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segunda-feira, 10 de setembro de 2012
“E agora o assunto é trabalho”: organização da
experiência social, categorização e produção de
sentidos no programa manos e minas
Anna Christina Bentes1
Natália Ferrari2
Resumo
Neste artigo apresentamos análises iniciais de como ocorrem os processos de elaboração e reelaboração
do tópico “trabalho” em um programa televisivo. Em função disso, nossos objetivos são: (i) apresentar
uma breve discussão sobre as noções de frame, referenciação e tópico discursivo a partir de
perspectivas teóricas de base sociocognitivista; (ii) apresentar o contexto no qual se inserem as sequências
textuais analisadas; e (iii) analisar algumas sequências textuais realizadas pelos participantes do
programa de forma a mostrar como as atividades de instauração de tópicos discursivos e as atividades
referenciais que ocorrem no curso das interações dentro do programa auxiliam tanto na compreensão
do contínuo processo de elaboração e reelaboração de frames relacionados ao tópico “trabalho”, como
também na busca pela tipificação dos registros linguísticos. As análises empreendidas corroboram a
afirmação de Van Dijk (1996) para quem os frames desempenham um importante papel na construção
de modelos pessoais novos dos falantes, ou mesmo na atualização dos velhos, o que os situa entre memórias
particulares e “scripts sociais”. Vimos que a cada interação velhos frames são ativados e mantidos,
ao mesmo tempo em que reframings são operados. Por fim, as análises revelam que as estratégias
de referenciação mobilizadas pelos sujeitos se mostraram fundamentais para a derivação dos frames
básicos e transformacionais em jogo. Ainda há muito o que dizer sobre as relações intrínsecas entre a
instauração de um determinado tópico, a ativação de determinados frames e as atividades de referenciação,
mas nossas análises iniciais apontam para o fato de que a emergência de um sistema categorial
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produção de sentidos no programa Manos e Minas
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fluido (nos termos de Marcuschi, 2007) relativo ao tópico “trabalho” não deixa de contribuir para a
delimitação e estabilização dos frames (mesmo os de caráter transformacional) que emergem a partir
da instauração desse tópico.
Palavras-chave: categorização social, referenciação, frame, tópico discursivo, programa Manos
e Minas.
Abstract
In this article, we present initial analysis about how a specific discursive topic (“work”) is (re) elaborated
by different social actors during a brazilian televison program addressed to urban periphery of
São Paulo. Our objectives are: (i) to present a brief theoretical discussion about the notions of “frame’,
“referential practices” and “discursive topic” considering sociocognitive perspectives; (ii) to present the
social context of the textual sequences that are analysed; (iii) to analyse some textual sequences produced
by the participants of the television program in order to to show how emerging discursive topics
and referential practices help to establish certain basic and transformational frames related to the topic
“work”. The analyses corroborates the postulation that frames play an important role in the construction
and updating of context models. They also reveal how referential strategies are of fundamental
importance for the establishment of basic and transformational frames related to the curren topic and
to general social categorizations.
Keywords: social categorization, referential practices, discursive topic, television program.
O trabalho é a fonte de toda riqueza, afirmam os economistas. Assim é, com
efeito, ao lado da natureza, encarregada de fornecer os materiais que ele converte
em riqueza. O trabalho, porém, é muitíssimo mais do que isso. É a condição básica
e fundamental de toda a vida humana. E em tal grau que, até certo ponto, podemos
afirmar que o trabalho criou o próprio homem. (F. Engels)
Introdução
A citação acima é importante e inspiradora de nossas reflexões neste artigo porque aponta
diretamente para o fato histórico de que o ser social “homem” resulta justamente da necessidade de
desenvolver ações conjuntas. Podemos dizer, então, que, para o autor, este é um traço caracterizador da
noção de “trabalho”: sua importância fundamental na construção da humanidade.
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3. O programa televisivo Manos e Minas, programa de auditório e de variedades produzido e veiculado pela TV
Cultura do Estado de São Paulo desde abril de 2008, faz parte do banco de dados do Projeto de Pesquisa “É nóis
na fita: a formação de registros e a elaboração de estilos no campo da cultura popular paulista”, financiado pela
FAPESP (Proc. No. 2009/08369-8). O site do projeto é www.projetonoisnafita.com.br
4. Em nossos trabalhos, temos assumido a concepção de registro postulada por Agha (2007:147-8), “um registro
é um modelo reflexivo que avalia um repertório semiótico (ou conjuntos de repertórios) como apropriados para
específicos tipos de conduta (tais como a conduta de uma dada prática social), para classificações de pessoas que
apresentam tal conduta e para desempenhar papéis (personas, identidades) e estabelecer relações entre esses
papéis”. Os recursos que contam como elementos de um dado repertório podem ser de natureza lingüística ou de
outra natureza. Assim, os “registros são formações históricas que podem ser apreendidas em processos grupais de
valorização e contra-valorização, exibindo mudanças ao longo do tempo tanto na forma como no valor”.
Por que seria importante, então, tentar compreender, mesmo que apenas inicialmente, como
ocorrem os processos de elaboração e reelaboração do tópico “trabalho” em um programa televisivo3?
Em primeiro lugar, porque a instauração desse tópico por parte do apresentador do programa
pressupõe o partilhamento de conhecimentos, crenças e pontos de vista variados que se mostram
relevantes para as comunidades para as quais o programa é destinado, mas também para a sociedade
brasileira em geral. Além disso, nas sociedades capitalistas, os sujeitos ressignificam a si e aos outros
por meio do “trabalho”, seja porque a possibilidade da falta do trabalho os leva a questionar os seus
próprios sentidos de vida, seja porque negam radicalmente sua importância.
Em segundo lugar, acreditamos que a observação mais detalhada da maneira como são construídos,
exibidos e compreendidos os conhecimentos e os pontos de vista que envolvem esse tópico
pode servir de reforço aos objetivos do próprio programa e também pode contribuir para comecemos
a delinear propostas sobre os graus de tipificação de registros2 por meio da análise de recursos textuais
específicos, tais como as estratégias de referenciação e de manutenção do tópico. A nosso ver, estas estratégias
textuais são responsáveis pela contínua ativação e (re)elaboração de frames relativos ao tópico
“trabalho”.
Em função disso, nossos objetivos ao longo deste artigo são: (i) apresentar uma breve discussão
sobre as noções de frame, referenciação e tópico discursivo a partir de perspectivas teóricas de base
sociocognitivista; (ii) apresentar o contexto no qual se inserem as sequências textuais analisadas; e (iii)
analisar algumas sequências textuais realizadas pelos participantes do programa de forma a mostrar
como as atividades de instauração de tópicos discursivos e as atividades referenciais que ocorrem no
curso das interações dentro do programa auxiliam tanto na compreensão do contínuo processo de
elaboração e reelaboração de frames relacionados ao tópico “trabalho”, como também na busca pela
tipificação dos registros linguísticos.
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Frame, uma noção “polissêmica”, “metafórica”
Para Morato (2010), a noção de frame – um termo polissêmico, segundo a autora – pressupõe
e remete a construtos teóricos diferenciados que foram formulados para “dar conta teorica e empiricamente,
da forma pela qual os indivíduos constroem (compartilham, modificam, organizam, regulam,
representam, justificam, reconhecem) a experiência de conhecimento de mundo.” (p. 94) A autora
ressalta, com base em vários autores dos campos da Psicologia, dos estudos em Inteligência Artificial
e da Linguística, que diferentes termos procuram recobrir o mesmo interesse, a saber, o de melhor
compreender a natureza sociocognitiva das práticas de linguagem. Para a autora, a noção de frame está
sempre relacionada a estruturas de expectativa, isto é “não se trata de algo concebido a priori e nem de
forma independente em relação a nossas experiências sócio-culturais; pelo contrário, dependem dos
atos de significação e, portanto, das práticas largamente mediadas por linguagem.” (p. 95)
A autora chama a atenção para o fato de que apesar de frames serem concebidos, de maneira
geral, como “conjuntos ou blocos de conhecimentos inter-relacionáveis que, incorporados por meio
de práticas sociais nas quais emergem e por meio das quais se reconstroem, atuam na organização de
nossas experiências e são reciprocamente por elas organizados” (p.98), ainda perduram muitas discordâncias
sobre qual critério considerar como central para a definição de frame.
Em estudo anterior, Ensink e Sauer (2003) afirmam que a noção de frame, quando usada de
forma a auxiliar análises do discurso, é necessariamente metafórica porque apresenta uma dupla função:
estruturar compreensões das espacialidades e/ou das temporalidades do mundo social. Os frames
seriam, então, formas estruturadas de compreensão de como funciona o mundo social e isso significa,
em última instância, que os sujeitos constroem interpretações intersubjetivas tanto das situações
comunicativas como dos conhecimentos (gerais e específicos) que estão em jogo nas interações e nas
produções discursivas.
Para uma melhor compreensão dessa metáfora conceitual, os autores apresentam brevemente
as diferentes perspectivas que postularam a noção de frame e, em seguida, apresentam um agrupamento
desses estudos em dois grandes eixos de significação, que, para eles, são diferentes formas de
se compreender essa metáfora: os frames de conhecimento e os frames interativos. Um frame de conhecimento,
sob essa perspectiva, é um padrão cognitivo disponível usado na percepção de forma a
construir um sentido sobre o material percebido por meio da “imposição” daquele padrão e de seus
“traços” sobre esse material.5 Já os frames interativos teriam sido indiretamente definidos por Gumperz
5. “A knowledge frame is a cognitively available pattern used in perception in order to make sense of the perceived
material by ‘imposing’ that patttern and its features on that material.”
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(1982) ao postular a noção de “contextualização”: as pessoas, ao se engajarem em um tipo de atividade
conjunta por meio da linguagem, necessariamente identificariam “as trocas conversacionais específicas
como representativas de atividades socioculturalmente familiares.” (p. 162) Sendo assim, os frames
interativos - que seriam, segundo os autores, um tipo de frame de conhecimento -, consistiram em
um conhecimento compartilhado sobre o que está acontecendo na interação, ou seja, sobre o tipo de
atividade na qual os atores estam envolvidos no curso das interações sociais. Essa subdivisão proposta
pelos autores toma como base principalmente as postulações de Tannen e Wallat (1987 [2002]).
Em seu trabalho individual na mesma publicação, Ensink (2003) postula, então, uma subdivisão
do frame interacional em dois tipos: os frames interacionais próprios, que consistiram nos
conhecimentos mobilizados sobre as interações (ou os tipos de atividades) em si, e os frames transformacionais,
no interior dos quais os frames interacionais próprios seriam modificados. Essa postulação
de Ensink baseia-se na distinção proposta por Goffman (1974) entre frames primários (concebidos,
a grosso modo, como eventos ou objetos), keys e fabricações. Em função do espaço que aqui temos,
apenas indicaremos os princípios que estão na base dessa postulação de “frame transformacional”:
1. um frame básico (ou primário) está contido em um frame transformacional;6
2. frames (tanto primários como keys) são previamente conhecidos pelos interlocutores,
mas as fabricações não o são;7
3. colchetes indicam fronteiras entre os frames;8
4. o frame mais externo determina qual é o evento percebido ‘na realidade’;9
Este interesse pela dinâmica contextual pode ser observado nos trabalhos de Teun Van Dijk,
autor que, juntamente com Erving Goffman e John Gumperz, é responsável pela implementação de
uma agenda de base sociocognitiva para a análise das interações sociais e dos discursos. Segundo Van
Dijk (1996), a inserção dos sujeitos falantes em uma dada sociedade pressupõe que estes necessariamente
compartilhem modelos estandartizados de eventos mais freqüentes nas práticas lingüísticas e
cognitivas daquela comunidade de fala, denominados frames.
Os frames, de acordo com Van Dijk (1996), têm um importante papel na construção de modelos
pessoais novos dos falantes, ou mesmo na atualização dos velhos, o que os situa entre memórias
particulares e “scripts sociais”. Ainda segundo o autor, a depender do grupo social no qual se inserem
6. “A basic frame (a primary frame) is contained within the transforming frame (key or fabrication)”
7. “Frames (both primary, and keys) are supposed to be mutually known, but fabrications are not.”
8. “Brackets indicate border-lines between frames.”
9. “The outside frame determines what will be seen as the status of the perceived event ‘in reality’.
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os interactantes, certos aspectos de maior relevância para aquela comunidade são focalizados pelos/
nos modelos, ainda que existam formas mais pessoais, individuais e mais variáveis de organização esquemática
das propriedades do mundo pessoal e social dos sujeitos.
Frames, categorização social e referenciação discursiva
A noção de frame encontra-se intimamente ligada à de referência lingüística. A concepção de
referência lingüística adotada neste estudo não é a que pressupõe uma relação especular entre os signos
lingüísticos e os objetos do mundo. Assumimos aqui aos estudos que têm como base uma perspectiva
não-referencialista (Mondada e Dubois, 2003). Assim, o enfoque sobre a relação entre palavras e coisas
deve centrar-se nas atividades de natureza intersubjetiva e sociocognitiva que se estabelecem entre os
falantes quando da (re)elaboração dos chamados objetos de discurso.
Para Koch (2011), na atividade discursiva, os falantes se utilizam do material lingüístico que
têm a sua disposição para “representar estados de coisas, com vistas à concretização de sua proposta
de sentido.” (p. 61) Para referir, os falantes lançam mão de três principais estratégias de referenciação,
responsáveis pela reelaboração e modificação do modelo textual, quais sejam, construção/ativação;
reconstrução/reativação e desfocalização/desativação dos objetos-de-discurso (KOCH, 2011, p. 62).
A autora assume presupostos de base etnometodológica e discursiva em relação às atividades referenciais,
compreendendo essas atividades como resultantes de procedimentos linguísticos e sociocognitivos
realizados pelos sujeitos sociais à medida que o discurso e a interação se desenvolvem. Os objetos
de discurso são concebidos, então, como fruto de um processo de categorização e não como um desvio
de um modo de referenciação que venha a ser mais adequado. Uma mesma categoria pode ser pensada
sob diferentes perspectivas, dentro de diferentes contextos interativos, o que faz com que sejam focalizados
diferentes aspectos a partir da escolha lexical realizada pelos sujeitos.
Ao longo deste artigo, assumimos que os processos referenciais devem ser compreendidos tal
como Marcuschi (2007) os compreende: a ativação ou instauração de objetos de discurso resulta de
uma atividade de simbolização por parte dos interactantes que acabam por construir um “sistema categorial
fluido”. Ainda para o autor, nosso universo discursivo consiste em uma “fabricação socialmente
elaborada e linguisticamente comunicada” (p. 139).
É importante ressaltar, entretanto que, para Marcuschi (2005 apud FALCONE, 2011, p. 23),
“não devemos ser ingênuos a ponto de ignorar que as representações de um grupo social têm uma estabilidade
bastante grande, que se costuma designar como propriedades típicas de um dado fenômeno
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e que constroem sua tipicidade ou prototipicidade”.
Por fim, chamamos a atenção para o fato de que as categorias resultam de uma construção,
que se dá por meio de ações textuais e discursivas protagonizadas por atores sociais. Por isso, existem
diversas possibilidades de (re)categorização, com base nos frames construídos sobre um determinado
objeto ou evento (Alencar, 2005).
Manos e Minas: um programa de auditório diferente
O programa Manos e Minas nasce com uma vocação: “representar” a periferia. É em função
dessa vocação, genericamente compreendida em termos dos objetivos de mostrar o que ela tem de melhor
e de denunciar os seus maiores problemas, que o programa elege uma série de grandes tópicos10
que recorrem, principalmente ao longo dos dois primeiros anos do programa. Um desses assuntos é o
trabalho.
Ao passarmos os olhos, por exemplo, em algumas transcrições11 do programa, é possível observar
que se fala muito do trabalho desenvolvido por atores sociais específicos: o trabalho cultural dos
artistas populares (músicos dos mais variados estilos, grafiteiros, dançarinos, atores, etc), o trabalho
social desenvolvido por ONG’s e também por organizações civis da periferia, o trabalho cotidiano dos
sujeitos comuns. Fala-se muito do trabalho que todos desenvolvem, mas também fala-se da falta dele,
o que reforça o duplo objetivo geral do programa: mostrar o que o povo da periferia faz e por quais
dificuldades passa.
O programa de TV Manos e Minas, exibido pela TV Cultura desde maio de 2008, estrutura-se
de maneira muito semelhante a um programa de auditório e tem como objetivo ser “a voz da periferia”
na mídia televisiva, uma vez que se propõe a estabelecer uma valorização das práticas sociais e culturais
dessas comunidades. É voltado para o público jovem, trazendo elementos do hip-hop, cultura que
promove a construção e a consolidação de uma consciência crítica e social.
Segundo Granato (2010), esse programa de TV “tem o papel de divulgar, valorizar e possibilitar
o conhecimento sobre essa realidade do ponto de vista dos próprios sujeitos que participam e promovem
práticas sociais, culturais, literárias e musicais vinculadas tanto às comunidades da periferia
10. A esse respeito, ver o trabalho de Granato (2010). Ao longo deste texto, assumimos a concepção de tópico
discursivo formulado no interior da Gramática do Português Falado (Jubran et. al. 2002) e também por Jubran
(2006).
11.É possível ter acesso a algumas transcrições e a alguns vídeos do programa no site do Projeto “É nóis na fita:
a formação de registros e a elaboração de estilos no campo da cultura popular urbana paulista”, sob nossa coordenação:
www.projetonoisnafita.com.br.
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produção de sentidos no programa Manos e Minas
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quanto ao universo do movimento hip-hop.”(p. 72). Os conteúdos que circulam no programa revelam,
segundo a autora, a constante preocupação em afirmar e/ou revelar o cotidiano da periferia enquanto
um conjunto de práticas sociais e culturais estabilizadas, enraizadas, organizadas mas, sobretudo, baseadas
na solidariedade dos membros das diferentes comunidades.
Os extratos conversacionais selecionados para análise referem-se aos programas exibidos em
16 de julho de 2008 e em 21 de fevereiro de 2009, cujo apresentador é Rappin’ Hood, um conhecido
rapper, nascido Antônio Luiz, na periferia de São Paulo. Seu nome artístico é inspirado no personagem
Robin Hood.
Como mencionamos anteriormente, é comum a recorrência de determinados tópicos que se
relacionam diretamente com o contexto social das periferias, sendo que “trabalho” é um desses tópicos.
Buscamos analisar como a instauração e a manutenção do tópico “trabalho” por parte do apresentador
do programa e as estratégias de referenciação presentes nas falas dos participantes revela a elaboração
de diferentes frames relacionados ao tópico mais geral.
“E agora o assunto é trabalho”: tópico, referenciação e organização da experiência social
em Manos e Minas
O programa Manos e Minas de 16 de julho de 2008 se inicia com a apresentação do músico
Walmir Borges (WB). Logo depois que o cantor apresenta uma de suas músicas, o apresentador do
programa Rappin’ Hood (RH), dirige-se a Walmir Borges e comenta: “(...) essa música ... totalmente
diferente ... faz parte do seu primeiro trabalho ... sala de música ...”. (Trecho retirado de Granato, 2010,
p. 520) (grifo nosso)
O fato de Rappin’ Hood ter categorizado o CD “Sala de Música”, de Walmir Borges, como “trabalho”
é exemplar do que dissemos antes: trabalhos de todos os tipos são tópicos recorrentes ao longo
do programa porque são meios de se mostrar a realidade social e cultural da periferia para um público
mais amplo.
Walmir Borges, ao responder ao comentário de Rappin’ Hood, retoma a expressão referencial
“esse trabalho”, mas, ao longo de seu resposta, vai instaurando novos objetos de discurso por meio
da mobilização de anáforas indiretas que promovem a remissão ao trabalho/CD de Walmir Borges:
“”uma mistura (de músicas diferentes)”, “um som como se fosse na sala de casa mesmo”, “um lance
meio improvisado” e, finalmente, “esse disco aí”.
A cadeia referencial produzida pelos participantes, co-construída na relação entre apresentador e con83
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vidado do programa, instaura o frame “trabalho como músico”. É esse trabalho desenvolvido durante
um longo período que possibilita a elaboração de um objeto cultural específico, um CD, recategorizado,
em seguida, por Rappin’ Hood como “trabalho solo”.
Em seguida, toda a fala de WB concorre para a centração do tópico “trabalho como músico” e
para a instauração do frame específico “trabalho solo”, resultado da “caminhada” de WB como músico:
“bom...começou muito cedo né Rap ... comecei muito cedo e::: nessa caminhada”. A expressão referencial
“(n)essa caminhada” parece encapsular12 informações sobre as necessárias atividades profissionais
que podem levar à produção de um CD autoral, além de também deixar implícito todo o percurso
profissional de WB como músico. Para uma melhor compreensão da dinamicidade dos frames ativados
por meio das estratégias textuais de referenciação e de centração tópica, vejamos a caracterização dos
processos de reframing, com base na proposta de Ensink (2003):
[trabalho como músico [ trabalho solo/CD]
Ao mesmo tempo em que Rappin’ Hood instaura o frame “trabalho solo” já no início do programa,
o frame “trabalho como músico” é instaurado por WB ao longo de sua fala. Esse frame apresenta
um caráter interacional porque WB chama atenção para um determinado enquadre: o fato de
ter trabalhado com muitos músicos antes (“não vou conseguir fala(r) todo mundo porque é muita
gente...): Paula Lima, Simoninha, Max de Castro, Alexandre Pires, Belo, Exaltasamba, Pixote. Já as expressões
referenciais acima elencadas que recategorizam o frame “trabalho solo” indicam que ele pode
ser concebido também como um frame transformacional, já que este promove uma modificação do
frame interacional “trabalho como músico” e já que é descrito em termos das ações que estão na base
da produção do CD. Assim, ao final da fala de WB, teríamos a emergência da seguinte configuração
que retrata os frames ativados:
[trabalho artístico [trabalho como músico [trabalho solo]
Após a entrevista inicial com WB, Rappin’ Hood anuncia:
12. A esse respeito, ver o trabalho de Lima (2008) que postula que as expressões referenciais apresentam-se como
“pontos discursivos de cristalização do discurso,” já que desempenham uma “funçã o condensadora”. Esta função
é o que possibilita que a expressão referencial faça remissão tanto à porções discursivas provenientes do próprio
(co)texto como também à aos modelos de contexto, ou, nos termos da autora, à memórias publicamente partilhadas
sobre determinados objetos ou eventos. É neste sentido que as expressões referenciais constituem-se em
objetos-de-discurso, ou seja, “representações cognitivas publicamente partilhadas pelos sujeitos do grupo que
vêm a construir uma memória discursiva a respeito de tais objetos.” (Lima, 2008, p. 179)
“E agora o assunto é trabalho”: organização da experiência social, categorização e 84
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RH: bom.. e agora o assunto é trabalho... eu vô te convidá(r)... pá conhecê(r) agora... rapaziada...
vários... guerreiros e guerreiras da revista Ocas (Trecho retirado de Granato, 2010, p. 250)
É interessante perceber aqui um novo reframing proposto por Rappin’ Hood para o tópico
“trabalho”. O emprego do dêitico temporal agora por RH sugere uma mudança no modo como este
tópico será tratado. Neste momento, o apresentador do programa instaura novos referentes, os “guerreiros
e guerreiras” que trabalham na venda de revistas. O que acontece aqui? A nosso ver, conforme
postula Ensink (2003), no curso das interações, os atores sociais marcam, quando possível, as mudanças
que vão promovendo nos frames previamente instaurados e reconhecidos pelos participantes.
Sendo assim, o que se observa é uma passagem do frame “trabalho artístico”, que envolve o
“trabalho de WB como músico” e o seu “trabalho/CD solo” em proveito da instauração do frame “trabalho
formal”. Também é interessante perceber que o frame transformacional agora instaurado, “trabalho
de vendas da revista Ocas”, resulta justamente das atividades de textualização do apresentador:
manutenção do tópico trabalho e mobilização de cadeias referenciais que vão promovendo tanto a
centração do tópico como a ativação de conhecimentos sobre os eventos e os objetos.
De forma a mostrar a maneira pela qual o frame “trabalho formal” é instaurado, vamos observar
as falas dos entrevistados na reportagem sobre a revista Ocas. A revista é categorizada pelo
primeiro entrevistado, um vendedor da revista, como um “projeto social que dá oportunidade de trabalho
pra quem tá em risco social”. Em seguida, temos acesso ao depoimento de DM, que afirma que
só conseguiu sair da situação de desemprego (“ter que vende(r) o almoço pra comprá (r) a janta...”) aos
59 anos graças à revista Ocas. Os referentes instaurados por DM que remetem ao tópico instaurado são
“emprego” e “oportunidade”. Em seguida, Rappin’ Hood entrevista CB, um outro vendedor da revista,
que se formou em química e trabalhou na Usiminas, antes de perder sua casa em um incêndio. Após
falar sobre seu trabalho como químico, CB relata uma série de fatos que o levaram a tornar-se vendedor
das revistas. Em seguida, o entrevistado relata sua atual situação trabalhista:
CB: hoje... eu sou funcionário... da Editora Segmento... hoje eu tenho carte(i)ra assinada tenho
os benefícios da C.L.T.... eu sô(u) um funcionário comum como qualqué(r) outro empregado... como
o fênix ressurgindo da cinza”. (Trecho retirado de Granato, 2010, p. 251)
A fala de CB ativa mais explicitamente o frame “trabalho formal”, caracterizado pela existência
de relações trabalhistas entre patrões e empregados, principalmente no que diz respeito aos direitos
dos trabalhadores (“carteira assinada”, “benefícios da CLT”).
Como observamos, o emprego desses referentes por CB indicia a ativação do frame “trabalho formal”.
Além disso, sua fala ressalta a importância dessa modalidade de trabalho, ainda que sua remuneração
atual seja menor do que a de seu trabalho anterior.
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É interessante notar que os referentes empregados por DM e CB não estiveram presentes na
fala do músico WB, mesmo considerando que a garantia do sustento esteja implícita como traço definidor
do frame “trabalho artístico”. Acreditamos que o que parece ser um traço central nos frames instaurados
na interação entre WB e Rappin’ Hood é o valor positivo de um sonho realizado por meio do
trabalho, traço este não observado nas falas de DM e CB. Dessa forma, nos depoimentos dos sujeitos
podemos obeservar a seguinte configuração para os frames continuamente reelaborados pelos sujeitos
no curso das interações:
[trabalho formal [trabalho de vendas da revista Ocas]
Como dissemos anteriormente, o tópico “trabalho” é um dos mais recorrentes no programa
Manos e Minas. Por isso, ele volta a ser tratado em outros programas, tais como o de 21 de fevereiro de
2009. A partir de agora, procuraremos analisar como os frames relacionados a esse tópico são ativados
e reelaborados, considerando as estratégias textuais mobilizadas pelos sujeitos. Além disso, procuraremos
também relacionar os resultados das análises desse programa com os resultados das análises do
programa de 16 de julho de 2008.
O primeiro fragmento a ser analisado inicia-se quando o apresentador Rappin’ Hood (RH)
comenta que apenas 3,5% dos cargos de chefia no Brasil seriam ocupados por negros. Em seguida,
introduz o tópico “trabalho”, relacionando-o indiretamente com o problema do racismo anteriormente
tematizado. Essa relação torna-se explicita tanto pela avaliação que RH faz da informação fornecida
(“com certeza, tem alguma coisa estranha aí... alguma coisa EStranha no ar ... com certeza...”) como
pelo uso do encapsulador anagórico “(n)isso”: “e por falar nisso...”. Vejamos então como Rappin’ Hood
ativa o tópico “trabalho”:
RH: por falar nisso... a gente vai falá(r) agora sobre trabalho... a gente vai mostrá(r)... a batalha
do parcêro lá da Vila Arapuã nosso mano Pacote que tá na correria pra criá(r) um filho de trê(i)s anos
de forma digna... trabalhando... ATÉ CANSA(R)... tremendamente... é isso que a gente vai vê(r) ali no
V.T. (Trecho retirado de Granato, 2010, p. 265)
Após anunciar o assunto a ser discutido no programa, RH lança mão de referentes como
“batalha” e “correria” – recategorizados implicitamente por meio da construção “trabalhando... ATÉ
CANSA(R)... tremendamente”. Assim, as expressões referenciais anteriormente mencionadas enfocam
a precariedade do trabalho exercido pelo protagonista, Pacote (PC), morador da periferia de Arapuá,
encontrado na lata de lixo com meses de vida por sua mãe adotiva, que morrera quando ele era apenas
uma criança. Abaixo, um dos momentos em que PC fala sobre sua experiência no mundo do trabalho:
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produção de sentidos no programa Manos e Minas
Diadorim, Rio de Janeiro, Volume 10, p. 75 - 93, Dezembro 2011.
PC: hoje eu trabalho... eu ganho quinhe(n)tos reais... no bico... a dica que eu dô(u) po jovem
hoje que tá fazendo bico é não desisti(r) nunca do trabalho porque o trabalho é o objetivo hoje em dia...
porque tá difícil serviço registrado... e hoje apareceu o oportunidade d’eu trabaiá na padaria ((Pacote
entra no seu local de trabalho)) (Trecho retirado de Granato, 2010, p. 266)
Podemos observar na fala de PC, a ativação de dois diferentes frames. Primeiramente, ao falar
sobre o trabalho que realiza atualmente, PC emprega o referente “bico”, o que remete ao frame “trabalho
informal”. É interessante ressaltar que de forma a recategorizar esse referente, PC usa duas vezes
a expressão “trabalho” que, neste contexto, pode ser compreendida “qualquer trabalho”, inclusive os
bicos. Esta interpretação é favorecida pelo fato de o entrevistado afirmar, no iníco e no final de sua fala
que “trabalha no bico” ganhando quinhentos reais e “trabalha” na padaria.
Sendo assim, admitimos a ativação de dois frames transformacionais relacionados ao tópico
“trabalho”:
a) o frame “trabalho formal”, que garante os benefícios trabalhistas assegurados pelas
leis e
b) o frame “trabalho informal”, que tem por essencial finalidade a garantia do sustento.
Após a reportagem sobre PC, Rappin’ Hood entrevista dois integrantes do auditório, a fim
de promover, como bem observa Granato (2010), a expansão do tópico junto ao auditório a partir da
seguinte passagem:
RH: segundo o DIEESE (inint.)... trinta e dois por cento da população de São Paulo trabalha
informalmente... eu queria sabê(r) se aqui na plateia tem alguém... que vive de fazê(r) bico... prime(i)
ro desse lado aqui... VOCÊ... fala fala seu nome a quebrada de onde você vem e... fala...como que você
trabalha o que você faz... (Trecho retirado de Granato, 2010, p. 267)
Na passagem acima, RH promove a manutenção do tópico mais geral “trabalho”, mas seu foco
é o frame “trabalho informal”, ativado anteriormente na fala de PC. Para tanto, seu texto progride com
o uso de duas construções: “tem alguém aqui que trabalha informalmente”, parafraseada por “que vive
de fazer bico”. A resposta obtida pelo entrevistado PE é a que se segue:
PE: (..) é o seguinte mano... pelo que:: a matéria que passô(u) ali do mano ali é realidade me(s)
mo vários manos que/que corre atrás do seu trampo eu me(s)mo trabaio de marrete(i)ro trabaio no
trem... i(n)dependente desde pequeno... faço meu corre vô(u) po estádio vô(u) pá vários evento(s)
corren(d)o atra(i)(s) do meu ganha pão tenho dois moleque(s)... faço meu corre e:: tipo assim tem
várias barre(i)ras né? mano... tipo nó(i)(s) vai pó trem... saben(d)o que o baguio é proibido mais nó(i)s
tamo aí pra batê(r) de frente... (Trecho retirado de Granato, 2010, p. 267)
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Como observamos, PE mobiliza uma cadeia referencial específica como forma de colaborar
com o tópico “trabalho” instaurado pelo apresentador (“trampo”, “meu corre”, “meu ganha pão”). Ao
ser instado por Rappin’ Hood a falar sobre sua atividade profissional, PE imediatamente produz um
relato de seu cotidiano como “marreteiro” com o objetivo de emprestar veracidade ao depoimento de
Pacote (PC): “a matéria que passô(u) ali do mano ali é realidade me(s)mo vários manos que/que corre
atrás do seu trampo eu me(s)mo trabaio de marrete(i)ro”, construindo assim um argumento de autoridade
por meio de uma produção discursiva de caráter autobiográfico. Além disso, PE acaba por ativar
o frame transformacional “trabalho informal proibido” que modifica o frame “trabalho informal”, já
que o relato enfoca como este tipo de trabalho, apesar de garantir o sustento de muitos trabalhadores
brasileiros, ainda é proibido. O relato descreve rapidamente a “correria” de um vendedor ambulante
de uma grande cidade como São Paulo que precisa se deslocar para diferentes lugares (trem, estádios
de futebol, eventos etc.) para poder garantir o seu “ganha-pão”. Por fim, o uso da expressão refrencial
“baguio” ao final do relato, expressão encapsuladora que retoma toda a porção textual anterior, reforça
a ideia de ilegalidade das atividades desenvolvidas por PE, sem que este deixe de revelar sua atitude
em relação a isto: “tipo nó(i)(s) vai pó trem... saben(d)o que o baguio é proibido mais nó(i)s tamo aí pra
batê(r) de frente”.
Em função disso, podemos postular que os frames instaurados pelos participantes do programa
por meio de suas falas podem ser diferenciados da seguinte maneira:
Frames instaurados por PACOTE (PC)
[trabalho formal]
[trabalho informal [trabalho informal sem risco [trabalho em uma padaria]
Frames instaurados por PE
[trabalho informal [trabalho informal proibido [trabalho como ambulante]
Com relação às suas condições de trabalho, PE, assim como PC, emprega a expressão referencial
“correria”, que, no interior dos frames instaurados remete ao fato de que os trabalhadores informais
não têm seus direitos trabalhistas assegurados, bem como à percepção de que é preciso trabalhar muito
e rápido para escapar à pobreza que se impõe aos moradores da periferia.
Após entrevistar PE, Rappin’ Hood interpela BA, outro integrante da platéia, dando continuidade
ao tópico “trabalho”:
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produção de sentidos no programa Manos e Minas
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RH: me fala seu nome o nome da quebrada da onde tu vem e qual o tipo de trabalho que você...
pratica informalmente
BA: então Hood... é:: eu vim lá do:: Cocaia né... extremo sul região do Grajaú é:: mais conhecido
como Bandogue do grupo Mentes Criativas lá... eu exerço também essa... profissão perigo aí que
fazem um rap... e:: atualmente eu faço bico né?... e:: eu tava na área aí de segurança e:: tive que saí(r)
passei quatro anos e oito meses trabalhan(d)o na área... e por enquanto agora eu tô só:: fazendo um
rap... correndo atrás do meu objetivo do meu sonho... (Trechos retirados de Granato, 2010, p. 267)
Tal como WB, músico entrevistado por Rappin’ Hood no programa de 16 de julho de 2008, BA
também ativa o frame “trabalho como músico”, mas por meio da instauração do frame transformacional
“trabalho como rapper”, possível de ser percebido pelas estratégias de referenciação desenvolvidas
por BA. O entrevistado categoriza seu atual trabalho como “profissão perigo”. Essa mesma atividade, a
de fazer um rap, é recategorizada em seguida como “meu objetivo”, “meu sonho”. Na continuidade de
sua resposta, BA instaura o frame “trabalho informal”, ao empregar a construção “atualmente eu faço
bico...” BA também ativa o frame “trabalho formal” ao mencionar que trabalhou na área de segurança
por um período de quatro anos e oito meses.
BA continua sua resposta discorrendo sobre o aspecto da garantia do emprego para os trabalhadores.
Para tanto, instaura outros frames: o de “desemprego” e o de “trabalho escravo”:
BA: a rua aí fora tá tá complicada esse esquema de serviço... eles fala que:: tem trampo... que tá::
tá crescendo é... o trabalho e tal mas o que a gente vê é só o crescimento de... desemprego... e::... o crescimento
aí di... de trabalho escravo na verdade entendeu porque realmente os caras não te valorizam...
pelo que você é pelo que você exerce pelo que você sabe fazê(r) entendeu... é isso que tá aumentando
aí (Trecho retirado de Granato, 2010, p. 267-68)
O movimento instaurado por BA de ativação de novos frames, que até então não tinham sido
mobilizados nem neste programa nem no programa anterior, possibilita a emergência de novos significados
para o tópico geral. Assim, o uso das expressões referenciais “esquema de serviço”, “trampo”,
“trabalho” e a produção de uma avaliação por meio da cosntrução “porque realmente os caras não
te valorizam... pelo que você é pelo que você exerce pelo que você sabe fazê(r) entendeu...”, além das
estratégias textuais anteriormente mobilizadas por BA e acima descritas, permitem que postulemos as
seguintes configurações para os frames instaurados pela fala de BA:
[trabalho formal [trabalho como segurança]
[trabalho informal [trabalho artístico [trabalho como rapper]
[desemprego]
[trabalho escravo]
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Na fala de BA, ocorre tanto a manutenção do tópico geral anteriormente estabelecido, como
também a reativação dos mais importantes frames transformacionais construídos nas/pelas falas dos
outros participantes do programa: “trabalho formal”, ‘trabalho informal” e “trabalho artístico”. No entanto,
na fala de BA ocorre também a ativação de novos frames, já que “desemprego” evoca principalmente
a falta do trabalho e “trabalho escravo”, caracterizado pela ausência de liberdade e de remuneração
para quem trabalha, evoca práticas ilegais e ilegítimas. Segundo o entrevistado, esses frames ainda
estariam na base das práticas trabalhistas da sociedade brasileira. Tanto é que o entrevistado afirma que
o trabalho escravo estaria aumentando, o que nos leva a inferir que ele nunca realmente desapareceu.
A emergência de novos frames na fala de BA relacionados ao tópico geral “trabalho” instaurado
pelo apresentador encontra-se em consonância com o principal objetivo do progama que é o de “dar
voz à periferia”, mostrando tanto o modo como as comunidades são social e culturalmente organizadas
como também as vicissitudes por elas enfrentadas, principalmente no que diz respeito às impossibildades
de mudanças sociais efetivas.
Algumas considerações finais
Ao longo das seqüências textuais produzidas pelos participantes do programa Manos e Minas,
pudemos observar a ativação de diferentes frames a partir do tópico geral “trabalho” proposto pelo
apresentador do programa. Além disso, vimos também que estes frames podem ser postulados em função
das estratégias de referenciação e de progressão textual implementadas pelos sujeitos no curso das
interações. Nessas breves considerações finais, gostaríamos de reiterar alguns pontos que nos parecem
importantes e que estão relacionados aos objetivos delineados no início desse artigo.
Em primeiro lugar, as análises empreendidas corroboram a afirmação de Van Dijk (1996)
para quem os frames desempenham um importante papel na construção de modelos pessoais novos
dos falantes, ou mesmo na atualização dos velhos, o que os situa entre memórias particulares e “scripts
sociais”. Vimos que a cada interação velhos frames são ativados e mantidos, ao mesmo tempo em que
reframings são operados. Um exemplo disso é a forma como o participante PE consegue mobilizar o
frame “trabalho informal”, atualizando-o, no entanto, na chave (key) da sua experiência pessoal como
ambulante.
Em segundo lugar, as análises também mostraram que os frames básicos [trabalho], [trabalho
formal], [ trabalho informal], [trabalho escravo], por exemplo, são compartilhados pelos interactantes,
que vão, por sua vez, se encaixando na dinâmica contextual possibilitada pela diversidade de frames
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produção de sentidos no programa Manos e Minas
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transformacionais ativados. Essa dinâmica contextual foi observada, por exemplo, na instauração dos
diversos frames que contém o frame básico “trabalho artístico”, atualizados de acordo com os aspectos
mais relevantes para os diferentes sujeitos (por exemplo, WB e BA) nas diferentes interações (entrevista
com convidado e entrevista com membros do auditório).
Em terceiro lugar, as estratégias de referenciação mobilizadas pelos sujeitos se mostraram fundamentais
para a derivação dos frames básicos e transformacionais em jogo. Ainda há muito o que
dizer sobre as relações intrínsecas entre a instauração de um determinado tópico, a ativação de determinados
frames e as atividades de referenciação, mas nossas análises iniciais já apontam para o fato de
que a emergência de um sistema categorial fluido (nos termos de Marcuschi, 2007) relativo ao tópico
“trabalho” não deixa de contribuir para a delimitação e estabilização dos frames (mesmo os de caráter
transformacional) que emergem a partir da instauração desse tópico.
Gostaríamos ainda de dizer que essas análises iniciais mostram a possibilidade de uma caracterização
também inicial dos registros linguísticos por meio da observação das estratégias de natureza
textual e discursiva implementadas pelos falantes. No caso em questão, acreditamos que os registros
exibidos pelos sujeitos que circulam no campo da cultura popular urbana paulista de fato se revelam
como modelos reflexivos de produção e de avaliação de linguagem. A nosso ver, a reflexividade dos
modelos operaria principalmente sobre os atos de referir. De acordo com Agha (2007), os atos de referir
não se resumem a uma simples correlação entre as palavras e as coisas, mas são organizados por
princípios que intermedeiam as relações sociais entre os participantes do discurso. O autor argumenta
que o uso de expressões para se referir às coisas é moldado por princípios interacionais. Portanto, a
referenciação é um ato social necessariamente relacionado com a interação em curso.
É neste sentido que podemos afirmar que os referentes instaurados nas interações do programa
Manos e Minas mostram uma identidade conceitual e características formais que são, em grande
medida, possibilitadas não apenas pela maneira como a interação é instaurada e conduzida mas
também pelas identidades sociais que estão em jogo (Bentes, 2009). Estamos buscando evidências
para qualificar os registros linguísticos mobilizados no programa. Se é verdade que um registro é um
modelo reflexivo (i) que configura um determinado tipo de conduta (nesse caso, o de entrevistados
de um programa de auditório televisivo que se diz produzido “pela periferia e para a periferia”), (ii)
que auxilia na incorporação de papeis sociais e (iii) que instaura determinadas relações sociais (de
construção de proximidade e solidariedade entre entrevistador e entrevistado, por exemplo), é possível
dizer que os participantes do programa mobilizam repertórios consistentes com o tipo de interação
instaurada naquele momento. Assim, eles colocam em ação determinadas estratégias de referenciação
que contribuem para o desenvolvimento do tópico mais geral.
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Inciamos este texto com uma epígrafe de Engels, que exalta o trabalho humano porque ele é a condição
para nossa existência como seres sociais. No entanto, ao longo de nossas análises, vimos que o trabalho
no interior das sociedades contemporâneas, para a grande maioria dos sujeitos, está longe de ser uma
fonte de criatividade, de inspiração, de crescimento. Mesmo assim, ele continua sendo um “objetivo”
ou ainda “um sonho” não alcançado, segundo nossos sujeitos. Fechamos esse texto com a charge abaixo,
não apenas porque ela mostra a sobreposição e interpenetração de frames básicos (no caso, “trabalho
formal” e “trabalho escravo”), mas também porque temos a esperança de que os discursos críticos
nela presentes e também presentes na fala de BA em relação ao tópico “trabalho” reverberem forte e
continuamente até que voltemos a ter condições mais dignas e significativas de desenvolvimento de
nossa humanidade.
Figura 1: Quadrinho da Fábrica Ocupada Flaskô, por Guga e o Coletivo Miséria, e publicado na 5ª edição do Jornal
“Atenção”, na página 13. Disponível em: http://www.fabricasocupadas.org.br/atencao/?page_id=394
Artigo recebido: 18/08/2011
Artigo aceito: 25/11/2011
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produção de sentidos no programa Manos e Minas
Diadorim, Rio de Janeiro, Volume 10, p. 75 - 93, Dezembro 2011.
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Diadorim, Rio de Janeiro, Volume 10, p. 75 - 93, Dezembro 2011.
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