rede social, técnica e intersetorial, voltada para uma dinâmica reflexiva em torno de uma visão ampliada de saúde. A avaliação em promoção da saúde visa compreender a coerência das ações e processos em relação aos valores e modelos teóricos que impulsionam programas e ações, bem como os principais mecanismos que respondem pelos efeitos e mudanças gerados.
Para identificar os modelos de saúde escolar, realizei um levantamento das principais publicações marcos e documentos legais que constituem e fundamentam o desenvolvimento histórico da saúde escolar no Brasil, em particular no Rio de Janeiro por ter sido a capital do país e local dos primeiros serviços de saúde voltados para a educação. Para explorar e avaliar o desenvolvimento de programas de saúde escolar no município do Rio de Janeiro, no período de 2000 a 2009, foi preciso recompor sua trajetória através de documentos, publicações, relatórios e os diferentes planos avaliativos do programa implementado ao longo desse período, em suas diferentes etapas.
A análise foi possível graças à categorização de etapas distintas do programa de saúde escolar no município do Rio de Janeiro, dada pela compreensão das bases conceituais e teóricas que em cada dessas etapas justificavam as ações e estratégias intersetoriais desencadeadas, considerando, sobretudo, os distintos contextos em que se desenvolveram. Ter construído figuras esquemáticas que representavam cada etapa, listando os principais mecanismos utilizados, as possíveis inter-relações construídas e os segmentos e setores envolvidos ajudou na análise e compreensão dos processos nos seus diferentes períodos e assim, no programa como um todo.
Existe algum condicionante para investir na abordagem avaliativa em promoção da saúde?
Silva: Para investir neste tipo de abordagem foi necessário ir além da aplicação de métodos e técnicas que habitualmente estão focalizadas no comprimento de determinada meta, objetivo ou problema a ser resolvido pelo programa. Ou seja, foi preciso buscar compreender o programa como um todo; e não reduzir a compreensão de suas etapas, ao somatório de partes; ao contrário entender que cada uma delas num dado momento e contexto, representam o próprio Programa. Foi necessária a identificação de modelos e teorias que sustentam suas estratégias, e que são (re)traduzidas pelos atores com capacidade de acionar mecanismos e processos que mobilizam o programa. Nesse sentido, mais importante do que resultados finais, foi a identificação de processos que implicam no desenvolvimento de vínculos entre os atores e na construção de diálogo e escuta que geram confiabilidade e inter-relações que se estabelecem entre eles e com as diferentes instituições envolvidas na dinâmica da vida cotidiana nos territórios.
No que se refere à perspectiva, qual a base do estudo?
Silva: As mudanças ocorridas nas práticas de saúde na escola durante o período do estudo decorreram da agregação de novos atores e saberes que a cada momento ajudavam a redefinir as estratégias intersetoriais propostas pelo programa. Dessa forma, este estudo teve como base a perspectiva de avaliação em promoção da saúde cujo mecanismo básico, de acordo com Potvin, vem da expansão da rede sócio-técnica do programa, explorando suas relações e negociações em situações de conflito e de controvérsias que, por sua vez, geram novos focos e ações intersetoriais vitais para os desdobramentos e para a sustentabilidade do programa.
Quais os produtos da tese?
Silva: Creio que dois deles foram: a matriz dos diferentes modelos teóricos de saúde na escola e a matriz das principais dimensões do programa de saúde na escola no município do Rio de Janeiro. Além disso, o estudo apontou avanços no processo de colaboração intersetorial no programa municipal tomando por base os referenciais de Burris, Hancok e colaboradores; identificação relevante de ações e intervenções de descentralização da gestão; aproximação mais compartilhada na articulação de setores como a saúde, a educação e a assistência social no âmbito central e regional da gestão municipal; capacidade de negociação da esfera municipal com as outras esferas de governo; estímulos a exercícios de escuta que favoreceram a participação dos sujeitos e das comunidades na constituição do programa; identificação de práticas metodológicas com dinâmicas participativas; e de tendência à constituição de cultura avaliativa com criação de estruturas favoráveis de apoio e incentivo à avaliação.
Publicado em 14/1/2011.
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