Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical 43(4):472-473, jul-ago, 2010
Relato de Caso/Case Report
1. Laboratório de Hantaviroses e Rickettsioses, Fundação Oswaldo Cruz.
Rio de Janeiro, RJ 2. Laboratório de Biologia Molecular e Doenças Endêmicas, Fundação Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro, RJ.
Endereço para correspondência: Dra. Elba Regina S. de Lemos. Laboratório de Hantaviroses e Rickettsioses/Instituto Oswaldo Cruz/FIOCRUZ. Av. Brasil 4365/1 Pavimento, Manguinhos, 21040-900 Rio de Janeiro, RJ.
Tel: 55 21 2562-1712.
e-mail: elemos@ioc.fiocruz.br
Recebido para publicação em 26/11/2009
Aceito em 29/01/2010
RELATO DO CASO
Febre do viajante associada com adenite cervical e sororreatividade para Bartonella sp em paciente brasileira, após retorno da África do Sul
Traveler’s fever associated with cervical adenomegaly and antibodies for Bartonella sp in a Brazilian patient returning from South Africa
Elba Regina Sampaio de Lemos1, Maria Angélica Mello Mares-Guia1, Daniele Nunes de Almeida1,
Raphael Gomes da Silva1, Cristiane Manoel Silva1, Constança Britto 2 e Cristiane Cruz Lamas1
RESUMO
Um grande número de viajantes visita anualmente, por estudo, turismo ou trabalho o continente africano. Um caso de adenomegalia cervical e hepatoesplenomegalia associado à febre de duas semanas de duração com teste sorológico positivo para Bartonella sp em uma paciente de 22 anos do sexo feminino que retornou da África do Sul após realização de trabalho de campo com primatas em área silvestre é apresentado.
Palavras-chaves: Doença febril do viajante. Adenomegalia. Bartoneloses.
ABSTRACT
A large number of travelers visit the African continent annually for studying, tourism or business reasons. The authors report a case of cervical adenomegaly, hepatomegaly and splenomegaly associated with a two-week history of fever and seropositivity for Bartonella sp in a 22-year-old female patient who returned from South Africa after field work with primates in a wild area.
Key-words: Fever in traveler. Adenomegaly. Bartonellosis.
Embora a maioria dos casos febris procedentes dos países tropicais tenha a malária, a dengue ou a febre tifóide como diagnósticos mais comuns, nas duas últimas décadas, as rickettsioses, em especial na África do Sul, têm sido mais frequentemente notificadas. Dados disponíveis na literatura científica e nos sítios GeoSentinel, especializados em medicina do viajante, mostram mais de 450 casos confirmados de rickettsioses, com maior concentração na África SubSaariana1-3.
Rickettsioses são doenças infecciosas transmitidas por artrópodes, causadas por rickettsias que ocorrem, exceto o tifo epidêmico, como pequenos surtos ou casos isolados. Sob o aspecto taxonômico, embora sejam consideradas como grupo de doenças causadas por proteobacterias do subgrupo α1, Bartonella sp e Coxiella burnetti, pertencentes ao subgrupo α 2 e subgrupo g, respectivamente, ainda permanecem sendo estudadas no campo da rickettsiologia4.
Quanto às bartoneloses, até 1993, Bartonella bacilliformis, causadora da doença de Carrion, era considerada a única do gênero, mas, após a reorganização taxonômica e a identificação de novas espécies, um amplo espectro clínico da doença tem sido identificado desde adenomegalia à endocardite5.
O objetivo deste relato de caso é alertar para a ocorrência das rickettsioses lato sensu como doença importada, em especial, da África do Sul, e enfatizar que as rickettsioses devem ser consideradas mesmo na ausência de exantema e de lesão de inoculação.
Paciente do sexo feminino, branca, 22 anos, estudante, natural do Rio de Janeiro, com início da doença em 28/08/2009 com dor na região cervical e mal-estar. Em 06/09/2009, percebeu adenomegalia cervical direita associada com febre alta (não aferida), cefaléia, mialgia, anorexia, astenia, apatia, náuseas e vômitos. Recém chegada da África do Sul, onde, por 60 dias, realizou trabalho em área silvestre com coleta de fezes de macacos, a paciente se automedicou com doxiciclina (200mg/dia), pois dois casos de febre maculosa foram confirmados em membros da equipe, 10 dias antes do seu retorno para o Brasil. Sem resposta à doxiciclina, procurou assistência médica em 08/09/2009. Todos os exames laboratoriais realizados foram normais, exceto a reação em cadeia da polimerase (PCR )ultrassensível que apresentou discreta elevação (1,01mg/dL). Testes sorológicos para HIV, vírus Epstein Barr, citomegalovírus, toxoplasma, sífilis, vírus das hepatites A, B e C foram negativos. Uma nova avaliação clínica em 15/09/2009 foi realizada e o exame físico foi normal, exceto a adenomegalia com gânglios medindo entre 1,5 a 3cm de diâmetro, de consistência elástica, móveis e dolorosos à palpação, predominantemente na cadeia cervical posterior direita. Apática, emagrecida e afebril, a paciente respondia às solicitações verbais com pouca informação. Vacinada para febre amarela, negava ter sido imunizada para doenças comuns da infância. Na história epidemiológica, relatou que às vezes coletou amostras de fezes de primatas sem luvas e que, eventualmente, pela temperatura mais baixa no período noturno, dormiu em saco de dormir sendo frequentemente picada por ectoparasitas como carrapatos e pulgas.
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Lemos ERS cols - Febre, adenite e anticorpo anti-Bartonella em viajante
discussÃO
SUPORTE FINANCEIRO
REFERÊNCIAS
O exame radiológico de tórax foi normal e a ultrassonografia abdominal confirmou discreta hepatoesplenomegalia.
Com os testes laboratoriais negativos para outras doenças infecciosas, dentro do contexto do diagnóstico diferencial de doença febril associada com adenomegalia e apatia, a tripanossomíase africana (doença do sono) e as rickettsioses foram consideradas. Embora a possibilidade da tripanossomíase fosse remota, a análise molecular pela reação em cadeia da polimerase para Trypanosoma brucei foi realizada e o resultado foi negativo7.
Em relação às rickettsioses, a análise sorológica da amostra de sangue coletada no 5º dia de antibioticoterapia foi realizada utilizando testes sorológicos comerciais -imunofluorescência indireta (IFI) - para a pesquisa de anticorpos antirrickettsias do grupo da febre maculosa IgM e IgG (PanbioR, USA), Ehrlichia chafeensis IgM e IgG (PanbioR, USA) e Bartonella henselae IgG (BionR, USA), seguindo as recomendações do fabricante, com um título de corte de 64, assim como a análise molecular para a pesquisa de Bartonella sp Rickettsia sp e Ehrlichia sp utilizando protocolos previamente estabelecidos10. Todos os resultados foram negativos exceto IFI para bartoneloses, com a presença de imunoglobulina IgG com o título de 512. Com a melhora clínica, após uso de doxiciclina (200mg/dia) por 10 dias, a paciente retornou aos Estados Unidos. Não foi possível coletar nova amostra de sangue para pareamento sorológico.
A importância da medicina do viajante vem crescendo, gradativamente, em função do redimensionamento global de tempo e espaço. Este caso aponta para algumas questões que merecem reflexão: I) o risco de importação de doenças exóticas, II) a inexistência de um programa de controle de intercâmbio para estudo/pesquisa de alunos e profissionais em países e em áreas nos quais não há exigências básicas para a sua execução e III) a necessidade de recomendações e um plano de ação, sob o ponto de vista de saúde pública, para atendimento de doenças febris em viajantes.
Embora com história epidemiológica positiva para diferentes zoonoses silvestres existentes na África, inicialmente a investigação se restringiu à toxoplasmose, rubéola, mononucleose entre outras doenças e a paciente, por sete dias, circulou em aeroportos (São Paulo e Rio de Janeiro) e consultórios antes do atendimento pelo grupo do Instituto Oswaldo Cruz. O relato de contato com pulgas e carrapatos associado ao quadro clínico orientou a suspeita de bartonelose, assim como a história de trabalho com macacos, cuja infecção natural por Bartonella foi recentemente detectada5,8. Diante da possibilidade da tripanossomíase africana, uma análise molecular também foi realizada e o resultado negativo, assim como a própria evolução clínica da paciente, ratificou o diagnóstico de bartonelose8.
Embora a análise sorológica tivesse sido realizada em uma única amostra de soro e o teste sorológico para Bartonella henselae possa apresentar reação cruzada com outras espécies de Bartonella e, em baixos títulos de anticorpos, também com os gêneros Coxiella e Chlamydia, o título sorológico de 512, considerando a sua elevada especificidade (94 a 96%), assim como a própria clínica reforçam a evidência de infecção ativa por bactéria do gênero Bartonella neste caso clínico5.
Dados do GeoSentinel mostram que o espectro de doença e a relação com o local de exposição entre os viajantes que retornam para seu país nativo são variados e que 8% dos que retornam necessitam de cuidados médicos durante ou após viagem. Embora inexistam no Brasil dados oficiais sobre o número de casos de doença do viajante, o aumento de viagens internacionais deve servir de alerta para o risco de zoonoses exóticas1-4. O caso fatal suspeito de febre hemorrágica viral procedente da África do Sul, cujo diagnóstico foi febre maculosa causada por Rickettsia conorii6 no Brasil e, mais recentemente, a febre hemorrágica fatal por Marburg em uma viajante que retornou da África para Holanda confirmam a importância deste alerta9.
Finalmente, com a realização da Copa do Mundo na África do Sul em 2010, é imprescindível que as empresas de turismo, sob a coordenação do Ministério da Saúde, apresentem programas de orientação e medidas que possam reduzir a ocorrência de doenças como rickettsioses, em especial a febre maculosa, cuja importância e frequência como doença do viajante nas últimas décadas em turistas que retornam da África do Sul têm superado as doenças infecciosas como dengue e febre tifóide1-3.
Fundação Oswaldo Cruz e Ministério da Saúde.
1. Freedman DO, Weld LH, Kozarsky PE, Fisk T, Robins R, von Sonnenburg F, et al. Spectrum of disease and relation to place of exposure among ill returned travelers. N Engl J Med 2006; 354:119-130.
2. Jensenius M, Fournier PE, Raoult D. Rickettsioses and the international traveler. Clin Infect Dis 2004; 39:1493-1499.
3. Jensenius M, Xiaohong D, Sonnenburg F, Schwartz E, Keystone JS, Leder K, et al. Multicenter GeoSentrinel Analysis of Rickettial Diseases in International Travelers, 1996-2008. Emerg Infect Dis 2009; 15: 1791-1798.
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6. Almeida DNP, Favacho ARM, Rozental T, Gomes R, Guterres A, Lemos ERS. A case of Spotted Fever Group Rickettsiosis misdiagnosed as Hemorrhagic Viral Fever in an International Traveler from South Africa. Rev Soc Bras Med Trop 2009; 42:151.
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10. Anderson B, Sims K, Regnery R, Robinson L, Schmidt MJ, Goral S, et al. Detection of Rochalimaea henselae DNA in specimens from Cat-Scratch
Disease Patients by PCR. J Clin Microbiol 1994; 32:942-948.
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