quarta-feira, 17 de maio de 2017

Diminuir a autonomia docente cria apenas soluções paliativas, afirma António Nóvoa

EDIÇÃO 239 ENTREVISTAS FORMAÇÃO DOCENTE 
Em entrevista à Educação, reitor honorário da Universidade de Lisboa também defendeu políticas de dedicação exclusiva para os professores e o investimento na formação inicial e continuada
O professor português An­tónio Manoel Seixas Sampaio da Nóvoa, ou simplesmente António Nóvoa, como é conhecido em suas aparições pelo Brasil, é uma personalidade de curiosidade intelectual incessante. Aos 62 anos, mantém atividade contínua dedicada à educação, mas não só. É professor do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, da qual é também reitor honorário, depois de atuar como reitor executivo por duas gestões, numa das quais foi um dos responsáveis pela fusão da Universidade de Lisboa (tida como a “Clássica”) à Universidade Técnica de Lisboa, com a perspectiva de unir diferentes dimensões do conhecimento. Em 2014, foi professor visitante da Universidade de Brasília (UnB). E no ano passado foi candidato independente às eleições presidenciais portuguesas, angariando apoios à esquerda do eleitorado.
Sua profissão de fé, no entanto, é a defesa intransigente das necessidades de formação docente – inicial e continuada – e da constituição de uma identidade profissional que possa assegurar aos professores referências de atuação mais claras. Seu contato com o tema não vem de hoje. Seu doutorado em ciências da educação, defendido em 1986 junto à Universidade de Genebra, versava sobre a história do processo de profissionalização da atividade docente em Portugal, entre os séculos 18 e 20. Nóvoa fez ainda um segundo doutoramento, na Universidade Paris-Sorbonne, em história moderna e contemporânea.
Ao analisar o atual contexto brasileiro, diz que o estímulo a políticas de dedicação exclusiva para os docentes pode ter resultados bastante fecundos. “É um passo decisivo para melhorar a escola pública brasileira, um passo que terá consequências muito mais significativas do que qualquer reforma…”
A entrevista a seguir, concedida ao editor Rubem Barros, foi realizada via e-mail logo após a vinda de Nóvoa ao Brasil para participar da cerimônia de abertura do Prêmio Itaú-Unicef, realizada em São Paulo no dia 27 de março último.

O Brasil tem grande tradição de usufruto privado dos bens e espaços públicos. O que o senhor diria que pode ajudar a romper com isso para que possamos vislumbrar não só o espaço público da educação, mas o espaço público da cidadania, de modo geral?
Numa das suas obras de referência, Democracia e educação, John Dewey afirma que há mais do que um mero nexo verbal entre as palavras comum, comunicação e comunidade. Não há escola se não houver trabalho em comum sobre o conhecimento. Não há aprendizagem sem comunicação. Não há educação se não nos constituirmos em comunidade de trabalho. Não é por acaso que, no Brasil, John Dewey foi traduzido por Anísio Teixeira, que disse: “Só existirá democracia no Brasil no dia em que se montar no país a máquina que prepara as democracias. Essa máquina é a escola pública”. A construção de um espaço público de cidadania, de democracia e de liberdade, depende, e muito, da escola, acima de tudo da escola pública. Aqui, gera-se a consciência de uma responsabilidade e de uma partilha que não permite a captura privada de bens e espaços públicos.
O senhor professa a potência das práticas pedagógicas, de um agir docente coletivo e da escola. Mas, no Brasil, essa potência acaba minada pelas amarras de uma burocracia mais preocupada com leis e normas do que com os sujeitos que estão na escola. É só questão de dar autonomia às escolas, ou há aí um vezo cultural e um processo no qual se escrevem muitas leis e normas por descrença (justificada?) na formação dos professores e na sua capacidade de serem autônomos?
Há muitos argumentos que justificam a diminuição do espaço de autonomia dos professores: “não têm a formação necessária”, “não estão suficientemente preparados”, “é melhor que apliquem teorias ou normas pois não têm condições para serem autónomos”, “é preferível que usem materiais e livros produzidos por outros do que tentarem inventar a sua própria prática pedagógica” etc. etc. Esses argumentos não são descabidos, mas, a prazo, nada resolvem e apenas contribuem para acentuar o problema que dizem querer resolver. Só há uma saída – investir seriamente na formação de professores, inicial e continuada, reforçando os professores e dando-lhes condições para o seu desenvolvimento profissional e para um trabalho colaborativo nas escolas. É este o caminho que tem futuro.
Difícil não pensar hoje que o “espaço comum de expressão das diferenças”, na perspectiva de Hannah Arendt que o senhor menciona, acaba por tornar-se apenas a luta de diversas visões fragmentárias de mundo por se imporem umas às outras no espaço público. Do que o senhor conhece do Brasil, esse acirramento é consonante com o que acontece em outros paí­ses (Estados Unidos, por exemplo), ou maior do que neles?
Há duas acepções muitos diferentes da palavra “comunidade”: aquilo que nos identifica e nos une, uma comunidade de pertença que constrói a nossa identidade; ou aquilo que fazemos em comum, uma comunidade de trabalho que constrói a nossa presença no mundo. O que me interessa, na escola, é esta segunda dimensão ou, dito à maneira de Hannah Arendt, a liberdade funda-se numa ação que busca o interesse comum, a criação de uma realidade partilhada. Só há educação quando conseguimos passar das visões fragmentárias à criação de uma realidade partilhada. Há duas tarefas imprescindíveis na escola: aprender a trabalhar (conhecimento) e aprender a conviver (a viver com o outro). Estas são as tarefas que dão sentido à escola.
Médicos e advogados, de modo geral, têm mais respeito social do que os professores. Isso, de certa forma, passa pela seletividade no ingresso para o exercício da carreira. Isso poderia – de forma combinada com outras ações – ajudar a valorizar a carreira docente?

Sem dúvida. É preciso cuidar melhor do ingresso na carreira docente. Entrar numa licenciatura é escolher um percurso acadêmico, mas é também escolher uma profissão. Por isso, a formação de professores deve assumir um cariz [aspecto] profissional, tal como a formação dos médicos, dos engenheiros ou dos arquitetos. A valorização da carreira docente começa nas licenciaturas, na criação de um ambiente acadêmico e profissional estimulante. A fragmentação de programas e licenciaturas tem impedido a coesão e coerência do campo da formação de professores dentro das universidades. A criação nas universidades de uma “casa comum da formação e da profissão”, insisto, da formação e da profissão, parece-me um passo necessário para os próximos tempos. Se não reconhecermos que a formação de professores se destina a preparar os jovens para uma profissão, e se não envolvermos os professores em exercício na formação dos mais novos, não conseguiremos definir novos modelos de formação inicial e de indução profissional (residência docente).

Como o senhor vê a reforma do ensino médio aprovada pelo governo brasileiro? Daria algum conselho em relação à sua implementação?

Nas últimas décadas, muitos países estenderam a obrigatoriedade escolar até aos 16, 17 ou 18 anos, abrangendo o que se designa por “upper secondary education” ou “high school” e que corresponde, com algumas diferenças, ao vosso ensino médio. Quando este nível de ensino deixou de ser apenas para uma percentagem reduzida de jovens e se tornou obrigatório, obviamente que houve necessidade de proceder a reformas e mudanças. É também o caso do Brasil, pois o ensino médio depara-se, reconhecidamente, com grandes dificuldades e deficiências. Mas é preciso cuidado para que essas reformas não sejam uma espécie de “regresso ao passado”, restringindo as disciplinas de formação dos jovens e encaminhando-os prematuramente para vias vocacionais ou profissionalizantes. Mais importante do que definir áreas prioritárias é construir pedagogias que valorizem menos os conteúdos e mais as linguagens (científica, literária, artística…). Mais importante do que empurrar crianças para vias profissionais é construir uma “escola única do trabalho”, como escreveu um dos mais importantes pensadores portugueses do século 20, António Sérgio [1883-1969, escreveu sobre temas diversos, como epistemologia, educação e política, entre outros]. O que fazer? Sem desvalorizar as reformas curriculares, é preciso que as políticas públicas se concentrem mais nas condições e nas dinâmicas. Condições para que as escolas e os professores cumpram a sua missão. Apoio às dinâmicas mais interessantes que existem nas escolas, em vez de impor reformas e burocracias que, muitas vezes, as asfixiam.

Há, na reforma, uma ênfase no ensino técnico profissional, hoje responsável por apenas 7% das matrículas do ensino médio, contra cerca de 50% de Portugal e Alemanha e 55% da Itália. Na Alemanha, porém, há uma articulação bem azeitada com a indústria. O que é importante para isso? Como garantir que essa formação extraescolar seja significativa?  

Historicamente, o ensino médio teve sempre dificuldade em definir a sua identidade. Reservado para alguns jovens, assumiu-se, muitas vezes, apenas como um “preparatório” para o ensino superior. Era uma concepção inadequada no passado, mas totalmente inaceitável nos dias de hoje, quando queremos que todos os jovens frequentem o ensino médio. Porém, é preciso cuidado para não cair em visões obsoletas de vias duais, que reproduzem desigualdades e consagram destinos sociais. As sociedades contemporâneas deparam-se com duas realidades muito diferentes. Por um lado, um aumento exponencial da esperança de vida, que, no decurso do século 20, passou de 40 para 80 anos. Muitos cientistas afirmam mesmo que, dentro de pouco tempo, as pessoas viverão em média mais de 100 anos. Numa situação destas, na qual nos vamos habituar a viver simultaneamente com quatro gerações (filhos, pais, avós e bisavós), não faz sentido empurrar os jovens, cada vez mais cedo, para vias profissionais. Por outro lado, uma das principais evoluções tecnológicas aponta para uma automação de 30% a 40% do trabalho hoje realizado por humanos. Isto significa que a visão tradicional da formação profissional está a mudar muito e incorpora, inevitavelmente, uma base de conhecimento, de ciência e de cultura, e não só aplicações técnicas.
Construir um ensino médio mais coerente, para todos os jovens, é fundamental. Construir um ensino médio que não seja puramente “acadêmico”, e que tenha uma relação com a vida, a sociedade e o trabalho, é fundamental. Mas isso obriga a pensar a contemporaneidade social e a realidade pessoal dos jovens, em vez de reproduzir visões arcaicas do ensino técnico e profissional.

Faltam às políticas públicas brasileiras mecanismos de incentivo ou indução à dedicação exclusiva dos docentes, visando fixá-los em uma escola e, assim, criar uma ideia de unidade escolar efetiva. Quanto isso poderia ajudar a melhorar a educação?

Sim, essa é uma das medidas mais importantes de política pública. Na grande maioria dos países, os professores exercem as suas funções apenas numa escola, podendo assim dedicar-se a um trabalho regular de colaboração, de formação continuada na escola, de preparação e compromisso com uma dada comunidade escolar e social. É um passo decisivo para melhorar a escola pública brasileira, um passo que terá consequências muito mais significativas do que qualquer reforma…

O Brasil está ameaçado pela falta de novos docentes e pela aposentadoria, nos próximos 10 anos, de cerca de 1 milhão de professores da educação básica. Ao mesmo tempo, há um grande contingente de profissionais com alta formação em suas áreas que estão sendo alijados do mercado de trabalho formal em função da idade. Muitos deles gostariam de dar aulas. Como fazer para não desperdiçar esse capital humano num país tão carente dele?

A forma como a pergunta está elaborada é muito significativa. Por que razão alguém seria alijado do mercado de trabalho e recuperado para o ensino? Por que razão essa pessoa teria um “capital humano”, conceito que não uso, dispensável para o que sempre fez, mas utilizável no ensino? Não, essa ideia é difícil de sustentar, por duas razões principais. Primeira – Alguém que exerça uma atividade médica sem a devida formação arrisca-se a ser preso. Por que razão aceitaríamos que alguém se dedicasse ao ensino sem a necessária formação? Segunda – Os alunos têm direito a ser educados por gerações próximas, com maiores afinidades com eles e uma melhor compreensão dos seus hábitos e modos de vida. Por que razão deixaríamos a educação dos nossos jovens ao cuidado de gerações de aposentados? Para além do mais, essa ideia assenta num equívoco que é útil desfazer: a missão de um professor de matemática (ou de história ou de ciências) não é ensinar matemática; a sua missão é formar os alunos através da matemática, porque não há cidadania sem a aquisição dos conhecimentos científicos e culturais da humanidade. Na língua portuguesa, a palavra “disciplina” tem justamente esse duplo conteúdo: a disciplina como conteúdo e a disciplina como forma de organização do pensamento e do comportamento, não apenas de fora para dentro, mas também de dentro para fora. É através das disciplinas que nos disciplinamos, que nos educamos. Abrir o ensino a pessoas sem formação, independentemente do conhecimento que possam ter nas suas áreas, é uma ideia inoportuna e errada, que terá consequências graves para o prestígio e valorização da carreira docente.

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