Afreudite – Ano VI, 2010 – n.º 11/12
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PSICANÁLISE E RELIGIÃO
Noêmia Santos Crespo1
As investigações da Antropologia Cultural nos revelam que todas as culturas conheceram
manifestações de sofrimento físico-moral para cujo manejo foi inventado o ofício dos xamãs, feiticeiros
e afins. Todos os que, na atualidade, fazemos da causalidade psíquica o alicerce do nosso afazer, somos
herdeiros dessa tradição. Cabe-nos determinar com rigor os pontos de conexão e de ruptura entre nossa
práxis e a dos nossos predecessores – magos, sacerdotes e profetas.
Entrementes, nossa cultura vem sendo atravessada por um poderoso movimento de deslegitimação de
todas as práticas de manejo do sofrimento psíquico baseadas na eficácia simbólica. O discurso
dominante – capitalismo financeiro de consumo de massa, fortemente enlaçado à tecnociência -
promove um poderoso processo de coisificação e medicalização da dor de existir, tomando o sujeito
como um produto, objeto manipulável como qualquer outro. Tolera ainda, marginalmente, terapêuticas
psicológicas “de resultados”, oferecidas como coadjuvantes subalternas dos tratamentos
psicofarmacológicos de última geração. Em nosso Admirável Mundo Novo, aposta-se na total
homogeneização entre sujeito e objeto; o Santo Graal da pesquisa psicofarmacológica é uma versão
qualquer do Soma, capaz de promover uma felicidade universal, bovina e permanente.
Neste cenário, como ficam as religiões? Já nos idos de 1882, Nietzsche decretou que Deus estava
morto. Muitos outros pensadores, Freud inclusive, profetizaram um ocaso irreversível das religiões
como resultado da expansão do discurso da Ciência. Curiosamente, não é o que vemos na atualidade,
pelo menos não de forma homogênea. As religiões tornaram-se trincheiras de resistência política,
ideológica e cultural de povos historicamente espoliados e subjugados, para os quais a globalização não
tem sido propriamente uma bênção. Conceitos como os de guerra santa e martírio agradável a Deus
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conquistaram uma surpreendente atualidade no mundo contemporâneo, onde fazem contraponto ao
ethos dominante do conforto e do consumo. Talvez como resposta a irrupções brutais desse neofundamentalismo
anti-Ocidente – como os episódios de 11 de setembro - o discurso religioso de matiz
reacionário vem apresentando uma notável ressurgência também no cenário cultural e político dos
Estados Unidos. Lá, o neoconservadorismo político, o militarismo e o imperialismo têm lastro
poderoso em certos grupos religiosos. Muitos neocons são também theocons. Já em países como o
Brasil, as classes populares – e outras mais remediadas também - vêm buscando, em diferentes
religiões, operadores simbólicos acessíveis para o desenvolvimento de laços de solidariedade, ajuda
mútua, conforto espiritual e resistência contra a barbárie. A observação imparcial desse movimento
revela um quadro paradoxal, onde experiências religiosas de autenticidade indiscutível se mesclam às
mais variadas formas de exploração e abuso da fé popular.
Que lugar existiria para a Psicanálise no mundo contemporâneo, onde exorcismos, fundamentalismos,
neo-conservadorismos, terapêuticas e teologias de resultados, de um lado - e psicofármacos, de outro
lado, disputam ou partilham o antigo mercado das feitiçarias?
Diremos, à guisa de aposta, que a Psicanálise terá lugar enquanto puder acolher o lixo subjetivo da
nossa cultura: o sintoma, a inibição, a angústia, no que resistem à redução, à domesticação, à
dominação pelos saberes hegemônicos.
A aposta freudiana, que para muitos soa pessimista – mas não para nós -, é de que o mal-estar na
civilização não tem cura. Não haverá Soma nem doutrina capaz de nos tornar formigas harmoniosas,
legumes felizes para sempre. Buscaremos anestesia nos psicofármacos, até nos rebelarmos contra esta
vida de zumbis capazes de engolir qualquer coisa que nos mantenha “funcionando”. Buscaremos
respostas nas religiões, até descobrirmos que mesmo assim, precisamos inventar nosso modo pessoal
de confrontar o que todas elas reconhecem como o Mistério infranqueável, o grande e insondável
Silêncio dos deuses. As respostas genéricas não nos bastam. Deus não nos poupa da inibição, do
sintoma e da angústia. Até certos relatos dos místicos nos revelam: Deus se esconde e se cala. Ele falta;
por isso mesmo, aliás, para alguns, é possível amá-lo...
A Psicanálise é a presentificação da eficácia simbólica num mundo onde Deus está morto. Não, é claro,
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que não se acredite mais em Deus, ou nos deuses. Mas o Deus do dogma, do consenso universal
compulsivo, da censura generalizada a toda dúvida, esse está morto numa cultura onde somos
adestrados, desde que nascemos, na famosa dúvida metódica do père Descartes. Agora, questionar as
tradições e verdades absolutas não é mais proibido, ou feito em surdina do pré-consciente: é
obrigatório. Isto significa que acreditar em Deus na atualidade supõe admitir explicitamente a hipótese
de que, afinal, Deus pode muito bem não existir. Ou pode ser muito diferente do Deus dos meus pais e
avós, e parecido com o Deus de meus vizinhos (de rua ou de mundo, afinal, hoje somos globalizados...)
- cuja religião tem dogmas antagônicos aos da minha. As certezas que abrigo podem ser tão ilusórias
quanto as do meu grande amor, por meu próximo ou por mim mesmo, que se revelou uma mentira –
ou, como as certezas que eu vivo nos meus sonhos, referir-se a um real estranhamente familiar, que só
se apresenta para mim sob uma roupagem de despiste, ou sob um clarão de horror.
A Psicanálise presentifica a eficácia simbólica num mundo onde o buraco no simbólico não pode mais
ser facilmente encoberto. O sujeito da contemporaneidade demanda respostas, doutrinas e certezas,
com a mesma desesperada rapidez com que denuncia sua insuficiência, tão logo recebe o que demanda.
“Não é isso!” Sabedorias, virtude, bons conselhos, não poderíamos viver sem isso. E disso temos
muito, até talvez em demasia. Nossa cultura globalizada nos dá acesso a um inesgotável cabedal de
sistemas filosóficos e religiosos, saberes e ideologias, desenvolvidos por nossos semelhantes agora
mesmo, ou noutros tempos e lugares - sem mencionar a possibilidade de interagirmos virtualmente, em
tempo real, com pessoas de qualquer lugar do mundo. Nessa Babel de verdades precárias e certezas em
conflito, como encontraríamos o bálsamo para nosso mal-estar - aquele que teima em desafiar o que
sabemos, ou julgamos saber?
Freud apostava que esse bálsamo não existe nem existirá. Apostava que seria possível desvelar a causa
de nosso mal-estar subjetivo, pessoal, através de um resgate ao refugo da nossa produção psíquica –
sonhos, sintomas, esquisitices, lapsos, atos falhos, transferência. Apostava que poderíamos inventar
uma resposta singular para a nossa orfandade. Lacan, que vai além de Freud neste ponto, afirma até ser
possível chegar ao entusiasmo, após atravessarmos nossos pontos de horror pessoal.
Dirão talvez que isso tudo é um luxo para privilegiados, um escândalo. Houve épocas em que aprender
a ler era conotado da mesma forma. Como a psicanálise hoje, o letramento era privilégio acessível a
poucos. Ora, a psicanálise é um processo de letramento, um tanto mais longo e penoso que o beabá, já
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que se trata de ler e refazer uma escritura singular - da linguagem, dos discursos que nos banharam,
sobre nossa carne, ou melhor, com a nossa carne.
Como a experiência poética, a mística, o amor, a Psicanálise não está aberta a todos. Poucos são
chamados, menos ainda escolhidos. Temos aqui outro escândalo sem remédio, dentre os inúmeros que a
experiência de falantes nos obriga a suportar.
Tenhamos, então, paciência, e perseveremos na via que nosso sintoma nos faculta.
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