Afreudite – Ano VI, 2010 – n.º 11/12
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ALGUMAS PROPOSTAS E REGRAS PARA A DIRECÇÃO DO ESPÍRITO NO
ESTABELECIMENTO DE UMA RELAÇÃO ENTRE PSICANÁLISE E
CULTURA1
José Martinho2
PROPOSTAS
Proponho que consideremos a Psicanálise e a Cultura (eventualmente a «Cultura
Portuguesa») como dois campos distintos, mas podendo – é a minha hipótese para a
presente investigação - tecer uma relação entre si. Proponho chamar a esta relação a
«intersecção» dos dois conjuntos.
Não há linguagem que possa ser elevada ao estatuto de metalinguagem, para deste topo
hierárquico observar, avaliar e julgar uma ou todas as outras linguagens. É obvio que o
discurso do analista, nomeadamente de orientação lacaniana, também não é essa
metalinguagem que não existe.
Evitemos igualmente a tentação especulativa de uma terceira via, de uma disciplina
(nova genealogia do poder ou arqueologia do saber, por exemplo) que não seria a
1 Este texto resulta de uma reflexão feita após um Encontro sobre “Psicanálise e Cultura
Portuguesa”, Fundação Calouste Gulbenkian, 29 e 29 de Junho 2010. (Programa em:
http://www.ucp.pt/site/resources/documents/FCH/CECC/programa_psic.pdf).
2 Membro da Associação Mundial de Psicanálise, Director do Centro de Estudos de Psicanálise
e da revista Afreudite, fundador da Antena do Campo Freudiano.
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Psicanálise, nem nenhuma das disciplinas já existentes no espaço cultural, mas a futura
metalinguagem da relação entre a Psicanálise e a Cultura.
Basta dizer que a linguagem psicanalítica pode entrar num intercâmbio com as
linguagens que se encontram no campo da cultura, a linguagem poética, retórica,
política, a linguagem da religião, da filosofia, da arte, do direito, etc. Todavia, a
«intersecção» a que me referi não é uma interlocução, um diálogo ou uma troca de
palavras procurando consensos, ou visando resolver os eventuais diferendos que possam
existir entre psicanalistas, intelectuais e outros trabalhadores do espaço cultural.
A conjunção «e» que liga «Psicanálise e Cultura» também não é sinónimo de uma
cópula entre as duas, com os efeitos nefastos que esta pseudo união podia ter sobre a
autonomia de um ou dos dois domínios.
Peço que se considere a «intersecção» como um real lógico ou que apenas encontra a
sua consistência a partir da lógica simbólica.
Chamemos à Psicanálise o conjunto P, e à Cultura o conjunto C. Na teoria dos
conjuntos, a intersecção de P e C é o conjunto de elementos que pertencem
simultaneamente a P e a C. Represento esta intersecção através de um diagrama de
Venn:
P C
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O conjunto intermédio (a vermelho na figura) escreve-se P∩C, e designa a intersecção
Psicanálise e Cultura. Os elementos comuns a P e C são, pois, termos que pertencem
aos dois conjuntos. Por exemplo, «Narciso» e «Édipo» são nomes ou mais precisamente
significantes que se encontram tanto na Psicanálise, como na Cultura.
É por aí que se deve começar, ou seja, para obter a intersecção P e C, a primeira coisa a
ter em conta é a dimensão do significante. Só depois é que vem a semântica, por
exemplo a diferença conceptual que pode existir entre o «complexo» e o «mito» de
Édipo.
Na lógica dos conjuntos, cada conjunto contém o conjunto vazio (Ø), ou seja, o
conjunto sem elementos é, por definição, um subconjunto de todo o conjunto. Lembro,
ainda, que a intersecção de P e Ø é o conjunto vazio; mutatis mutandis para a
intersecção de C e Ø.
Há, pois, uma intersecção entre conjuntos que não concerne os seus elementos, mas a
sua parte vazia. A não anulação deste vazio é aquilo que pode garantir o avanço da
investigação, o seu aspecto de criação ex nihilo, assim como o seu eventual sucesso.
CINCO REGRAS
1ª – O investigador que se interessa pela Psicanálise deve, como todos os psicanalistas,
partir de Freud. Melhor seria ainda que partisse de Freud lido à luz de Lacan. Recorrer a
outros psicanalistas, como Klein, Winnicot ou Bion é correr um risco, porque se é
facilmente conduzido a uma tentativa de anexação médico-psicológica da obra (literária,
pictural ou outra), ou à sua explicação pela biografia do suposto «autor». Em todos os
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casos, o crucial é sempre o que dizem e escrevem os psicanalistas, e não os
«pensadores» que não puderam ou quiseram interessar-se pela psicanálise, ou aqueles
que apenas a abordam do exterior.
2ª – Do mesmo modo que Freud dizia que o artista precede sempre o cientista, Lacan
aconselhou o psicanalista (ou qualquer outro interessado pela psicanálise) a não brincar
ao psicólogo diante de uma obra. A obra que o atrai deve ser considerada como um
objecto inédito; como obra-prima, pode até ser o objecto por excelência do sujeito.3
Assim, mais do que analisar a obra, convém abordá-la como a analista do intérprete,
autor, leitor ou espectador.
3ª – Dado que não existe obra sem linguagem, o melhor método é seguir a rede formal
da obra, antes de qualquer estabelecimento do seu sentido.
4ª – A partir dessa rede formal, o investigador deve procurar reduzir – mesmo que isto
nem sempre seja viável – a obra ao que ela tem de mais real. Cercar o real da obra, para
o psicanalista, equivale primeiramente à reconstrução do seu núcleo problemático, o
«fantasma fundamental»4 que a habita mais do que a gera.
5ª – Por fim, o estilo é a modalidade pela qual a obra ata sintomaticamente o real, o
simbólico e o imaginário. Esta sublimação ou superação da repetição do trauma inicial –
no seu grau zero o encontro do espécimen com a linguagem que produz o mal-entendido
e o mal-estar individual e colectivo - é o ponto onde melhor se firma a singularidade de
um dizer e fazer, se afirma a originalidade da obra.
3 Lacan designou o objecto da/na psicanálise «objecto a»; e o sujeito que lhe corresponde o
sujeito dividido do significante (). O «objecto a» não é um dado natural, nem objectivo, mas o
suplemento do gozo que falta a cada vivente humano em virtude da sua alienação à linguagem e
à socialização familiar; enquanto objecto perdido e causa do desejo, o «objecto a» tem o sentido
negativo e positivo de um «plus-de-jouir».
4 A fórmula lacaniana do «fantasma fundamental» escreve-se a.
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