terça-feira, 18 de outubro de 2011

10/09/2008 - 18:37 - ATUALIZADO EM 14/06/2009 - 00:57
Escola privada para todos?
Estudos sugerem que, em vez de investir na rede pública, o governo poderia dar o dinheiro aos pais
LUCIANA VICÁRIA
Maíra Soares/ Folha Imagem
QUANTO VALE?
Aula de poesia na escola estadual Demóstenes Marques, em São Paulo. Dá para pagar uma escola equivalente com R$ 108 por mês?
No último mês, moradores das cidades de Nova York, Portland e Washington saíram pelas ruas exigindo liberdade para escolher a escola das crianças. Pais e filhos protestaram contra a qualidade do ensino público nas regiões periféricas das metrópoles. As famílias querem que o Estado devolva o dinheiro dos impostos que vai para a escola pública. Elas preferem ter esse valor na forma de vales, que possam ser usados para ajudar a pagar a mensalidade de escolas particulares.
Os alunos boicotaram mais de 50 escolas públicas. E o debate na internet mobilizou estudantes do mundo todo. A discussão ganhou fôlego com a divulgação de dois novos estudos sobre o efeito dos vales (também chamados de vouchers) em educação. Segundo essas pesquisas, o vale permite que o estudante tenha acesso a uma educação melhor. Além disso, o programa estimularia a escola pública a se aprimorar, por causa da concorrência com os colégios particulares.
Há várias razões para aderir ao programa de vales. A primeira é que ele diminui a evasão escolar e aumenta o rendimento das crianças na escola. Essa é a conclusão de uma pesquisa liderada pelo economista Harry Patrinos, especialista em educação do Banco Mundial. Patrinos avaliou o programa de vales na Colômbia, que beneficiou 125 mil estudantes na década de 90. Só os mais pobres puderam pleitear os vales. A procura foi tão grande que o governo teve de sorteá-los entre os inscritos no programa. Havia cinco vezes mais candidatos que vales. Como o programa sorteou crianças da mesma classe socioeconômica, foi possível comparar o rendimento escolar das que receberam o vale com o das que não tiveram a mesma oportunidade. Entre os beneficiados, o índice de reprovação foi 5 pontos porcentuais menor. A chance de concluir o ensino básico foi entre 15 e 20 pontos porcentuais mais elevada. Além disso, essas crianças pareciam ter mais estímulos para estudar. “Quando os pais têm o direito de escolher a escola das crianças, a família passa a interessar-se mais pela educação”, afirma Patrinos.
Os vales também têm o efeito de melhorar as escolas públicas. Foi o que mostrou o estatístico Greg Forster, ligado à Fundação Friedman, entidade filantrópica que defende o uso universal de vales na educação. Dos oito estudos conduzidos por ele em cidades americanas que aderiram ao programa, sete mostraram que a rede pública melhorou suas notas em até 25%, mesmo com a evasão de parte dos alunos. As escolas de pior qualidade perderam alunos e fecharam por falta de recursos. Já as melhores passaram a cobrar resultados de seus professores e reavaliaram a gestão de seus recursos. “É a lógica de colocar todos para competir. O aluno vai escolher pela qualidade. Não importa se a escola é pública ou privada”, diz Forster. Em Milwalkee, no Estado de Wisconsin, os vales melhoraram o nível do ensino até nas escolas privadas.
Os vales também são uma boa opção para aumentar a oferta de vagas com menos recursos públicos. Na Suécia, a iniciativa privada criou escolas com currículos específicos, que enfatizam o aprendizado de artes, ciência e línguas estrangeiras, de acordo com a demanda de cada região. O efeito disso ao longo da última década foi enorme: o país passou a ter novas escolas privadas, os pais e alunos ficaram satisfeitos e os currículos passaram a ser mais adequados. E o governo não precisou investir quase nada. Apenas tornou disponível o dinheiro que antes iria obrigatoriamente para escolas públicas. Antes dos vales, 1% dos alunos estava matriculado em escolas particulares. Depois deles, o número subiu para cerca de 10%, de acordo com o governo sueco.
Melanie Stetson Freeman/Getty Images
CURRÍCULO DIFERENTE 
Aula de vocabulário em St. Paul, Minessota. Nos EUA, a Constituição inclui os vales como opção para o ensino
O conceito dos vales na educação foi proposto há mais de 50 anos pelo economista americano Milton Friedman, que morreu em 2006. Segundo sua teoria, a lógica do mercado, que regula a produção e a oferta de bens e serviços, também se aplica à educação. “Da mesma forma que separamos a Igreja do Estado, devemos separar o Estado da educação”, afirmou Friedman em um documento célebre que circulou entre as universidades nos anos 60. Ele defendia o fim da educação pública. Na opinião de Friedman, o Estado gere mal os recursos e é menos eficiente que a s iniciativa privada. Portanto, não deveria ser o provedor do ensino. Em vez de usar o dinheiro de impostos para manter uma rede de escolas públicas, seria mais justo, segundo ele, dar o dinheiro às famílias para usarem na educação dos filhos.
O primeiro efeito dos vales, seguindo a teoria de Friedman, é o aumento da oferta de vagas em escolas privadas. O segundo é o estímulo à competição. As escolas responderiam com mais qualidade e mensalidades menores. “Como toda empresa que opera em regime de concorrência, os donos das escolas procuram contratar os melhores professores, implantar os melhores métodos educacionais e gerir os recursos da melhor forma possível”, diz Forster, da Fundação Friedman. As escolas que não estiverem em sintonia com esses princípios estariam condenadas ao fracasso.
Se na teoria liberal a educação funciona como uma empresa, na prática o uso dos vales depende de diversos fatores não previstos por Friedman. Há estudos dos anos 90 que mostram que o vale-educação segrega os estudantes. O Chile adotou um sistema universal de vales em 1981. Todas as crianças de escolas públicas teriam direito a ele. Mas as escolas privadas tinham a liberdade de escolher de quem iam aceitar os vales. Elas ficavam com os melhores alunos.
Houve uma fuga da classe média baixa para as escolas privadas. O ensino público ficou com os piores, e sua qualidade média caiu. Por algum motivo, a iniciativa privada também não criou escolas para absorver os outros alunos, considerados piores. “De certa forma, os vouchers aumentaram a desigualdade porque as crianças mais pobres e com dificuldades de aprendizado foram deixadas para trás”, afirma Naércio Aquino Menezes Filho, professor da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (USP).
Será que um sistema de vales daria certo no Brasil? Mesmo quem aprova o sistema ainda tem dúvidas se ele poderia ser aplicado aqui. “No Brasil, os vales não têm como dar certo porque nossa desigualdade social é imensa”, diz Ilona Becskezázy, da Fundação Lemann. Ela se diz favorável aos vales. Mas afirma que antes de pensar neles seria preciso que os pais aprendessem o que é uma escola de qualidade. “Ainda falta informação. Muitos pais acham que a escola pública é boa só porque tem teto e merenda”, diz Ilona. Ela teme que esses pais não tenham condições de fazer as escolhas adequadas.
Patrício Fuentes/La Tercera
SEGREGAÇÃO
Alunos de uma escola em Santiago, no Chile. Lá, os pobres continuaram na rede pública
O principal ponto de resistência à idéia dos vales são os sindicatos dos professores. “Em vez de aumentar o número de vagas, as escolas particulares ficariam mais caras”, diz Cláudio Fonseca, presidente do Sindicato dos Profissionais em Educação no Ensino Municipal de São Paulo. Na opinião dele, os colégios privados não teriam interesse em incluir os alunos mais pobres, como as escolas públicas. Fonseca argumenta que a escola privada só atrairia os alunos cujos pais pudessem complementar o vale com algum dinheiro próprio. “A escola pública viraria um depósito de crianças pobres”, diz. O que está em jogo são os valores envolvidos. Os governos federal, estadual e municipal gastam cerca de R$ 1.300 por ano com cada aluno de ensino fundamental. Dá R$ 108 por mês. É possível pagar um colégio melhor que a escola pública com essa mensalidade? Ninguém sabe ainda.
Mesmo assim, o sistema de vales tem defensores ardorosos. “Os vales não resolvem os problemas da educação, mas não há perda em experimentá-los”, diz Fernando Veloso, professor do Ibmec do Rio de Janeiro. Para Naércio, da USP, o ideal seria testar o sistema em cidades pequenas. “Cada lugar responderia diferentemente ao mesmo programa.” Para isso, diz o economista, o primeiro passo é criar uma lei federal que permita o uso dos vales. Estamos perto disso. A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou neste ano um projeto de lei que prevê a oferta de bolsas para alunos carentes. Falta ainda passar pelo plenário da Câmara e por sanção presidencial. Se sair a permissão, é provável que o sistema seja adotado em algumas cidades brasileiras. E a experiência permitirá entender melhor como fazer os vales funcionar.