Karl Popper e a “natureza” da filosofia
Meados do século XX, os cientistas declaram, abertamente, sua oposição ao pensamento metafísico. O Círculo de Viena, por meio de um manifesto, anuncia uma nova forma de pensar o mundo: a concepção cientifica[1]. Nesta concepção não há mais espaço para a especulação filosófica, somente o conhecimento empírico merece status de conhecimento, todo o mais é mera “[...] expressão de algo como um sentimento perante a vida [...]” (CARNAP, 1986, p. 10). O papel da filosofia neste “novo mundo” fica reduzido ao “[...] esclarecimento lógico dos conceitos, proposições e métodos científicos [...]”(CARNAP, 1986, p. 18), a partir do qual liberta-se a ciência dos preconceitos inibidores. Não cabe mais, portanto, à filosofia, propor enunciados filosóficos próprios. Seu campo de atuação fica, por assim dizer, reduzido ao método de análise lógica,[2] desenvolvido sob as proposições de pensadores como Russel, Whitehead e Wittgenstein. Fatos como, o avanço tecnológico do processo de produção e a decepção das grandes massas frente aos problemas sociais, estimulam a convicção destes cientistas acerca desta nova concepção de mundo e promovem afirmações do tipo: “A concepção cientifica do mundo serve à vida, e a vida a acolhe” (CARNAP, 1986, p. 69). Aparentemente, haveria um certo tipo de crença por trás desse tipo de afirmação: uma crença no poder absoluto da ciência. É a ciência que elabora hipóteses, é ela que institui os métodos, é ela estabelece os limites, é ela que remove o “entulho metafísico” dos pseudoproblemas filosóficos. Não obstante, nem todos os pesquisadores da época estavam de acordo com essa perspectiva de mundo. E o principal opositor desta concepção combate não apenas a visão cientificista do mundo, combate, com igual vigor, o novo papel reservado à filosofia e seus representantes. Epistemólogo e filósofo assumido, Karl Popper dedica-se a criticar o status científico que recobria certas teorias[3], e a futilidade da “[...] controvérsia a respeito da natureza da filosofia”.(POPPER, 1982, p. 95) Em Conjecturas e Refutações, Popper relata suas principais idéias no campo da filosofia da ciência. Dedica-se a examinar aquilo que ele considerava como sendo problemas básicos desta área: o problema da demarcação[4] e o problema da indução[5]. Problemas que, em seu ponto de vista, não se resumiam em argumentar a favor ou contra o método empírico como defendiam seus opositores. Ao contrário, partindo dos pressupostos, estabelecidos, por estes, Popper demonstra que até mesmo um conhecimento não cientifico como a astrologia, por exemplo, satisfaria os critérios propostos para ser efetivamente ciência. Ainda que esta discussão seja de grande importância para a compreensão do pensamento epistemológico de Karl Popper, o interesse deste estudo não recairá, especificamente, sobre a mesma. Isso porque, conforme apontado acima, as análises de Popper não ficaram restritas ao campo científico, tendo, a filosofia, merecido uma significativa parcela de sua atenção. De fato, em Conjecturas e Refutações, Popper dedica um apêndice para tratar de alguns problemas específicos da filosofia da ciência. Tal apêndice traz três discussões: a primeira trata do cálculo das probabilidades; a segunda, da natureza dos problemas filosóficos e suas raízes; e a terceira, constitui-se da exposição de três pontos de vista sobre o conhecimento humano. O objetivo deste estudo será expor os argumentos de Popper em favor da filosofia, apresentados na segunda parte do Apêndice da citada obra, no intuito de compreender qual é o papel da filosofia. Filosofia não é balbucio de criança Popper inicia sua exposição esclarecendo que, embora esteja falando sobre a natureza da filosofia, não acredita, de modo algum, que este tipo de discussão mereça grandes considerações, afirmando que, “[...] qualquer tentativa honesta e dedicada de resolver um problema cientifico ou filosófico, mesmo que não tenha bons resultados, parece-me mais importante do que um debate sobre problemas como a natureza da ciência ou da filosofia [...]” (POPPER, 1982, p.95). Isso porque, acredita que o papel do filósofo, assim como o do cientista, seja o de solucionar problemas em vez de falar sobre filosofia: “[...] filósofos devem filosofar.”(POPPER, 1982, p.97) Tal afirmação poderia ser confundida com uma justificativa, entretanto, é um ataque com alvo bem determinado. Com este mote, Popper estabelece o ponto de partida da sua crítica: a extrapolação das discussões acerca da natureza da filosofia. Determina que a investigação de qualquer problema, por vezes, não se restringe a uma matéria ou disciplina, pois, os conhecimentos necessários para a solução de um problema específico, nem sempre são encontrados no corpo de teorias da área onde o problema foi detectado. Com este argumento, Popper abre caminho para questionar acerca da existência de problemas filosóficos. A questão aqui não implica em discutir a falsidade[6] ou veracidade destes problemas, mas sim, em demonstrar que os problemas levantados pela filosofia são reais e não mera questão de linguagem, como postulava Wittgenstein. Visto que, se assim fosse não seria possível a existência de uma teoria filosófica e, conseqüentemente, a filosofia resumiria-se em simples atividade de “[...] desmascarar os absurdos filosóficos e ensinar as pessoas a falar de modo que faça sentido”.(POPPER, 1982, p.97). É interessante notar, quanto a tal característica da “nova” filosofia, a critica de Popper à doutrina de Wittgenstein, exposta na nota número seis, da citada obra. Crítica que demonstra uma aparente contradição entre o que é postulado - a filosofia reduzida à análise de linguagem e formadora de pseudoteorias -, e a própria conformação de uma teoria com base em seus postulados. A relação aqui é estabelecida, obviamente, a partir da constatação da irrefutabilidade desta doutrina, conforme indica Popper (1982, p.97): Há uma falha que se pode perceber desde logo nessa doutrina: ela própria é uma teoria filosófica que pretende ter sentido e ser verdadeira. É possível, porém, que esta crítica seja um pouco vulgar, podendo ser rebatida de duas formas, pelo menos: 1) afirmando que não tem sentido enquanto doutrina, mas sim qua atividade (é o que alega Wittgenstein; no fim de seu Tratactus Lógico-Philosóphicus ele afirma que quem compreendeu bem o livro deve perceber que não tem sentido, rejeitando-o como se afasta uma escada depois de usa-la para atingir uma certa altura); 2) Afirmando que não se trata de uma doutrina filosófica, mas sim empírica, enunciando o fato histórico de que todas as aparentes “teorias” propostas pelos filósofos não se ajustam as regras inerentes à linguagem que são formuladas (sendo portanto agramaticais); que não é possível corrigir este defeito e que todas as tentativas de enuncia-las com propriedade levaram à perda do seu caráter filosófico (revelando-as como truísmos empíricos ou falsas proposições). Penso que estes dois contra-argumentos resgatam a doutrina de sua alegada inconsistência tornando-as assim resistentes ao tipo de crítica mencionado nesta nota. (grifo nosso). Disposto, ainda, a esclarecer os equívocos da teoria de Wittgenstein, Popper resgata as influências vindas da Teoria dos Tipos[7], de Bertrand Russel, da qual originou-se a possibilidade de distinguir problemas e pseudoproblemas. Wittgenstein teria, então, a partir dessas constatações, considerado que todas as proposições filosóficas[8] seriam destituídas de sentido lógico o que condenaria toda a filosofia a mera verborragia. Popper não discorda que é necessário cuidado com a linguagem, entretanto, não acredita que todas as proposições, mesmo que, inicialmente sem sentido devam ser desconsideradas sem antes serem investigadas exaustivamente. Haja vista, os significativos conhecimentos advindos do desenvolvimento de teorias que a princípio poderiam ser tomadas como paradoxais e absurdas.[9] Há outro erro, apontado por Popper, na elaboração da argumentação de Wittgenstein. Este se baseia no aspecto lógico, pois, conforme a própria lógica moderna propõe, não há mais como se falar de pseudoproposições ou erros, desde que sejam respeitadas as convenções lingüísticas e a gramática. Disso resulta, que não é mais possível acusar os conteúdos filosóficos como sem sentido. Popper não se coloca totalmente contra a doutrina de Wittgenstein, pois, não há como negar que, pelo menos em dois aspectos suas propostas são bem aplicáveis e bastante válidas. O primeiro caso diz respeito ao conteúdo de algumas proposições filosóficas que, por vezes, se assemelham, de fato, a “mero palavrório sem sentido” (POPPER, 1982, p.100), e merecem uma severa crítica. Enquanto que o segundo refere-se à restrição da publicação destas obras, devido às críticas baseadas na análise da linguagem. E mais, refletindo sobre duas questões ligadas à filosofia contemporânea afirma que, de certo modo, as proposições de Wittgenstein tinham certa aplicabilidade. A primeira questão relaciona-se com as escolas filosóficas, os conteúdos e os métodos, das mesmas. Quanto ao primeiro aspecto, a questão refere-se ao fato de estas escolas acreditarem poder restringir suas reflexões à problemas internos da filosofia, e não à problemas de outros campos, gerando, assim, os pseudoproblemas. Entretanto, para Popper tal atitude é equivocada, pois “[...] os problemas filosóficos genuínos tem sempre raízes em problemas urgentes fora do campo da filosofia e morrem se perdem essas raízes” (POPPER, 1982, p.100). Já, no que concerne ao método, Popper acredita que não haja um método para resolver problemas filosóficos que possa ser imitado, e o que importa, na filosofia, é o desejo de solucionar problemas e ai “[...] qualquer método é legitimo” (POPPER, 1982, p. 100). Se por um lado, como apontado, a análise lógica possibilita a eliminação de excessos, detectando os pseudoproblemas, por outro, gera também um grave problema: “a tarefa sem fim e sem sentido de desmascarar o que (os analistas lógicos) tomam (com ou sem razão) por pseudoproblemas ou ‘charadas’”. Para Popper ambas conseqüências podem ser imputadas a Wittgenstein. A Filosofia e seu papelNo que concerne a segunda questão, a problemática também está relacionada ao método, mas considerando-o em relação ao ensino de filosofia. Denominado como prima facie, este método caracteriza-se pela leitura de textos filosóficos. O problema aqui, segundo Popper, é que o aluno que entra em contato com estes textos, geralmente, não possui um bom conhecimento acerca das áreas que geraram as discussões filosóficas presentes nos mesmos. Uma conseqüência, bastante negativa, é que, por não conseguir identificar a importância das discussões, o estudante ficará iludido de que sua dificuldade é reflexo do próprio estilo da filosofia, ou seja, abstrações complexas e linguagem intrincada. Além disso, o estudante corre dois riscos: primeiro, fascinado, se utilizará daquilo que ele crê ser linguagem filosófica; segundo, considerar, como Wittgenstein, que tudo aquilo não passa de absurdos. A defesa de Popper quanto à legitimidade dos problemas filosóficos é reforçada por essa argumentação, pois, torna evidente a necessidade de um vasto conhecimento, por parte daqueles que irão penetrar no universo da filosofia, acerca dos problemas concretos que motivaram as reflexões dos grandes filósofos. Conhecimento que, obviamente, demonstraria “[...] como os aparentes absurdos têm um sentido” (POPPER, 1982, p. 102). As conclusões de Popper são tomadas como um “ajuste de contas” (POPPER, 1982, p.102) com Wittgenstein, haja vista a exposição sistemática das conseqüências positivas e negativas de sua doutrina. Num primeiro plano, o caráter negativo da tese de Wittgenstein tem mérito se aplicado àquelas filosofias que não refletem sobre problemas extrafilosóficos, e àqueles que ficam presos em discussões sobre filosofia ao invés filosofar. Em síntese, Popper acredita que, possivelmente, não existam problemas filosóficos puros, já que a filosofia deve buscar refletir sobre problemas existentes em campos extrafilosóficos, mas que, entretanto, existem problemas filosóficos genuínos, e estes, ainda que não possam ser considerados científicos, não devem ser tomados como pura tautologia. Um problema é, enfim, filosófico quando, mesmo tendo surgido de problemas relacionados com outras áreas, tenha relação com as teorias e problemas debatidos por filósofos. Popper reafirma que, mesmo o método de análise lógica, elaborado para eliminar a existência de problemas filosóficos, pode, em certo sentido, ser considerado como filosófico. Contudo, Popper não se satisfaz em encerrar a discussão com tais afirmações. Fundamenta, pois, seus argumentos com dois exemplos de teorias filosóficas que exigem um amplo conhecimento acerca da história das ciências para serem realmente compreendidas. O primeiro diz respeito à Teoria da Formas, de Platão, e o segundo à Critica da Razão Pura, de Kant. Ambos os exemplos demonstram, não apenas, que os problemas filosóficos genuínos tem suas raízes fora do campo da filosofia, como também, o quanto essas teorias filosóficas influenciaram os destinos da ciência. A conclusão deste estudo segue as proposições filosóficas de Popper, as quais podem ser resumidas deste modo: a filosofia não trata de pseudoproblemas, não produz pseudoteorias, não é uma atividade, não pode ser reduzida à uma mera questão de linguagem. A filosofia influencia profundamente a ciência. A “natureza” da filosofia é resolver problemas urgentes e genuínos, os quais encontram-se fora de seu campo. E parafraseando Popper, é justamente a respeito daquilo que não se pode falar que vale a pena filosofar. [1] Baseada na experiência e avessa a especulação a visão que concebe o mundo como científico pode ser resumida da seguinte forma, de acordo com o Manifesto: “A concepção cientifica do mundo não se caracteriza tanto por teses próprias, porém, muito mais, por sua atitude fundamental, seus pontos-de-vista e sua orientação de pesquisa. Tem por objetivo a ciência unificada. Seus esforços visam a ligar e harmonizar entre si os resultados obtidos pelos pesquisadores individuais dos diferentes domínios científicos[...] e prossegue, [...] A concepção cientifica do mundo desconhece enigmas insolúveis. O esclarecimento dos problemas filosóficos tradicionais conduz a que eles sejam parcialmente desmascarados como pseudoproblemas e parcialmente transformados em problemas empíricos sendo submetidos ao juízo das ciências empíricas[...].” HAHN, H, NEURATH, O, CARNAP, R. A concepção cientifica do mundo – O Círculo de Viena. In: Cadernos de História e Filosofia da Ciência 10. 1986. (p.10). (a partir referenciado como, CARNAP, 1986). [2] A descrição de Popper do que vem a ser o método de análise satisfaz melhor as pretensões deste estudo, por esse motivo, recorremos a suas palavras, ao invés de sintetizar o postulado pelo manifesto. Wittgenstein, como todos sabem, procurou demonstrar, em seu Tratactus (vide, por exemplo, as proposições 6.53; 6.54; e 5), que as proposições filosóficas ou metafísicas, como são chamadas, são na verdade falsas proposições, pseudoproposições, sem sentido ou significado. Toda proposição genuína (ou significativa) deve ser função da verdade de proposição elementar ou “atomística”, que descreva “fatos atômicos”, isto é, fatos que em princípio podem ser verificados pela observação [...] e prossegue, [...] Qualquer outra proposição aparente será uma pseudoproposição sem significado; não passará de um conjunto de palavras desarticuladas, sem sentido algum.Op. cit, p. 69. [3] Popper indica especificamente três teorias: a teoria marxista da história; a psicanálise freudiana; e a psicologia individual de Adler. Op. cit, p. 66. [4] A necessidade de Popper era estabelecer um critério que possibilitasse distinguir ciência de não-ciência, problema que chamou de “problema da demarcação”, solucionado por meio da aplicação do critério de refutabilidade, o qual postula que as ciências deveriam ser capazes de entrar em conflito com observações possíveis ou concebíveis. [5] Popper discute o problema da indução, suscitado por Hume, sob seu aspecto psicológico, pois considera “[...] a refutação da inferência indutiva de Hume clara e conclusiva. Mas sua explicação psicológica da indução em termos de costumes ou hábito me deixa totalmente insatisfeito”. Op. cit, p.72. [6] Por meio do critério de demarcação, Popper distingue a ciência da não-ciência, e isso não implica, de modo algum, em questões de falsidade ou veracidade, significado ou não significado. Define que uma teoria apenas pode ser considerada cientifica se satisfizer os critérios de refutabilidade – testes empíricos -, e é não-cientifica se for considerada irrefutável, ou seja, não possibilitar a dedução de enunciados empíricos que permitam uma refutação. A filosofia é, de acordo com esse critério, uma não-ciência e não um pseudoconhecimento. [7] A Teoria dos tipos, de Russel é uma classificação de expressões lingüísticas em afirmativas verdadeiras, afirmativas falsas e expressões desprovidas de sentido. É com base nessa terceira classe de afirmações que se torna possível a distinção entre um problema e um pseudoproblema. [8] Popper sugere, aqui, que Hegel e o hegelianismo, são responsáveis por essa posição de Wittgenstein. Declara que a oposição e o desprezo por seu pensamento nunca desapareceram por completo. Foi Russel, conforme sugere Popper, que derrubou a filosofia hegeliana. [9] Popper cita o caso dos cálculos diferencial e integral, que por cem anos foram estudados e atualmente possuem uma fundamentação razoável. Estes, sem dúvida, não teriam resistido caso tivessem sido investigados sob os critérios propostos por Wittgenstein, fato que acarretaria grandes perdas ao conhecimento humano. Op. cit, p. 99. |
Aqui você encontra: Cultura, Educação, Artigos Científicos e sugestões para o seu estudo. O que irá diferenciar está revista eletrônica, ter, em um futuro breve, seus artigos em áudio, lidos pelos autores e/ou por programas e projetos de extensão como: 'Biblioteca Falada' - A UNESP/ FAAC, faz adaptação de textos e vídeos para áudios. Permitindo assim que DISLÉXICOS e DEFICIENTES VISUAIS tenham acesso ao conhecimento proposto. http://www.acessibilidadeinclusao.com.br/ José Robson de Almeida.
domingo, 3 de abril de 2011
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