sábado, 5 de novembro de 2011

Entre les murs



APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO INTELECTUAL NA IDADE ESCOLAR

L. S. Vygotsky

As teorias mais importantes referentes à relação entre desenvolvimento e aprendizagem na criança podem agrupar-se esquematicamente em três categorias fundamentais, que examinaremos separadamente para definir claramente os seus conceitos básicos.
O primeiro tipo de soluções propostas, parte do suposto da independência do processo de desenvolvimento e do processo de aprendizagem. Segundo estas teorias, a aprendizagem é um processo puramente exterior, paralelo em certa medida ao processo de desenvolvimento da criança, mas que não participa ativamente neste e não o modifica em absoluto: a aprendizagem utiliza os resultados do desenvolvimento, em vez de se adiantar ao seu curso e de mudar a sua direção. Um típico exemplo desta teoria é a concepção – extremamente completa e interessante – de Piaget, que estuda o desenvolvimento do pensamento da criança de forma completamente independente do processo de aprendizagem.
Um fato surpreendente, e até hoje desprezado, é que as investigações sobre o desenvolvimento do pensamento no estudante costumam partir justamente do princípio fundamental desta teoria, ou seja, de que este processo de desenvolvimento é independente daquele que a criança aprende realmente na escola. A capacidade de raciocínio e a inteligência da criança, as suas idéias sobre o que a rodeia, as suas interpretações das causas físicas, o seu domínio das formas lógicas do pensamento e da lógica abstrata são considerados pelos eruditos como processos autônomos que não são influenciados de modo algum pela aprendizagem escolar.
Para Piaget, trata-se de uma questão de método, e não de uma questão referente às técnicas que se devem usar para estudar o desenvolvimento mental da criança. O seu método consiste em atribuir tarefas que não apenas são completamente alheias à atividade escolar, mas que excluem também toda a possibilidade de a criança ser capaz de dar a resposta exata. Um exemplo típico que ilustra os aspectos positivos e negativos deste método são as perguntas utilizadas por Piaget nas entrevistas clínicas com as crianças. Quando se pergunta a uma criança de cinco anos porque não cai o sol, não só evidente que não pode conhecer a resposta certa, ou seria um gênio, mas também não poderia imaginar uma resposta que se aproximasse da correta. Na realidade, a finalidade de perguntas tão inacessíveis é precisamente excluir a possibilidade de recorrer as experiências ou conhecimentos precedentes, ou seja, a de obrigar o espírito da criança a trabalhar sobre problemas completamente novos e inacessíveis, para poder estudar as tendências do seu pensamento de uma forma pura, absolutamente independente dos seus conhecimentos, da sua experiência e da sua cultura.
É claro que esta teoria implica uma completa independência do processo de desenvolvimento e do de aprendizagem, e chega até a postular uma nítida separação de ambos os processos no tempo. O desenvolvimento deve atingir uma determinada etapa, com a conseqüente maturação de determinadas funções, antes de a escola fazer adquirir à criança determinados conhecimentos e hábitos. O curso do desenvolvimento precede sempre o da aprendizagem. A aprendizagem segue sempre o desenvolvimento. Semelhante concepção não permite sequer colocar o problema do papel que podem desempenhar no desenvolvimento a aprendizagem e a maturação das funções ativadas no curso da aprendizagem. O desenvolvimento e a maturação destas funções representam um suposto, e não um resultado da aprendizagem. A aprendizagem é uma superestrutura do desenvolvimento, e essencialmente não existem intercâmbios entre os dois momentos.
A segunda categoria de soluções propostas para o problema das relações entre aprendizagem e desenvolvimento afirma, pelo contrário, que a aprendizagem é desenvolvimento. Trata-se, como se vê, de uma tese inteiramente oposta à anterior. Esta fórmula expressa a substância deste grupo de teorias, apesar de cada uma delas partir de premissas diferentes.
À primeira vista, esta teoria pode parecer mais avançada do que a precedente (baseada na nítida separação dos dois processos), já que atribui à aprendizagem um valor de primeiro piano no desenvolvimento da criança. Mas um exame mais profundo deste segundo grupo de soluções demonstra que, apesar das suas aparentes contradições, os dois pontos de vista têm em comum muitos conceitos fundamentais e na realidade assemelham-se muito.
Segundo James, "a educação pode ser definida como a organização de hábitos de comportamento e de inclinações para a ação". Também o desenvolvimento se vê reduzido a uma simples acumulação de reações. Toda a reação adquirida ' – diz James – é quase sempre uma forma mais completa da reação inata que determinado objeto tendia inicialmente para suscitar, ou então é um substituto desta reação inata. Segundo James, este é um princípio em que se baseiam todos os processos de aquisição, ou seja, de desenvolvimento, e que orienta toda a atividade do docente. Para James, o indivíduo é simplesmente um conjunto vivo de hábitos.
Para entender melhor este tipo de teoria é preciso ter em conta que ele considera as leis do desenvolvimento como leis naturais que o ensino deve ter em conta, exatamente como a tecnologia deve ter presentes as leis da física; o ensino não pode mudar estas leis, do mesmo modo que a tecnologia não pode mudar as leis gerais da natureza.
Apesar das numerosas semelhanças entre esta teoria e a precedente, há uma diferença essencial que diz respeito às relações temporais entre o processo de aprendizagem e o de desenvolvimento. Como vimos, os adeptos da primeira teoria afirmam que o curso de desenvolvimento precede o da aprendizagem, que a maturação precede a aprendizagem, que o processo educativo pode apenas limitar-se a seguir a formação mental. A segunda teoria considera, em contrapartida, que existe um desenvolvimento paralelo dos dois processos, de modo que a cada etapa da aprendizagem corresponda uma etapa do desenvolvimento. O desenvolvimento está para a aprendizagem como a sombra para o objeto que a projeta. Também esta comparação não é exata, porque esta segunda teoria parte de uma total identificação entre desenvolvimento e aprendizagem e, portanto, levada ao extremo, não os diferencia em absoluto'. O desenvolvimento e a aprendizagem sobrepõem-se constantemente, como duas figuras geométricas perfeitamente iguais. O problema de saber qual é o processo que precede e qual é o que segue carece de significado para esta teoria. O seu princípio fundamental é a simultaneidade, a sincronização entre os dois processos.
O terceiro grupo de teorias tenta conciliar os extremos dos dois primeiros pontos de vista, fazendo com que coexistam. Por um lado, o processo de desenvolvimento está concebido como um processo independente do de aprendizagem, mas por outro lado esta mesma aprendizagem – no decurso da qual a criança adquire toda uma nova série de formas de comportamento – considera-se coincidente com o desenvolvimento. Isto implica uma teoria dualista do desenvolvimento. Um claro exemplo constitui a teoria de Koffka, segundo a qual o desenvolvimento mental da criança se caracteriza por dois processos que, ainda que conexos, são de natureza diferente e condicionam-se reciprocamente. Por um lado está a maturação, que depende diretamente do desenvolvimento do sistema nervoso, e por outro a aprendizagem que, segundo Koffka, é em si mesma o processo de desenvolvimento.
A novidade desta teoria pode resumir-se em três pontos. Antes de tudo, como dissemos, conciliam-se nela dois pontos de vista anteriormente considerados contraditórios; os dois pontos de vista não se excluem mutuamente, mas têm muito em comum. Em segundo lugar, considera-se a questão da interdependência, quer dizer a tese segundo a qual o desenvolvimento é produto da interação de dois processos fundamentais. É certo que o caráter desta interação não aparece com clareza nas publicações de Koffka, onde apenas se encontram observações gerais sobre a existência de uma conexão entre estes dois processos; mas estas observações sugerem que o processo de maturação prepara e possibilita um determinado processo de aprendizagem, enquanto o processo de aprendizagem estimula, por assim dizer, o processo de maturação e o faz avançar até certo grau.
Por último, o terceiro aspecto novo – e também o mais importante desta teoria – consiste numa ampliação do papel da aprendizagem no desenvolvimento da criança. Este aspecto especial deve ser examinado com mais atenção. Remete-nos diretamente a um velho problema pedagógico, hoje menos atual, chamado tradicionalmente o problema da disciplina formal. Como se sabe, o conceito de disciplina formal, que encontra a sua expressão mais clara no sistema de Herbart, liga-se à idéia de que cada matéria ensinada tem uma concreta importância no desenvolvimento mental geral da criança, e que as diversas matérias diferem no valor que representam para este desenvolvimento geral.
Se se aceita este ponto de vista, a escola terá que ensinar matérias tais como as línguas clássicas, a história antiga, as matemáticas, pelo fato de que contêm uma disciplina de grande valor para o desenvolvimento mental geral, e isso prescindindo do seu valor real. Como se sabe, a concepção da disciplina formai provocou uma orientação muito conservadora na práxis educativa. Justamente como reação contra esta concepção surgiu o segundo grupo de teorias que examinamos, as quais pretendem devolver à aprendizagem o seu significado autônomo, em vez de o considerar simplesmente como um meio para o desenvolvimento da criança, ou seja, como se o exercício e a disciplina formal fossem necessários para o desenvolvimento das aptidões mentais.
O fracasso da teoria da disciplina formal foi demonstrado em diversas investigações que revelaram que a aprendizagem em determinado campo tem uma influência mínima sobre o desenvolvimento geral. Por exemplo, Woodworth e Thorndike demonstraram que os adultos, depois de determinado período de exercício, podem de linhas breves, mas que é difícil que isso aumente a sua capacidade de avaliação quando as linhas são maiores. Outros adultos, que aprendem a definir com exatidão a área de determinada figura geométrica, enganam-se depois mais de dois terços das vezes quando muda a figura geométrica. Gilbert, Fracker e Martin demonstraram que aprender a reagir rapidamente perante determinado tipo de sinal influi pouquíssimo sobre a capacidade de reagir rapidamente perante outro tipo de sinal.
Muitos estudos deste tipo conduziram a resultados idênticos, demonstrando que a aprendizagem de uma forma particular de atividade tem muito pouco a ver com outras formas de atividade, ainda que estas sejam muito semelhantes à primeira. Como afirma Thorndike, o grau em que determinada reação, demonstrada todos os dias pelos estudantes, desenvolve as suas faculdades mentais de conjunto dependeria do significado educativo geral das disciplinas ensinadas ou, em poucas palavras, da disciplina formal.
A resposta que os psicólogos ou os pedagogos puramente teóricos costumam dar é que cada aquisição particular, cada forma específica de desenvolvimento, aumenta direta e uniformemente as capacidades gerais. O docente deve pensar e agir na base da teoria de que o espírito é um conjunto de capacidades – capacidade de observação, atenção, memória, raciocínio, etc. – e que cada melhoramento de qualquer destas capacidades significa o melhoramento de todas as capacidades em geral. Segundo esta teoria, concentrar a capacidade de atenção na gramática latina significa melhorar a capacidade de atenção sobre qualquer outro tema. A idéia é que as palavras "precisão", "vivacidade", "raciocínio", "memória", "observação", "atenção", "concentração", etc., significam faculdades reais e fundamentais que mudam segundo o material sobre que trabalham, que as mudanças persistem quando estas faculdades se aplicam a outros campos, e que portanto, se um homem aprende a fazer bem determinada coisa, em virtude de uma misteriosa conexão, conseguirá fazer bem outras coisas que carecem de todo o nexo com a primeira. As faculdades intelectuais atuariam independentemente da matéria sobre a qual operam e o desenvolvimento de uma destas faculdades levaria necessariamente ao desenvolvimento das outras.
Thorndike opôs-se a esta concepção baseando-se nas inumeráveis investigações que demonstram que ela é insustentável. Sublinhou a dependência das diversas formas de atividade a respeito do material específico sobre o qual se desenvolve a atividade. O desenvolvimento de uma faculdade particular raramente origina um análogo desenvolvimento das outras. Um exame mais profundo demonstra – afirma – que a especialização das capacidades é maior do que parece à primeira vista. Por exemplo, se entre uma centena de indivíduos se escolherem dez especialmente hábeis em reconhecer erros ortográficos ou na avaliação de um comprimento, estes dez não demonstram análoga aptidão para avaliar corretamente o peso de um objeto. Nem tampouco a velocidade e a precisão ao fazer somas são acompanhadas por uma velocidade e uma precisão análogas, quando se trata de encontrar os contrários de determinada série de vocábulos.
Estes estudos demonstram que o intelecto não é precisamente a reunião de determinado número de capacidades gerais – observação, atenção, memória, juízo, etc. – mas sim a soma de muitas capacidades diferentes, cada uma das quais, em certa medida, é independente das outras e portanto tem de ser desenvolvida independentemente mediante um exercício adequado. A tarefa do docente consiste em desenvolver não uma única capacidade de pensar, mas muitas capacidades particulares de pensar em campos diferentes; não em reforçar a nossa capacidade geral de prestar atenção, mas em desenvolver diferentes faculdades de concentrar a atenção sobre diferentes matérias.
Os métodos que permitem que a aprendizagem especializada influa sobre o desenvolvimento geral funcionam apenas porque existem elementos comuns, materiais e processos comuns. Somos governados pelos hábitos. Daqui resulta que desenvolver o intelecto significa desenvolver muitas capacidades específicas e independentes e formar muitos hábitos específicos, já que a atividade de cada capacidade depende do material sobre o qual essa capacidade opera. O aperfeiçoamento de uma função ou de uma atividade específica do intelecto influi sobre o desenvolvimento das outras funções e atividades só quando estas têm elementos comuns.
Como já dissemos, o terceiro grupo de teorias examinadas opõe-se a esta concepção. As teorias baseadas na psicologia estruturai hoje dominante – que afirma que o processo de aprendizagem nunca pode atuar apenas para formar hábitos, mas que compreende uma atividade de natureza intelectual que permite a transferência de princípios estruturais implícitos na execução de uma tarefa para uma série de tarefas diversas – afirmam que a influência da aprendizagem nunca é específica. Ao aprender qualquer operação particular, o aluno adquire a capacidade de constituir certa estrutura, independentemente da variação da matéria com que trabalha e independentemente dos diferentes elementos que constituem essa estrutura.
Esta teoria considera, portanto, um momento novo e essencial, um novo modo de enfrentar o problema da disciplina formal. Koffka adota a velha fórmula segundo a qual a aprendizagem é desenvolvimento, mas ao mesmo tempo não considera a aprendizagem como um puro e simples processo de aquisição de capacidades e hábitos específicos e não considera que aprendizagem e desenvolvimento sejam processos idênticos; postula, pelo contrário, uma interação mais completa. Se, para Thorndike, aprendizagem e desenvolvimento se sobrepõem permanentemente, como duas figuras geométricas que estejam uma sobre a outra, para Koffka o desenvolvimento continua referindo-se a um âmbito mais amplo do que a aprendizagem. A relação entre ambos os processos pode representar-se esquematicamente por meio de dois círculos concêntricos; o mais pequeno representa o processo de aprendizagem e o maior, o do desenvolvimento, que se estende para além da aprendizagem.
A criança aprende a realizar uma operação de determinado gênero, mas ao mesmo tempo apodera-se de um princípio estrutural cuja esfera de ampliação é maior do que a da operação de partida. Por conseguinte, ao dar um passo em frente no campo da aprendizagem, a criança dá dois no campo do desenvolvimento; e por isso aprendizagem e desenvolvimento não são coincidentes.
Dado que as três teorias que examinamos interpretam de maneira tão diferente as relações entre aprendizagem e desenvolvimento, deixemo-las de lado e procuremos uma nova e melhor solução para o problema. Tornemos como ponto de partida o fato de que a aprendizagem da criança começa muito antes da aprendizagem escolar. A aprendizagem escolar nunca parte do zero. Toda a aprendizagem da criança na escola tem uma pré-história. Por exemplo, a criança começa a estudar aritmética, mas já muito antes de ir à escola adquiriu determinada experiência referente à quantidade, encontrou já várias operações de divisão e adição, complexas e simples; portanto a criança teve uma pré-escola de aritmética, e o psicólogo que ignorasse este fato estaria cego.
Um exame atento demonstra que esta aritmética pré-escolar é extremamente complexa, que a criança já passou por uma aprendizagem aritmética própria muito antes de se entregar na escola à aprendizagem da aritmética. Mas a existência desta pré-história da aprendizagem escolar não implica uma direta continuidade entre as duas etapas do desenvolvimento aritmético da criança.
O curso da aprendizagem escolar da criança não é continuação direta do desenvolvimento pré-escolar em todos os campos; o curso da aprendizagem pré-escolar pode ser desviado, de determinada maneira, e a aprendizagem escolar pode também tomar uma direção contrária. Mas tanto se a escola continua a pré-escola como se a impugna, não podemos negar que a aprendizagem escolar nunca começa no vácuo, mas é precedida sempre de uma etapa perfeitamente definida de desenvolvimento, alcançado pela criança antes de entrar para a escola.
Os argumentos de investigadores como Stumpf e Koffka, que pretendem eliminar o salto entre a aprendizagem na escola e a aprendizagem na idade pré-escolar, parecem-nos extremamente convincentes. Pode demonstrar-se facilmente que a aprendizagem não começa na idade escolar. Koffka, ao explicar ao doente as leis de aprendizagem infantil e a sua relação com o desenvolvimento psicointelectual da criança, concentra toda a sua atenção nos processos mais simples e primitivos de aprendizagem que aparecem precisamente na idade pré-escolar. Mas ainda que saliente a semelhança entre aprendizagem escolar e pré-escolar, não consegue identificar as diferenças existentes nem distinguir o que é especialmente novo na aprendizagem escolar; tem tendência, na seqüência de Stumpf, para considerar que a única diferença entre os dois processos reside no fato de que o primeiro não é sistemático, enquanto o segundo é uma aprendizagem sistemática por parte da criança. Não é apenas uma questão de sistematicidade; a aprendizagem escolar dá algo de completamente novo ao curso do desenvolvimento da criança. Mas estes autores têm razão quando chamam a atenção para o fato, até agora desprezado, de que a aprendizagem se produz antes da idade escolar. Acaso a criança não aprende a língua dos adultos? Ao fazer perguntas e receber respostas, não adquire um conjunto de noções e informações dadas pelos adultos? Através do adestramento que recebe dos adultos, aceitando a sua condução nas suas ações, a própria criança adquire determinada gama de hábitos.
Pela sua importância este processo de aprendizagem, que se produz antes que a criança entre na escola, difere de modo essencial do domínio de noções que se adquirem durante o ensino escolar. Todavia, quando a criança, com as suas perguntas, consegue apoderar-se dos nomes dos objetos que a rodeiam, já está inserida numa etapa específica de aprendizagem. Aprendizagem e desenvolvimento não entram em contato pela primeira vez na idade escolar, portanto, mas estão ligados entre si desde os primeiros dias de vida da criança.
O problema que se nos apresenta é, por isso, duplamente complexo, e divide-se em dois problemas separados. Antes de mais nada, devemos compreender a relação entre aprendizagem e desenvolvimento em geral e depois as características especificas desta inter-relação na idade escolar.
Podemos começar com o segundo problema, dado que nos ajuda a esclarecer o primeiro. Para o resolver, teremos que levar em consideração os resultados de algumas investigações que, em nossa opinião, são de importância básica e que permitiram o desenvolvimento de uma nova teoria, fundamental para a solução carreta dos problemas examinados: a teoria da área de desenvolvimento potencial.
É uma comprovação empírica, freqüentemente verificada e indiscutível, que a aprendizagem deve ser coerente com o nível de desenvolvimento da criança. Não é necessário, em absoluto, proceder a provas para demonstrar que só em determinada idade se pode começar a ensinar a gramática, que só em determinada idade o aluno é capaz de aprender álgebra. Portanto, podemos tomar tranqüilamente como ponto de partida o fato fundamental e incontroverso de que existe uma relação entre determinado nível de desenvolvimento e a capacidade potencial de aprendizagem.
Todavia, recentemente a atenção concentrou-se no fato de que quando se pretende definir a efetiva relação entre processo de desenvolvimento e capacidade potencial de aprendizagem, não podemos limitar-nos a um único nível de desenvolvimento. Tem de se determinar pelo menos dois níveis de desenvolvimento de uma criança, já que, senão, não se conseguirá encontrar a relação entre desenvolvimento e capacidade potencial de aprendizagem em cada caso específico. Ao primeiro destes níveis chamamos nível do desenvolvimento efetivo da criança. Entendemos por isso o nível de desenvolvimento das funções psicointelectuais da criança que se conseguiu como resultado de um específico processo de desenvolvimento, já realizado.
Quando se estabelece a idade mental da criança com o auxilio de testes, referimo-nos sempre ao nível de desenvolvimento efetivo. Mas um simples controle demonstra que este nível de desenvolvimento efetivo não indica completamente o estado de desenvolvimento da criança. Suponhamos que submetemos a um teste duas crianças, e que estabelecemos para ambas uma idade mental de sete anos. Mas quando submetemos as crianças a provas posteriores, sobressaem diferenças substanciais entre elas. Com o auxílio de perguntas-guia, exemplos e demonstrações, uma criança resolve facilmente os testes, superando em dois anos o seu nível de desenvolvimento efetivo, enquanto a outra criança resolve testes que apenas superam em meio ano o seu nível de desenvolvimento efetivo. Neste momento, entram diretamente em jogo os conceitos fundamentais necessários para avaliar o âmbito de desenvolvimento potencial. Isto, por sua vez, está ligado a uma reavaliação do problema da imitação na psicologia contemporânea.
O ponto de vista tradicional dá como certo que a única indicação possível do grau de desenvolvimento psicointelectual da criança é a sua atividade independente, e não a imitação, entendida de qualquer maneira. Todos os atuais métodos de medição refletem esta concepção. As únicas provas tomadas em consideração para indicar o desenvolvimento psicointelectual são as que a criança supera por si só, sem ajuda dos outros e sem perguntas-guia ou demonstrações.
Várias investigações demonstraram que este ponto de vista é insustentável. Experiências realizadas com animais mostraram que um animal pode imitar ações que entram no campo da sua efetiva capacidade potencial. 1sto significa que um animal pode imitar apenas ações que, de uma maneira ou de outra, se lhe tornam acessíveis; de modo que, como demonstraram as investigações de Kohler, a capacidade potencial de imitação do animal dificilmente supera os limites da sua capacidade potencial de ação. Se um animal é capaz de imitar uma ação intelectual, isso significa que, em determinadas condições, é capaz de realizar uma ação análoga na sua atividade independente. Por isso, a imitação está extremamente ligada à capacidade de compreensão e só é possível no âmbito das ações acessíveis à compreensão do animal.
A diferença substancial no caso da criança é que esta pode imitar um grande número de ações – senão um número ilimitado – que superam os limites da sua capacidade atual. Com o auxílio da imitação na atividade coletiva guiada pelos adultos, a criança pode fazer muito mais do que com a sua capacidade de compreensão cie modo independente. A diferença entre o nível das tarefas realizáveis com o auxílio dos adultos e o nível das tarefas que podem desenvolver-se com uma atividade independente define a área de desenvolvimento potencial da criança.
Voltemos por um momento ao exemplo dado antes. Estamos perante duas crianças com uma idade mental de sete anos, mas uma, com um pouco de auxílio, pode superar testes até um nível mental de nove anos e a outra apenas até um nível mental de sete anos e meio. O desenvolvimento mental destas crianças é equivalente? A sua atividade independente é equivalente, mas, sob o ponto de vista das futuras potencialidades de desenvolvimento, as duas crianças são radicalmente diferentes. O que uma criança é capaz de fazer com o auxílio dos adultos chama-se zona do seu desenvolvimento potencial. Isto significa que com o auxílio deste método podemos medir não só o processo de desenvolvimento até ao momento presente e os processos de maturação que já se produziram, mas também os processos que estão ocorrendo ainda, que só agora estão amadurecendo e desenvolvendo-se.
O que a criança pode fazer hoje com o auxílio dos adultos, poderá fazê-lo amanhã por si só. A área de desenvolvimento potencial permite-nos, pois, determinar os futuros passos da criança e a dinâmica do seu desenvolvimento, e examinar não só o que o desenvolvimento já produziu, mas também o que produzirá no processo de maturação. As duas crianças que tornamos como exemplo demonstram uma idade mental equivalente a respeito do desenvolvimento já realizado, mas a dinâmica do seu desenvolvimento é inteiramente diferente. Portanto, o estado do desenvolvimento mental da criança só pode ser determinado referindo-se pelo menos a dois níveis: o nível de desenvolvimento efetivo e a área de desenvolvimento potencial.
Este fato, que em si mesmo pode parecer pouco significativo, tem na realidade enorme importância e põe em dúvida todas as teorias sobre a relação entre processos de aprendizagem e desenvolvimento na criança. Em especial, altera a tradicional concepção da orientação pedagógica desejável, uma vez diagnosticado o desenvolvimento. Até agora, a questão tinha se apresentado do seguinte modo: com o auxílio dos testes pretendemos determinar o nível de desenvolvimento psicointelectual da criança, que o educador deve considerar como um limite não superável pela criança. Precisamente, este modo de apresentar o problema contém a idéia de que o ensino deve orientar-se baseando-se no desenvolvimento já produzido, na etapa já superada.
A parte negativa deste ponto de vista foi reconhecida na prática muito antes de se ter compreendido claramente na teoria; pode demonstrar-se em relação ao ensino ministrado às crianças mentalmente atrasadas. Como se sabe, a investigação estabeleceu que estas crianças têm pouca capacidade de pensamento abstrato. Portanto, os docentes das escolas especiais, ao adotarem o que parecia uma orientação carreta, decidiram limitar todo o seu ensino aos meios visuais. Depois de muitas experiências, esta orientação resultou profundamente insatisfatória. Provou-se que um sistema de ensino baseado exclusivamente em meios visuais, e que excluísse tudo quando respeita ao pensamento abstrato, não só não ajuda a criança a superar uma capacidade natural, mas na realidade consolida tal incapacidade, dado que ao insistir sobre o pensamento visual elimina os germes do pensamento abstrato nestas crianças. A criança atrasada, abandonada a si mesma, não pode atingir nenhuma forma evolucionada de pensamento abstrato; e precisamente por isso a tarefa concreta da escola consiste em fazer todos os esforços para encaminhar a criança nesta direção, para desenvolver o que lhe falta. Nos atuais métodos das escolas especiais pode se observar uma benéfica mudança a respeito do passado, que se caracterizava por um emprego exclusivo de meios visuais no ensino. Acentuar os aspectos visuais é necessário, e não acarreta nenhum risco se se considerar apenas como etapa do desenvolvimento do pensamento abstrato, como meio e não como um fim em si.
Considerações análogas são igualmente válidas para o desenvolvimento da criança normal. Um ensino orientado até uma etapa de desenvolvimento já realizado é ineficaz sob o ponto de vista do desenvolvimento geral da criança, não é capaz de dirigir o processo de desenvolvimento, mas vai atrás dele. A teoria do âmbito do desenvolvimento potencial origina uma fórmula que contradiz exatamente a orientação tradicional: o único bom ensino é o que se adianta ao desenvolvimento.
Sabemos por uma grande quantidade de investigações – a que apenas podemos aludir por falta de espaço – que o desenvolvimento das funções psicointelectuais superiores na criança, dessas funções especificamente humanas formadas no decurso da história do gênero humano, é um processo absolutamente único. De outro modo formulamos a lei fundamental deste desenvolvimento da seguinte maneira: Todas as funções psicointelectuais superiores aparecem duas vezes no decurso do desenvolvimento da criança: a primeira vez nas atividades coletivas, nas atividades sociais, ou seja, como funções interpsíquicas; a segunda, nas atividades individuais, como propriedades internas do pensamento da criança, ou seja, como funções intrapsíquicas.
O desenvolvimento da linguagem serve como paradigma de todo o problema examinado. A linguagem origina-se em primeiro lugar como meio de comunicação entre a criança e as pessoas que a rodeiam. Só depois, convertido em linguagem interna, se transforma em função mental interna que fornece os meios fundamentais ao pensamento da criança. As investigações de Bolduina, Rignano e Piaget demonstraram que a necessidade de verificar o pensamento nasce pela primeira vez quando há uma discussão entre crianças, e só depois disso o pensamento se apresenta na criança como atividade interna, cuja característica é o fato de a criança começar a conhecer e a verificar os fundamento do seu próprio pensamento. Cremos facilmente na palavra – diz Piaget – mas só no processo de comunicação surge a possibilidade de verificar e confirmar o pensamento.
Como a linguagem interior e o pensamento nascem do complexo de inter-relações entre a criança e as pessoas que a rodeiam, assim estas inter-relações são também a origem dos processos volitivos da criança. No seu último trabalho, Piaget demonstrou que a cooperação favorece o desenvolvimento do sentido moral na criança. Investigações precedentes estabeleceram que a capacidade da criança para controlar o seu próprio comportamento surge antes de tudo no jogo coletivo, e que só depois se desenvolve como força interna o controle voluntário do comportamento.
Os exemplos diferentes que apresentamos aqui indicam um esquema de regulação geral no desenvolvimento das funções psico-intelectuais superiores na infância, que, sob nosso ponto de vista, se referem ao processo de aprendizagem da criança no seu conjunto. Assim, não é necessário sublinhar que a característica essencial da aprendizagem é que engendra a área de desenvolvimento potencial, ou seja, que faz nascer, estimula e ativa na criança um grupo de processos internos de desenvolvimento dentro do âmbito das inter-relações com outros, que na continuação são absorvidos pelo curso interior de desenvolvimento e se convertem em aquisições internas da criança.
Considerada sob este ponto de vista, a aprendizagem não é em si mesma desenvolvimento, mas uma correta organização da aprendizagem da criança conduz ao desenvolvimento mental, ativa todo um grupo de processos de desenvolvimento, e esta ativação não poderia produzir-se sem a aprendizagem. Por isso, a aprendizagem é um momento intrinsecamente necessário e universal para que se desenvolvam na criança essas características humanas não naturais, mas formadas historicamente.
Tal como um filho de surdos-mudos, que não ouve falar à sua volta, continua mudo apesar de todos os requisitos inatos precisos para o desenvolvimento da linguagem, e não desenvolve as funções mentais superiores ligadas à linguagem, assim todo o processo de aprendizagem é uma fonte de desenvolvimento que ativa numerosos processos, que não poderiam desenvolver-se por si mesmos sem a aprendizagem.
O papel da aprendizagem como fonte de desenvolvimento – zona de desenvolvimento potencial – pode ilustrar-se ainda mais comparando os processos de aprendizagem da criança e do adulto. Até agora se atribuiu pouco relevo às diferenças entre a aprendizagem da criança e do adulto. Os adultos, como bem se sabe, dispõem de uma grande capacidade de aprendizagem. recentes investigações experimentais contradizem a afirmação de James de que os adultos não podem adquirir conceitos novos depois dos vinte e cinco anos. Mas até agora não se descreveu adequadamente o que diferencia de forma substancial a aprendizagem do adulto da aprendizagem da criança.
À luz das teorias de Thorndike, James e outros, a que se aludiu antes – teorias que reduzem o processo de aprendizagem à formação de hábitos – não pode haver diferença essencial entre a aprendizagem do adulto e a da criança. A afirmação é superficial. Segundo esta concepção, um mesmo mecanismo caracteriza a formação de hábitos tanto no adulto como na criança; no primeiro, o processo ocorre mais veloz e facilmente do que na segunda, e reside aí toda a diferença.
Coloca-se um problema: o que diferencia aprender a escrever ' à máquina, a andar de bicicleta, a jogar tênis em idade adulta, do processo que se dá na idade escolar quando se aprendem a língua escrita, a aritmética e as ciências naturais? Cremos que a diferença essencial consiste nas diversas relações destas aprendizagens com o processo de desenvolvimento.
Aprender a usar uma máquina de escrever significa, na realidade, estabelecer um certo número de hábitos que por si só não alteram em absoluto as características psicointelectuais do homem. Uma aprendizagem deste gênero aproveita um desenvolvimento já elaborado e completo, e justamente por isso contribui em muito pouco para o desenvolvimento geral.
O processo de aprender a escrever é muito diferente. Algumas investigações demonstraram que este processo ativa uma fase de desenvolvimento dos processos psicointelectuais inteiramente nova e muito complexa, e que o aparecimento destes processos origina uma mudança radical das características gerais, psicointelectuais da criança; da mesma forma, aprender a falar marca uma etapa fundamental na passagem da infância para a puberdade.
Podemos agora resumir o que dissemos e fazer uma formulação geral da relação entre os processos de aprendizagem e desenvolvimento. Antes de o fazer, salientaremos que todas as investigações experimentais sobre a natureza psicológica dos processos de aprendizagem da aritmética, da escrita, das ciências naturais e de outras matérias na escola elementar, demonstram que o seu fundamento, o eixo em torno do qual se montam, é uma nova formação que se produz em idade escolar. Estes processos estão todos ligados ao desenvolvimento do sistema nervoso central. A aprendizagem escolar orienta e estimula processos internos de desenvolvimento. A tarefa real de uma análise do processo educativo consiste em descobrir o aparecimento e o desaparecimento destas linhas internas de desenvolvimento no momento em que se verificam, durante a aprendizagem escolar.
Esta hipótese pressupõe necessariamente que o processo de desenvolvimento não coincide com o da aprendizagem, o processo de desenvolvimento segue o da aprendizagem, que cria a área de desenvolvimento potencial.
O segundo momento essencial desta hipótese é a afirmação de que aprendizagem e desenvolvimento da criança, ainda que diretamente ligados, nunca se produzem de modo simétrico e paralelo. O desenvolvimento da criança não acompanha nunca a aprendizagem escolar, como uma sombra acompanha o objeto que a projeta. Os testes que comprovam os progressos escolares não podem, portanto, refletir o curso real do desenvolvimento da criança. Existe uma dependência recíproca, extremamente complexa e dinâmica, entre o processo de desenvolvimento e o da aprendizagem, dependência que não pode ser explicada por uma única fórmula especulativa apriorística.
Cada matéria escolar tem uma relação própria com o curso do desenvolvimento da criança, relação que muda com a passagem da criança de uma etapa para outra. Isto obriga a examinar de novo todo o problema das disciplinas formais, ou seja, do papel e da importância de cada matéria no posterior desenvolvimento psicointelectual geral da criança. Semelhante questão não pode esquematizar-se numa fórmula única, mas permite compreender melhor como são vastos os objetivos de uma investigação experimental extensiva e variada.
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