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sábado, 18 de agosto de 2012
ESCOLA PIOLLIN: UMA EXPERIMENTAÇÃO EDUCATIVA (1977‐1984)
Mariana Marques Teixeira
mariana_mino@hotmail.com
(PPGE/UFPB)
Resumo
Esta comunicação visa trazer à luz algumas reflexões resultantes de nossa pesquisa de mestrado que tem como objeto de estudo uma das instituições artísticas mais antigas, e em funcionamento, na Paraíba: A Escola Piollin. Entidade não governamental sem fins lucrativos, a Escola foi fundada na cidade de João Pessoa em 1977 pelos atores Luiz Carlos Vasconcelos e Everaldo Pontes mediante invasão, ocupação e instalação clandestina da área do antigo Convento Santo Antônio localizado no centro da capital paraibana. Em pleno contexto de redemocratização política pelo qual passava o Brasil, em fins da década de 1970, a Escola encontrou muitas dificuldades para se estruturar, legalizar e ser reconhecida tanto pela comunidade circunvizinha do bairro do Roger, como pelas autoridades do Estado. Após enfrentar muitos desafios para se firmar, a Escola assinou com o governo do Estado – após interferência direta do então Ministro da Educação e Cultura Eduardo Portela ‐ um contrato de Comodato através do qual obteve o direito de usar a área do Antigo Engenho Paul, ao lado do Parque Arruda Câmara para instalar sua sede definitiva. Assim, somente instalada em área “própria”, a Escola pode enfim voltar‐se para os desafios internos de suas propostas que buscavam uma experimentação de educação não formal através das artes. Apesar da instituição comemorar em 2012 seus 35 anos de existência, nossa pesquisa, no entanto, optou por restringir suas análises ao espaço de tempo entre a fundação da Escola no ano de 1977 até 1984, ano no qual seu principal fundador afasta‐se da direção da instituição nos levando a crer que isso significou a conclusão de um primeiro ciclo de funcionamento da mesma. Para melhor abordar as particularidades do cotidiano da Escola Piollin, trabalhamos com as referências metodológicas da História Cultural pelo viés das práticas educativas dialogando principalmente com os teóricos Ivan Illich (1985) e seu conceito de desescolarização bem como Afonso(1989) quando falamos de educação não formal. A principal fonte de nossos estudos foi o acervo particular da instituição, local onde encontramos desde relatórios manuscritos, relatórios anuais de avaliação, fotografias, recortes de jornais, impressos, documentos da burocracia interna da escola, documentos da administração da instituição em contato com o governo do Estado ou com o MEC e “pautas/atas de reuniões pedagógicas” completas. Outra fonte valiosa foram as entrevistas que realizamos com alguns dos sujeitos da “experiência Piollin” à época ‐ que além de muito reveladoras para o auxílio na re‐construção da História da instituição, também se mostraram como instrumento metodológico valioso de ampliação de nossas análises de pesquisa. Em tempo, temos aprendido muito com a História da Escola Piollin, principalmente no que tocante às experiências educativas distintas das regulares.
Palavras‐chave: Escola Piollin. Educação Não Formal. Desescolarização.
Este artigo é fruto de nossa pesquisa de mestrado, alocado no Programa de Pós‐Graduação
em Educação da Universidade Federal da Paraíba, na linha de História da Educação, que tem como
título: “OLHA O PÚBLICO CANSADO DE ESPERAR, O ESPETÁCULO NÃO PODE PARAR!”‐ Reflexões sobre as práticas educativas da Escola Piollin (1977‐1984)”, e deve ser defendida ainda no primeiro semestre de 2012 sob a orientação da Profª Drª Cláudia Engler Cury.
O nosso interesse junto ao objeto de pesquisa nasceu primeiramente do interesse pessoal
da autora pelas artes e suas manifestações na cidade de João Pessoa, dessa maneira, estar juntoIX SEMINÁRIO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS “HISTÓRIA, SOCIEDADE E EDUCAÇÃO NO BRASIL”
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das atividades da Escola Piollin – hoje Centro Cultural Piollin ‐ e pesquisá‐las sempre pareceu
muito interessante e desafiador diante da quase nula organização do acervo desta instituição e da
conseqüente ausência de pesquisas sobre a mesma durante todo o seu percurso/existência.
Todavia, a definição deste objeto de estudos ocorreu por ocasião de uma Parceria do
Departamento do curso de História e o Centro Cultural Piollin realizada através da Comissão de
Memória e Patrimônio Histórico do DH/CCHLA/UFPB ‐ num convênio de cooperação já existente
entre a Pró‐reitoria de Ação Comunitária da Universidade Federal da Paraíba e O Centro Cultural
Piollin desde 2007 ‐ a partir de uma demanda surgida pelo próprio Centro, que tem o objetivo de
proporcionar a seu público (integrantes e clientela) o maior conhecimento da memória e trajetória
institucional. Dessa maneira a equipe disponibilizada pela UFPB – da qual fizemos parte ‐ assumiu
a função primeira de organização do acervo documental que a instituição referida possui, com
objetivos posteriores de produção de material didático facilitador das visitas àquele ambiente de
ensino. Além disso, haviam outras intenções advindas diretamente da organização deste vasto
acervo institucional, quais sejam: o reconhecimento social da área que o Centro ocupa a mais de
30 anos enquanto Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico da Paraíba (o Engenho Paul que
data do século XIX, local onde o Centro vem funcionando a mais de 25 anos, foi tombado e faz
parte do Patrimônio Histórico e Artístico da Paraíba) e, o fato deste Centro de Cultura nunca ter
sido alvo de problematizações do ponto de vista de suas práticas educativas/pedagógicas não‐
formais, o que nosimpulsionou ainda mais neste sentido.
Passamos desde então por muitas etapas de pesquisa, desde que resolvemos abraçar esta
instituição de ensino como nosso objeto de estudo, foram elas:
1) encontrar local com infra‐estrutura mínima de acondicionamento do acervo;
2) a) separar previamente por “tipo documental” tudo o que for encontrado; b) separar no interior
de cada tipo, as fontes por décadas de acordo com o ano de sua produção e c) sugerir o descarte
de material repetitivo ou irreparavelmente corroído pelo tempo ‐ e pelastraças;IX SEMINÁRIO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS “HISTÓRIA, SOCIEDADE E EDUCAÇÃO NO BRASIL”
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3) a) catalogar os documentos mais abundantes a partir de fichas padrões
1
; b) Fotografar os
documentos impressos a fim de iniciar uma versão digital do acervo, visando facilitar futuras
análises;
4) Leitura de referências bibliográficas que nos auxiliem a pensar a produção acadêmica no viés da
Educação Patrimonial
2
e da Educação não‐formal ‐ nosso viés de pesquisa.
Feita a primeira incursão ao acervo no sentido de higienizá‐lo, identificá‐lo, catalogá‐lo e
acondicioná‐lo minimante passamos a nos dedicar a melhor pensar e elaborar uma escrita acerca
da história da instituição e de sua abordagem pedagógica no tempo. Nossas opções de aportes
documentais para a construção de uma narrativa escrita, diante do levantado no acervo foram e
são muitas, todavia, elencamos e restringimo‐las as seguintes opções: fontes escritas (Pautas/Atas
de reuniões administrativas e pedagógicas; Relatórios de monitores e coordenadores/diretores;
fontes orais (entrevistas semi‐estruturadas com alguns sujeitos da educação na Escola Piollin,
sejam eles gestores, monitores e alunos) e fontes iconográficas (na perspectiva principalmente
ilustrativa/demonstrativa).
A etapa seguinte, a da definição do recorte temporal, também exigiu de nós bastante
atenção. O Centro Cultural Piollin completa em 2012 trinta e cinco anos de existência e apresenta
desde seus primeiros anos de funcionamento uma densidade e multiplicidade de atividades,
experiências e desafios que muito dificultaram nossa percepção de uma justificativa para um
possível recorte. Por outro lado, desde o princípio sempre soubemos que toda essa “intensidade”
das vivências desta instituição não poderiam por nós ser analisadas em sua totalidade temporal
(através de seus 35 anos de existência) principalmente por reconhecermos que um estudo que
abranja tamanha temporalidade pode apresentar riscos, em virtude de sua abrangência, de
mostrar‐se fluido ou inconsistente, se não receber a atenção e o cuidado necessário. Este impasse
nos levou a uma imediata decisão: ler minuciosamente o maior e mais variado número de fontes
possível sobre o Centro, e assim começar a entender suas nuances para poder a posteriori sugerir‐
lhe um período de análise plausível. E assim foi feito. Dessa forma chegamos ao seguinte recorte
1
Modelo de ficha utilizado na organização do NDHIR/DH cedido pela Profª Rosa Godoy, que coordenou àquela
organização documental e que foi adaptada a realidade/necessidades do acervo Piollin.
2
Foco da pesquisa de Iniciação Científica do aluno bolsista Wellington Oliveira orientado pela professora do PPGH
Carla Mary Oliveira.IX SEMINÁRIO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS “HISTÓRIA, SOCIEDADE E EDUCAÇÃO NO BRASIL”
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temporal: do 1977 (ano de fundação oficial da Escola) até o ano de 1984 (ano em que seu principal
mentor se afasta significando, a nosso ver, a conclusão de um primeiro ciclo de funcionamento da
instituição).
1. Escola Piollin: a história de uma escola
É muito difícil definir a data exata da fundação da Escola Piollin, isto por que essa
referencia aparece de forma muito variada nos registros internos da própria instituição ao longo
dos anos. Todavia, oficialmente e diante da maioria dos registros encontrados, o Centro Cultural
Piollin ‐ que nasceu Escola Piollin ‐ foi fundada em 27 de março de 1977 no bairro do Roger em
João Pessoa/PB, nas dependências do anexo – invadidas clandestinamente pelos fundadores Luiz
Carlos Vasconcelos e Everaldo Pontes – do convento de São Francisco, o Convento de Santo
Antônio (onde funcionava o antigo colégio Estadual do Roger, naquele momento, desativado).
Após recusa da igreja Católica – que através da Arquidiocese estadual fazia‐se dona oficial
de toda a área na qual era localizado o Convento de Santo Antônio – da doação da área em
questão aos jovens artistas, ambos não desistem da idéia invadindo – literalmente – o local, que
estava abandonado devido a desativação do antigo Colégio Estadual do Roger que havia
funcionado no prédio em questão, agora abandonado, até meados da metade década de 1970.
FONTE: Acervo da Escola Piollin/ Autor não identificado. Fachada da então Escola de Teatro Piollin em 1977 nas
dependências do Antigo Colégio Estadual do Roger.IX SEMINÁRIO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS “HISTÓRIA, SOCIEDADE E EDUCAÇÃO NO BRASIL”
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A Escola funcionou desde então ativamente na região, sendo vista desde seus primeiros
anos, espaço de efervescência e de encontro das Artes no Estado da Paraíba, recebendo
apresentações teatrais, musicais e de artes plásticas e realizando Encontros Estaduais de Grupos
Infantis de Teatro com crianças do interior. Por tudo isso, no bairro, e mais tarde pelos
simpatizantes das artes, a Escola não demorou a ser reconhecida, freqüentada e identificada como
lugar de “abrigo” para todas as experiências artísticas, representando novas possibilidades que até
então não eram percebidas na Paraíba.
Entretanto esse período de austero desenvolvimento e configuração durou muito pouco,
isto porque durante os anos de 1980 e 1981, surgiu uma ameaça real de fechamento da Escola.
Aconteceu que a Arquidiocese da Paraíba, detentora do espaço físico no qual a Escola estava
inserida, comunicou que a área passaria por reformas para receber um museu de arte sacra que
pertenceria ao Convento de São Francisco. Diante da eminente possibilidade de dissolução da
Escola, Luiz Carlos Vasconcelos decidiu viajar pelo Estado, e posteriormente pelo Brasil,
levantando assinaturas para um abaixo assinado em todos ossindicatos e escolas de teatro do país
na busca pela divulgação da Escola Piollin e da situação pela qual ela estava passando. Assim
pretendia‐se que governo autorizasse sua existência/permanência através da doação de uma área
para que a mesma não deixasse de funcionar.
As relações com a Arquidiocese nesse sentido, sempre foram positivas. Mas a mesma não
se mostrava com autoridade suficiente para intervir na questão da doação da área à Piollin. Diante
da situação de eminente despejo Vasconcelos valeu‐se da própria história construída pela Escola
até então, e saiu em busca de apoio e reconhecimento da sociedade na tentativa de não deixar “o
espetáculo parar!”. Passou a fazer relatórios e levantamentos sobre as atividades desempenhadas
no interior da instituição, bem como o alcance que a mesma tinha atingido na imprensa paraibana
e faz uso disso para divulgar a situação que enfrentavam, apesar de todo o trabalho realizado, a
fim de sensibilizar as autoridades para que providências fossem tomadas ‐ conforme mostraremos
mais a frente. Nesse sentido, foram angariadas muitas declarações de apoio à Escola. Destacamos
algumas delas que encontramos datilografadas no Relatório Institucional de 1979 presente no
acervo da Escola:IX SEMINÁRIO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS “HISTÓRIA, SOCIEDADE E EDUCAÇÃO NO BRASIL”
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Acompanho desde o início o trabalho do pessoal da Piollin (...) sua produção
artística não se destina a ser um mero produto de consumo, mas um elemento
contestador de posições caducas e instrumento transformador no entendimento
mais profundo do homem e sua “humanidade” e o melhoramento das relações do
homem entre si. Conheço a dose de sacrifício e verdadeira dedicação dos que
fazem a Piollin, numa época tão carente de atitudes generosas [...] (Pedro Santos,
em 28.11.1978)
Declaro para os devidos fins que conheço o trabalho da Escolinha de Teatro Piollin
[...] cujo o objetivo é desenvolver o espírito criativo da criança através das
experiências espontâneas vivenciadas na comunidade. Estas experiências estão
implícitas no Art.7º da lei 5692/71 da Reforma de Ensino do país [...] (José Nilton
da Silva, 28.11.78 ‐ Profº da UFPB)
A Escola Piollin sempre representou para mim e creio, para todos os que fazem
teatro na Paraíba, um dos únicos movimentos que tem como objetivo a procura
de uma consciência para uma classe [...] (Fernando Teixeira, 28.11.1978 – Diretor
da divisão de Teatro Universitário/UFPB)
Conheço de perto o trabalho que vem se desenvolvendo na Escola Piollin,
trabalho este capaz de tocar qualquer pessoa sensível sabendo‐se que o grupo
conta apenas com a boa vontade de algumas pessoas que fazem arte em João
Pessoa (Severina Sousa Matos, 28.11.1978 – Administradora Escolar)
Ao tomar conhecimento das restrições que vem sendo impostas ao
desenvolvimento do trabalho por vocês levado a efeito na Paraíba, e cuja a
influência o Brasil já não pode mais desconhecer [...] Qualquer atitude que venha
prejudicar a iniciativa de vocês, tem que ser rechaçada com toda a veemência por
todos aqueles que lutam nesse país pelas liberação dos processos culturais, pelo
seu maior dinamismo, contra o dirigismo e o amordaçamento. (Vladmir Carvalho,
Brasília, 29.05.1979 – Documentarista)
A Escola Piollin, como dissemos, é a única em seu estilo, e desenvolve uma intensa
atividade cultural nos mais diversos campos da criação e da comunicação social
[...] O seu despejo e conseqüente estiolamento seria simplesmente desastroso
para os destinos da arte na Paraíba [...] o mínimo que se poderia esperar da
burocracia era que não atrapalhasse. Se não podia ajudar ou participar de forma
útil, pelo menos que mantivesse uma saudável distância e não transferisse pelo
contato a sua incompetência ferruginosa, que entrava as melhores iniciativas.
(Marcondes Gadelha, Câmara dos Deputados, 23.05.1979 – Deputado do MDB)
O Centro Acadêmico de Psicologia da PUC‐SP vem por meio desta, manifestar seu
apoio à permanência da Escola de Teatro Piollin [...] que está ameaçada de
despejo pela ampliação do Museu de Arte Sacra da Paraíba e restauração do
Seminário de São Francisco. (Direção do CA‐PSICOPUC/SP)
Vimos por meio desta, manifestar o nosso repúdio à atitude tomada em relação à
Escola de Teatro Piollin. Concordamos que o Seminário São Francisco seja
preservado, mas não admitimos que isso acarrete no despejo da Escola Piollin. Ao
nosso ver, é obrigação do Estado da Paraíba dar apoio ao trabalho desenvolvido
nessa escola e preservá‐la. (Marco Antônio Campanella e Centro Acadêmico “22
de agosto”, março 1979. União Estadual dos Estudantes e Faculdade de Direito
PUC/SP)IX SEMINÁRIO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS “HISTÓRIA, SOCIEDADE E EDUCAÇÃO NO BRASIL”
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O ponto alto da busca de Luiz Carlos foi quando ele conseguiu o apoio da imprensa, e levou
o caso à Brasília encontrando‐se com então Ministro da Cultura e Educação Eduardo Portela e lhe
dirigindo a solicitação pessoalmente. A causa, após muita luta, foi “ganha”. E a Escola além de não
fechar, recebeu ‐ do governo do Estado ‐ por intermédio do Ministro, a área do Horto Simões
Lopes, ao lado do Parque Arruda Câmara, para suasinstalações durante os próximos 20 anos.
FONTE: Acervo Piollin / 1980/ Autor Desconhecido. Luiz Carlos Vasconcelos (diretor da Escola Piollin), Giselda Navarro
(Secretária de Educação), Hildebrando Assis (Fundação Cultural), Fátima Chianca (Arquiteta) e o Governador Tarcísio
Burity que assina o contrato de Comodato que dá à Escola Piollin uma nova área de funcionamento no Horto Simões
Lopes, João Pessoa.
O ano de 1981 foi todo de mudança. Sair da antiga sede e se readaptar burocraticamente
ao novo espaço levou muitos meses. Além disso, a mudança para um espaço físico maior, massem
nenhuma estrutura que favorecesse as atividades, “paralisou” os gestores por algum tempo ‐
enquanto tentavam resolver as questões mais imediatas para a retomada do trabalho. Foi no final
desse ano, que tomaram conhecimento do projeto “Interação entre educação básica e os
diferentes contextos culturais existentes no País”. E viam no projeto a real possibilidade de levar a
cabo a antiga idéia de acabar com as “turmas” e abrir a escola (com infra‐estrutura e pessoal)
durante todos os dias úteis da semana, como sempre quiseram. A escola só voltou a funcionar
com a (re)abertura do parque
3
em 08 de setembro de 1982. Antes disso, os gestores passaram o
início desse ano empenhados em levar um grupo de crianças, da cidade de Cajazeiras, “cursistas”
3
O “Parque” era uma espécie de pátio central, o local mais freqüentado e disputado pelas crianças. Nele realizavam‐se as
atividades recreativas, comemorações e nos primeiros anos, a merenda.IX SEMINÁRIO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS “HISTÓRIA, SOCIEDADE E EDUCAÇÃO NO BRASIL”
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dos últimos cinco Encontros Estaduais de Grupos Infantis de Teatro (promovidos pela Escola Piollin
ainda na antiga sede), ao V Festival Nacional de Teatro Amador de São José do Rio Preto, em São
Paulo, em contratar o pessoal que faltava e em adequar as áreas do parque na nova sede. Dessa
maneira, a escola funcionou efetivamente de setembro à dezembro daquele ano, e é referente a
esse período que o relatório trata.
Segundo o relatório de 1982 enviado a SEC/MEC (seu principal financiador no momento)
aquele ano não foi dos mais fáceis para a Escola Piollin. As dificuldades enfrentadas pelos
monitores para a aplicação do método
4
, até para eles, inovador, era freqüente. Além disso, a
agressividade e violência empregadas pelas crianças era um desafio diário que fazia de cada
atividade uma inconstante imprevisível. Some‐se a isso uma estrutura física sem nenhuma
adaptação para receber as atividades ‐ pois ainda apresentava as estruturas arquitetônicas do
Antigo Engenho Paul
5
, o tamanho da área e sua conseqüente dificuldade de
manutenção/segurança, o pouco pessoal para a grande quantidade de criançasfreqüentadoras e o
afastamento das mesmas no meio do ano (uma vez que, segundo seus pais ‐ através de
“levantamento” feito pelos monitores à época ‐ elas apresentavam rendimento negativo na escola
regular pois passavam o dia inteiro “brincando” na Escola Piollin). A solução não poderia ser outra:
trazer as crianças de volta, resolvendo essa necessidade através da a criação de um “Centro de
Estudos”.
[...] não podemos recuar. Criaremos um “Centro Estudos” que tenha um
funcionamento regular. Pretendemos com essa atividade não só adquirir a
confiança dos pais que vêem a Piollin como local onde seus filhos vem “brincar”,
mas, principalmente, transformar na cabeça dessas crianças o conceito que elas
tem de escola e possibilitar através delas, algumas discussões, quicá
transformações, nas escolas da comunidade. (RELATÓRIO DO PROJETO
“INTERAÇÃO ENTRE EDUCAÇÃO BÁSICA E OS DIFERENTES CONTEXTOS CULTURAIS
EXISTENTES NO PAÍS” ENVIADO À SEC/MEC 1982, pg. 37, grifos da autora).
4
Nos relatórios semanais dos monitores à coordenação da Escola Piollin encontramos relatos em que os mesmos apontam
muita dificuldade com o método da instituição. Entretanto, não esclarecem nem nos deixam maiores indícios de que
método é esse, nem quais suas referências de educação não escolar. Esperamos que com a leitura do restante dos
relatórios e com a realização de entrevistas com os principais sujeitos da época, essa questão fundamental possa ser
melhor esclarecida.
5
O Engenho Paul foi um dos últimos remanescentes das unidades de produção agro‐industriais destinadas a cultura de cana‐
de‐açucar em João Pessoa/PB e existe desde o séc.XIX. A sua área foi entregue a Escola Piollin num contrato de Comodato
pelo Estado com duração de 20 anos. Seu tombamento foi homologado através do decreto nº 25.689 de 17 de fevereiro de
2005.IX SEMINÁRIO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS “HISTÓRIA, SOCIEDADE E EDUCAÇÃO NO BRASIL”
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Nesse momento, a tamanha determinação dos gestores Piollin, apesar dos inúmeros
obstáculos, parece, no trecho acima exposto, apesar de ousada, direcionada: transformar na
cabeça dessas crianças o conceito que elas tem de escola e possibilitar através delas, algumas
discussões, quicá transformações, nas escolas da comunidade. A idéia de uma experiência
educacional que pudesse fazer com que as crianças tivessem mais interesse em aprender e vissem
na escola um espaço de aquisição de possibilidades através dos mais variados contatos e
experiências, entre elas as artísticas, parecia ser a meta, o ideal implícito nas práticas de cada
oficina, e nas ações de cada monitor ou coordenador.
Somente após longa reflexão e muitas leituras do relatório é que conseguimos perceber de
fato com maior clareza as delicadas/sutis empreitadas educativas nas quais a escola investia.
Simples ações ou gestos que espera‐se naturalmente serem aprendidos em casa, num
ambiente/convivência familiar ‐ como a não bater, não xingar ou não retirar as frutas verdes dos
pés de manga e assim estragá‐las – eram desafios diários enfrentados e ensinados pelos monitores
das mais variadas formas, seja plantando uma muda de árvore e acompanhando seu crescimento
para que as crianças conhecessem as etapas de maturação das frutas e entendessem que até na
natureza havia o tempo certo para a interferência humana ou fazendo‐as desenhar e escrever os
palavrões (ou “sacanagens”) numa folha de papel todas as vezes em que estivessem com muita
vontade de fazê‐lo, para que assim não ofendessem ninguém
6
. Dessa maneira, a escola no parece
que pretendia fazer dessas crianças cidadãos mais humanos, mais socializados, mais sensíveis e
assim, conseqüentemente fazê‐las alcançar novos conhecimentos e possibilidades aos quais
historicamente não teriam acesso devido a condição social que lhes era inerente.
Por tudo isso, nota‐se que o trabalho nunca foi fácil. Pelo contrário, as dúvidas, incertezas e
a falta de formação parece ser realidade constate e latente aos monitores e gestores que em
muitas oportunidades parecem contar apenas com a boa vontade e disposição próprias, como
podemos perceber no trecho abaixo:
6
“Oficialmente” nesse ano haviam oficinas de Teatro, Alfabetização e o Parque. Além disso, as crianças tinham
eventualmente aulas de música, de exercícios acrobáticos e de culinária. Independente da oficina e do que se
esperava que ela ensinasse, todos os monitores, em suas atividades, tratavam e lidavam com as situações, citadas
no texto. Por isso, na maioria das vezes investiam mais tempo ensinando coisas desse tipo, do que fazendo
exercícios típicos do que se esperava tradicionalmente de suas oficinas. E quando o faziam, nos parece que tinham
esse intuito de formação humana/social como prioridade.IX SEMINÁRIO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS “HISTÓRIA, SOCIEDADE E EDUCAÇÃO NO BRASIL”
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Como ajudar Jailton, vulgo, Magro, de 10 anos que já foi expulso de uma escola
de Educação Especial e tem seus pais e a rua, com todas as suas crianças
chamando‐o de doido? [...) Como fazer a com]nidade ver o menino inteligente e
esperto que é Jailton? Como fazer Jailton se vê? [...] Como podemos
ajudar?”(RELATÓRIO DO PROJETO “INTERAÇÃO ENTRE EDUCAÇÃO BÁSICA E OS
DIFERENTES CONTEXTOS CULTURAIS EXISTENTES NO PAÍS” ENVIADO À SEC/MEC
1982, pg. 37, grifos da autora).
Desenvolver atividades e alcançar através delas objetivos educacionais utilizando de uma
metodologia não tradicional e pouco compreendida, tanto pessoal da escola – ao que nos parece,
quanto pelas crianças e pelos seus pais, no fundo, se mostrou naquele ano o maior obstáculo da
escola. Isto porque, nem os poucos recursos financeiros e humanos foram tão mencionados
quanto essas questõesrelacionadas ao método.
7
Observando todos osrelatos, essa questão parece
ter sido toda levada e realizada de uma maneira muito mais intuitiva, improvisada e experimental
do que qualquer outra coisa, o que não significa necessariamente que não haja méritos ou alcance
educativo por isso, muito pelo contrário. Percebemos que era através dessas experimentações
que as crianças, e principalmente os monitores
8
, retiravam lições ou aprendizagem que
normalmente não adquiriam na escola regular, e que se eventualmente tinham acesso através
dela, muitas vezes não apreendiam ou simplesmente a decoravam.
Ao contrário do que percebemos em algumas experiências semelhantes, que falam em
educação e transformação social através da arte, observamos que na Escola Piollin embora a arte
tenha sido o instrumento fundante, na prática, ela parecia ser só mais um instrumento entre
tantos, na tentativa de proporcionar um educação diferenciada. Uma Educação realizada dentro
de um processo muito variado que tinha como ação imediata a convivência, a relação direta e
quase que individual, com cada criança. Parecia ser esse sim, o “segredo” para o bom andamento
do processo.
Lutamos ainda hoje por sermos capazes de nos relacionar conforme nossos
limites e discernimentos, luta que não é travada apenas entre nós, mas que está
7
Método esse que ainda não ficou claro, mesmo com leitura adiantada das fontes até o ano de 1985. Isto porque não
há referência clara a nenhum método específico, apesar da citação de sua existência uma vez ou outra.
Pretendemos resolucionar essa questão através de entrevistas à sujeitos da época feitas em breve.
8
Devido ao pouco espaço que temos não desenvolveremos nesse trabalho as questões de aprendizagem relacionadas
aos sujeitos monitores. Mas pretende‐se abordar esse assunto num artigo próximo e num capítulo da futura
dissertação.IX SEMINÁRIO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS “HISTÓRIA, SOCIEDADE E EDUCAÇÃO NO BRASIL”
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declarada em todo âmbito da escola [...]. É do relacionamento que se estabelecer
entre todos, das relações que formos capazes de manter com essas crianças que
resultará o processo de nosso trabalho. (RELATÓRIO DO PROJETO “INTERAÇÃO
ENTRE EDUCAÇÃO BÁSICA E OS DIFERENTES CONTEXTOS CULTURAIS EXISTENTES
NO PAÍS” ENVIADO À SEC/MEC 1982, pg. 04, grifos da autora).
2. “ Experiência Piollin” como possibilidade de desescolarização?
A Escola Piollin desde o princípio mostrou‐se por meio de um cotidiano aparentemente tão
desorganizado, desorientado e desregrado que mais nos assustou e intimidou do que nos animou.
Por muito tempo pensávamos: “É possível que em tamanha desorganização exista realmente uma
experiência educativa?”, “esta experiência também pode ser considerada educativa?”. Essa dúvida
nos perseguiu por muito tempo e começou a ser esclarecida – e ainda precisa ser mais
aprofundada – a partir de nossos contatos com outras experiências de educação não formal e
posteriormente com as contribuições teóricas daquele que foi nosso principal interlocutor nesta
pesquisa: Ivan Illich ‐ principalmente por meio de seus escritos no livro Sociedade sem escolas de
1985. Este teórico foi fundamental para nossa maior ampliação do universo e sentidos da
escolaridade, ensino e aprendizagem. E essa ampliação de sentidos fez completa e total diferença
para a continuidade e as primeiras conclusões desta pesquisa – apresentadas nesta ocasião.
Uma de nossas principais questões desde o início das discussões a cerca da experiência
vivida pela Piollin foi à necessidade de definirmos o que entendíamos por “escola”, isto por que
estávamos “naturalmente” imbricados de uma referencia escolar extremamente formal que
automaticamente guiava nossa olhar, mesmo enquanto pesquisadores, sempre num sentido de
repulsa àquilo que fosse distinto da escolaridade formal aquela a qual “esperávamos” encontrar.
Foi essa a grande “virada” da nossa pesquisa, a grande “surpresa”. O objeto nos surpreendeu
tanto, que nos fez sentir necessidade de preencher uma lacuna de conhecimento que encontrava‐
se de muitas maneiras vazia em nossas experiências e vivências pessoais, enquanto sujeitos das
nossas educações, e enquanto pesquisadores da educação, era a lacuna da possibilidade educativa
fora dos muros da escola regular. E mais, era a possibilidade de identificação e reconhecimento do
valor de uma educação que não a regular. Entretanto, encontrar bibliografia que discutisse
questões especificamente escolares era o mais comum, e por mais que lêssemos, estas questõesIX SEMINÁRIO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS “HISTÓRIA, SOCIEDADE E EDUCAÇÃO NO BRASIL”
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regulares passaram a nos interessar menos ainda quando, depois de conhecer mais a Escola Piollin
através das fontes, entendemos que apesar de sua denominação, ela não podia ser entendida por
nós como uma escola regular nos padrões mais convencionais. Isto porque, entendíamos esta
escola regular vista no sentido de:
[...] uma organização complexa com uma rede de relações que envolvem aspectos
emocionais, intelectuais, administrativos, econômicos. Sua estrutura é
fundamentada numa forte hierarquia de papéis e funções em que as normas e os
códigos estão bem definidos [...] A própria transmissão de conhecimentos
obedece a um rígido esquema burocrático. Os horários, a repartição do tempo, o
lazer, os exames, o sistema de controle sobre as pessoas são muito parecidos com
os das organizações industriais e militares. O próprio curriculum é um conjunto de
representações que a sociedade faz sobre as atividades que devem ser
desenvolvidas pelas professoras e alunos...
(PEDRA, 1997 apud SALES, MONTE e VITAL, 2004)
Sendo assim, realmente a nosso ver, a denominação “escola” deveria ser a última
designada a Piollin se a considerarmos sentido oficial do termo. A partir daí, fomos mais além e
seguimos as nossas leituras, em busca de outras possibilidades, outras perspectivas de escola.
Assim, encontramos um sentimento já na década de 1970 na América Latina de “novos tempos”
para a educação. Era a sensação que alguns estudiosos tinham, e que Illich apontou, de que se
vivia um tempo de novas necessidades educacionais diante de um sistema de educação, segundo
o mesmo, já ultrapassado e que no fundo, não tinha objetivos realmente de aquisição e
compartilhamento de conhecimento, massim, de mercantilização do mesmo.
Existe atualmente uma busca por novas saídas educacionais que deve virar
procura de seu universo institucional: é a percepção de uma teia educacional que
aumenta a oportunidade de cada um de transformar todo instante de sua vida
num instante de aparente aprendizado, de participação, de cuidado... a igualdade
de oportunidades na educação é meta desejável e realizável, mas confundi‐la com
a obrigatoriedade escolar é como confundir salvação com igreja. (ILLICH, 1985)
Illich nos mostrou com clareza a importância da ampliação de nossos horizontes
educativos, e isso nos fez olhar imediatamente para a Piollin com outros olhos. A partir daí,
passamos a observar o cotidiano da instituição como resultado de tentativas da aplicação de outra
maneira de educar, diferente da regular, talvez nem sempre intencionalmente inspirada ou
orientada, mas com certeza guiada pela idéia de mudança, de que era possível ensinar e aprender
e ser escola mesmo fora dos padrões. Logo, passamos a entender “escola” num sentido muitoIX SEMINÁRIO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS “HISTÓRIA, SOCIEDADE E EDUCAÇÃO NO BRASIL”
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mais amplo como um local criado no intuito de favorecer a aprendizagem e o compartilhamento
de conhecimento entre aqueles que se dispõem a dela fazer parte. Dessa maneira, a escola regular
– de acordo com a definição acima referida – seria apenas um modelo escolar, e não o único, o
correto ou o válido como somos ensinados a acreditar. Talvez seja o modelo majoritário, o
valorizado ou até o privilegiado, mas isso a nosso ver, não pode anular ou desconsiderar a
existência e o valor de outros tipos escolares. E é num destes “outros” tipos, o não formal, que
acreditamos estar inserida a Escola Piollin. Por isso, é que acreditamos que nosso sentido de
escola está muito mais próximo do que encontramos em Silva (1798) quando ele diz que esta
instituição é uma “casa onde se ensina a dançar, a ler, escrever, esgrimir. Disciplina, criação.” Ora,
nesta definição a escola ensina a dançar antes mesmo de escrever e ler – o que nos chamou muita
atenção, por que se aproximou de alguma forma daquilo que pretendemos discutir aqui, discutir a
escola como um ambiente de aprendizado e de acesso ao conhecimento não somente com fins
reprodutivos técnicos, mercadológicos e profissionais, mas como lugar de discussão, de análise, de
crítica, de construção de conhecimento, de favorecimento da liberdade do questionamento, da
liberdade do aprender seja o conhecimento curricular ou não.Uma vez que entendemos que
conhecer é valoroso sempre, seja esse conhecimento formal ou não, regular ou não. E sendo
assim, haverá educação onde houver esse sentido naquilo que se ensina ou que se aprende, o que
ao nosso ver, é o caso da Escola Piollin.
A educação pode ser resultado de uma instrução, mas de um tipo de instrução
totalmente distinto de treino prático. Deriva de uma relação entre colegas que já
possuem algumas das chaves que dão acesso a informação memorizada e
acumulada na e pela comunidade. Baseia‐se no esforço crítico de todos os que
usam estas memórias criativamente. Baseia‐se na surpresa da pergunta
inesperada que abre novas portas para o pesquisador e seu colega. (ILLICH, 1985)
Illich (1985) discorre em seu texto principalmente quanto à situação na qual a educação
tem se encontrado em seu tempo (das décadas de 1970 e 1980), uma situação segundo ele
puramente mercadológica, na qual a educação parece ter se tornado mais uma mercadoria
geradora de lucro e instrumento crucial para a manutenção do sistema capitalista no qual ela se
encontrava. Por esse motivo o autor indica que a escola daquele tempo estava diretamente
responsável por um sistema que ele denominou de “genealogia da aprendizagem”. EssaIX SEMINÁRIO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS “HISTÓRIA, SOCIEDADE E EDUCAÇÃO NO BRASIL”
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genealogia, a seu ver, restringia os direitos educacionais para o uso exclusivo das escolas
(regulares) favorecendo o jogo dos que queriam
[...]continuar vivendo numa sociedade em que o progresso social está vinculado
não a um comprovado conhecimento, mas a uma genealogia de aprendizagem
pela qual se supõe seja este adquirido”. Isso é algo que poderia ser chamado de
“fenomenologia da escola pública”. Definirei, para tanto, a escola como um
processo que requer assistência de tempo integral a um currículo obrigatório, em
certa idade e com a presença de um professor.
O autor nos mostra que o domínio da “verdadeira e legitima educação” através escolas
regulares, na verdade era assim disseminado pelo sistema econômico no qual vivia por que este
discurso era interessante para a manutenção deste sistema e de suas engrenagens. A escola, sob
seu ponto de vista, era a peça fundamental para a alimentação de um sistema que não se
preocupava em educar verdadeiramente, mas preocupava‐se em criar uma necessidade de
aquisição de determinados conhecimentos – impostos por um currículo prévio – que não gerava
aquisição de conhecimento em si, mas sim a reprodução específica de alguns destes para fins
meramente empregatícios. Assim, criava‐se e alimenta‐se uma espécie de mito educacional. Mito
este que gerava esperanças de futuro promissor somente para aqueles que tivessem acesso a esta
educação escolarizada, pois só ela tinha valor – o que na prática era realmente comprovado já que
somente este tipo educacional era reconhecido e valorizado.
[...] em qualquer lugar do mundo o secreto currículo da escolarização inicia o
cidadão no mito de que as burocracias guiadas pelo conhecimento científico são
eficientes e benéficas. Em qualquer parte do mundo este mesmo currículo instila
no aluno o mito de que a maior produção vai trazer vida melhor. Bitola o
consumidor que valoriza as mercadorias institucionais mais do que a contribuição
não‐profissional de um vizinho. Em outras palavras, as escolas são
fundamentalmente semelhantes em todos os países, sejam fascistas,
democráticos ou socialistas, pequenos ou grandes, ricos ou pobres. Esta
identidade do sistema escolar nos força a reconhecer a profunda identidade
universal do mito, o modo de produção e o método de controle social, apesar da
grande variedade de mitologias em que o mito é expresso. (ILLICH, 1985)
Haveria então, saída para uma espécie de “salvação da educação” que andava
extremamente manipulada ao bel prazer do sistema? Para Illich sim, e não era tão difícil assim,
bastava desescolarizar a sociedade. O que, a primeira vista, pareceu radicalismo completo. Afinal,
é possível viver numa sociedade sem escolas? A questão é, maior do que essa. Isso por que IllichIX SEMINÁRIO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS “HISTÓRIA, SOCIEDADE E EDUCAÇÃO NO BRASIL”
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não propõe a extinção ou abolição da instituição educativa, mas sua re‐significação, sua re‐
configuração. Acreditamos que o que este teórico propõe é a disseminação de uma nova e outra
idéia de escola, de aquisição de conhecimento. Uma idéia que amplia e valoriza a aquisição, o
compartilhamento e a criação de conhecimento para além do previsto num currículo ou numa
profissão específica. Esta perspectiva a nosso ver, favorece diretamente o reconhecimento e
valorização de “outras formas” escolares já que o conhecimento tem valor por si só,
independentemente da instituição ou local ao qual esteja vinculado. E é nessa perspectiva que
vinculamos a experiência Piollin e acreditamos que ela pode ser citada como exemplo de
experiência ‐ mesmo que isolada e pouco ou quase nada embasada teoricamente ‐
desescolarizante de um sistema como o que Illich combatia.
A nosso ver, o sistema capitalista que manipula a educação institucionalmente a seu favor,
também afeta a realidade do bairro do Roger da década de 1970 – o que favorece a conjuntura de
surgimento e funcionamento da Escola por tanto tempo – e continua influenciando atualmente o
sistema educacional, através de suas escolas regulares, talvez até com mais força do que a 40 anos
atrás como bem apontava Illich. Ou seja, é a aproximação com o que sentimos e vivemos até hoje
em nossas instituições educativas que nos dá ainda mais impulso a continuar acreditando nas
proposições expostas pelo autor como uma alternativa à educação do seu, e ainda, do nosso
tempo.
Um bom sistema educacional deve ter três propósitos: dar a todos os que querem
aprender, acesso a recursos disponíveis, em qualquer época de sua vida; capacitar
a todos os que queiram partilhar o que sabem a encontrar os que queiram
aprender algo deles, e finalmente, dar oportunidade a todos os que queriam
tornar público um assunto a que tenham possibilidade de que seu desafio seja
conhecido. Os aprendizes não deveriam ser forçados a um currículo obrigatório
ou à discriminação baseada em terem diploma ou certificado. Nem deveria ser o
povo forçado a manter um imenso aparato profissional de educadores e edifícios
que, restringe as chances de aprendizagem do povo aos serviços que aquela
profissão deseja colocar no mercado; às novas instituições educacionais, seu
objetivo deve ser facilitar o acesso ao aprendiz: essas novas instituições devem
ser canais aos quais o aprendiz tenha acesso sem credenciais ou linguagem
(ILLICH, 1985).
Assim, quando observamos o ideal de educação para Illich o percebemos, mesmo que
embrionariamente, também na Escola Piollin. Não acreditamos que os gestores Piollin tenhamIX SEMINÁRIO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS “HISTÓRIA, SOCIEDADE E EDUCAÇÃO NO BRASIL”
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tido acesso a tais proposições, mas acreditamos que de uma maneira geral, foi o mesmo
sentimento de incompatibilidade quanto ao sistema no qual estavam inseridos que os fez tentar a
todo custo investir e experimentar uma alternativa diferente que gerasse educação para além da
formalidade e da regularidade.
Acredito que apenas quatro canais diferentes ou intercâmbios de aprendizagem
poderiam contar todos os recursos necessários para uma real aprendizagem. A
criança se desenvolve num mundo de coisas, rodeada por pessoas que lhe servem
de modelo das habilidades e valores. Encontra colegas que a desafiam a
interrogar, competir, cooperar e compreender; e se a criança tiver sorte, estará
exposta a confrontações e críticas feitas por um adulto experiente e que
realmente se interessa por sua formação. Coisas, modelos, colegas e adultos são
quatro recursos; cada um deles requer um diferente tipo de tratamento para
assegurar que todos tenham o maior acesso possível a eles. (ILLICH, 1985, grifos
da autora).
Juntos, catamos frutas no chão da feira e pedimos esmolas. Fomos ao bosque da
Universidade ver os sagüis. Fomos ao circo, realizamos muitas festas e algumas
noites de sábado fomos dançar discoteque lá no “Giseldão”. Várias vezes
burlamos a vigilância dos policiais de trânsito que são nossos vizinhos e fomos
tomar banho no açude da “Bica”. Fomos visitar muitas vezes as casas das crianças
que deixaram de vir à escola e nisso levávamos a tarde inteira. Fomos ao forno do
lixo catar alguma coisa interessante, e na cidade, andar de elevador e escada
rolante. As descobertas do sexo; as intrigas desfeitas naquele passeio; as surgidas
em outro; a consciência da liberdade já adquirida; fazer coisas proibidas juntos, e
conversar sobre elas; a descoberta do novo; a descoberta do outro; das
indelicadezas; e o medo do desconhecido; as atitudes carinhosas; e o crescimento
lento de cada um. De que outra forma promover esta aprendizagem? (Relatório
do projeto “interação entre educação básica e os diferentes contextos culturais
existentes no país” enviado à sec/mec 1983)
Na Escola Piollin, conforme Illich propõe, era preciso que as crianças entendessem que
tudo o que era ali desenvolvido era mobilizado para e em função delas e que por isso não havia
sentido em tamanha violência contra aquilo que lhes pertencia – como nos muitos casos dos
assaltos à cozinha da Escola. No entanto, sabiam também que esse entendimento era assimilado
por meio de um longo processo que passava por rupturas e questionamentos ‐ até naturais no ato
de aprendizado ‐ quando das depredações e arrombamentos da mesma cozinha por falta de
merenda por exemplo. Nessas ocasiões todos se reuniam no Parque e conversavam sobre o
ocorrido. Muitas vezes as próprias crianças apontavam os responsáveis pelo roubo ou se
denunciavam e juntos decidiam conversando quais seriam as melhores reações diante de suas
questões, mesmo na própria Escola.IX SEMINÁRIO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS “HISTÓRIA, SOCIEDADE E EDUCAÇÃO NO BRASIL”
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FONTE: Acervo Piollin/ Sem data/ Autor desconhecido. Reunião na caixa de areia do Parque com gestores e alunos.
Mesmo numa situação aparentemente “problemática”, como as dos roubos da cozinha, os
gestores Piollin faziam o possível para utilizá‐la para produção de alguma aprendizagem. E assim,
conversando aprendiam os “alunos” e também os “monitores”.
Percebemos assim mais uma vez semelhante ao que diz Illich, que a Escola Piollin sempre
demonstrou vontade de fazer com que o “risco natural” à situação a qual esse “aluno” de baixa
renda está exposto, diminuísse. E para isso, muitas vezes, usava de situações que esse “risco”
gerava para criar situações de aprendizagem. Faziam isto apostando principalmente, mas não
somente, na arte como prática criativa e instrumento de uma outra maneira educacional que dava
acesso as formas perceptíveis dos sentimentos humanos, desenvolvendo assim, a sensibilidade
das crianças ali inseridas. Isto porque, como bem nos lembram Von Simson, Park e Fernandes
(2001, p.70)
O processo de criação artística é importante no processo educacional, pois a arte
nos sensibiliza para aprendermos a lidarmos com nossos impulsos mais profundos
e a enxergar com nitidez o espaço da consciência. Compreendemos que todos os
processos de criação representam, na origem, tentativas de estruturação, de
experimentação e controle, processos produtivos em que o homem se descobre,
em que ele próprio se articula à medida que passa a se identificar com a matéria.
Sendo assim, entendemos que por estas e tantas outras questões que ainda precisam ser
melhor discutidas e aprofundadas, que a experiência educacional experimentada pela Escola
Piollin durante seus sete primeiros anos de funcionamento tiveram muito do viés desescolarizador
vislumbrado por Illich para a América Latina diante do contexto educativo das décadas de 1970 e
1980. Sabemos que no caso da Piollin, os impulsos políticos – frutos de sentimentos típicos deIX SEMINÁRIO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS “HISTÓRIA, SOCIEDADE E EDUCAÇÃO NO BRASIL”
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uma parcela da juventude brasileira que estava cansada da repressão de um governo militar
ditatorial no que estava no poder a tantos anos ‐ também foram determinantes para a iniciativa da
criação daquilo que Luiz Carlos e Everaldo encontraram como principal instrumento de
transformação de uma realidade que os inquietava tanto como cidadãos, como artistas, uma
escola. Mas não uma escola “comum”, uma escola regular. Criaram uma experiência única, nunca
antes nem conhecida por eles mesmos com a qual todos os gestores empenharam‐se em fazer dar
certo, apesar dos inúmeros desafios diários, até – ao que nos consta – o desligamento de Luiz
Carlos da instituição.
Apesar do desânimo inicial e aparente reflexão e avaliação individual não muito
empolgante de cada gestor/monitor quanto ao trabalho que ajudavam a desenvolver ali, pós o
desligamento de Luiz Carlos a Escola paulatinamente vai buscando encontrar novos contornos
para seguir funcionando sem a presença diária de seu principal impulso. Contudo, afastar‐se de
sua influência parece não ter sido fácil missão, isto porque entendemos que se não havia clareza
da “filosofia”, “metodologia” ou da “educação” que visava a Piollin com Luiz, parece que havia
menos ainda sem ele. O que sentimos é que depois de sua saída só se sabia de uma coisa: era
preciso afastar a dependência que todos (alunos/monitores e gestores) tinham de sua figura e
começar dar prosseguimento ao funcionamento da instituição construindo novos caminhos, ou
seguindo algumas trilhas indicadas por ele anteriormente, mas principalmente, assumindo os
desafios com liberdade para seguirem com seus próprios passos
Dos Anjos (uma das monitoras) coloca o fato do saudosismo de uma Piollin
distante e que todos concordam que são águas passadas, e hoje não se deve
mencionar uma coisa que se passou. Os fantasmas de Luiz Carlos e a Piollin devem
ser esquecidos uma vez que hoje deve renascer das cinzas do Paraíso. (Ata de
reunião ordinária em 22.10.1984)
Os motivos para esse afastamento devem ser mais bem investigados por que podem gerar
outros motes interessantes de problematizações. Mas o que tem nos interessado até aqui é a
constatação de uma experiência inovadora na Paraíba – e que talvez principalmente por isso –
tenha ficado centrada demais na figura de seu principal mentor. Por isso, quando de seu
afastamento o peso das dificuldades que acompanhava as atividades desde a implantação da
Escola parece ter ficado insustentável, e aquele modelo específico educativo experimental a nossoIX SEMINÁRIO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS “HISTÓRIA, SOCIEDADE E EDUCAÇÃO NO BRASIL”
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ver é assim, interrompido pela ausência de seu principal incentivador, dando vez a outras
experiências que sabemostiveram inicio a partir dai.
Nada obstante, à ausência do mentor principal ‐ idealizador de toda esta experiência
educativa ‐ fica claro diante de nossa pesquisa, considerando todas as situações cotidianas citadas
anteriormente – que esta experimentação deixou marcas nas mentes e nas vidas das pessoas que
viveram esta experiência, e que de uma forma ou de outra, buscaram continuar o trabalho de uma
forma adaptada as novas necessidades/realidades a partir do novo contexto apresentado a partir
de 1984.
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