terça-feira, 21 de junho de 2016

Erros sistemáticos de concepção curricular no Brasil e como superá-los

A discussão sobre a BNCC segue. Muitos estados, municípios e mesmo as escolas particulares vêm procurando melhorar sua documentação curricular, ou pelo menos estudar o que existe, para estar mais preparados quando a versão final da BNCC ficar pronta. Ao estudar muitos documentos brasileiros e compará-los com seus pares de países desenvolvidos, identifiquei uma série de erros sistemáticos, que organizo para nossos leitores e ouvintes do Missão Aluno da Rádio CBN.
O problema é o seguinte:
No Brasil há pouca familiaridade com a elaboração de currículos, na forma como são concebidos em países industrializados de alta renda que venho utilizando como referência nos meus estudos. Como consequência, são encontrados, via de regra, mas em diferentes intensidades, equívocos sistemáticos no conjunto de documentação curricular estudado. Os países desenvolvidos, ao fazer ou revisar seus currículos, costumam começar por uma revisão bibliográfica tanto da teoria, quanto de pesquisas sobre aprendizado, e também dos documentos curriculares de países com bom histórico em avaliações internacionais. Além disso, ao se elaborar um currículo deve-se partir da percepção de que o documento curricular é , em primeiro lugar, um INSTRUMENTO DE GESTÃO DE PLANEJAMENTO PEDAGÓGICO para a sala de aula e não uma bandeira de minorias ou de correntes acadêmicas.
São os seguintes os erros sistemáticos:
Equívoco sistemático 1 – não olhar para o futuro, mas para o passado: 
O ponto de partida para elaboração dos currículos no Brasil raramente nasce de uma reflexão estratégica. Uma das exceções é o currículo do Acre, que partiu da necessidade de ensinar mais, frente a um corpo docente com formação muito frágil. Normalmente, a reflexão inicial é restrita a longas revisões da legislação existente (o que ancora a produção no passado) e/ou a citações e embasamento teórico desatualizados (o que tem pouca  relação com as práticas curriculares de países desenvolvidos). As revisões que precedem os currículos de países desenvolvidos são compostas de pesquisas científicas, de análises de práticas e de documentações curriculares de outros países desenvolvidos e de resultados de avaliações externas internacionais, como o Pisa.
Partir da legislação educacional brasileira não é uma boa idéia porque ela é marcada pela AMBIGUIDADE na definição das RESPONSABILIDADES DE ENSINAR – LDB:
As bases que dão sustentação ao projeto nacional de educação responsabilizam o poder público, a família, a sociedade e a escola pela garantia a todos os estudantes de um ensino ministrado com base nos seguintes princípios:
I – igualdade de condições para o acesso, inclusão, permanência e sucesso na escola;
II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber;
III – pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas;
IV – respeito à liberdade e aos direitos;
V – coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;
VI – gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;
VII – valorização do profissional da educação escolar;
VIII – gestão democrática do ensino público, na forma da legislação e normas dos sistemas de ensino;
IX – garantia de padrão de qualidade;
X – valorização da experiência extraescolar;
XI – vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais.
E também pela RESISTÊNCIA na definição das responsabilidades DO QUE  E COMO ENSINAR – texto abaixo é extraído da DCNEB, pg. 25
Cabe, pois, à escola, diante dessa sua natureza, assumir diferentes papéis, no exercício da sua missão essencial, que é a de construir uma cultura de direitos humanos para preparar cidadãos plenos. A educação destina-se a múltiplos sujeitos e tem como objetivo a troca de saberes , a socialização e o confronto do conhecimento, segundo diferentes abordagens, exercidas por pessoas de diferentes condições físicas, sensoriais, intelectuais e emocionais, classes sociais, crenças, etnias, gêneros, origens, contextos socioculturais, e da cidade, do campo e de aldeias. Por isso, é preciso fazer da escola a instituição acolhedora, inclusiva, pois essa é uma opção “transgressora”, porque rompe com a ilusão da homogeneidade e provoca, quase sempre, uma espécie de crise de identidade institucional.
Sugestão de abordagem:
Partir  de uma reflexão estratégica, baseada, por exemplo, na missão e visão de futuro de uma rede de ensino, de um plano de governo, ou de uma escola. Esta reflexão deve ser registrada com cuidado e resumida de forma a tornar-se um guia de decisões para a escrita do currículo, no que se refere às suas escolhas mais estratégicas, como nível de rigor, velocidade de progressão e tipos de conteúdo a serem incluídos no documento. Obviamente que isso não exime nenhuma instituição séria de fazer uma abrangente revisão bibliográfica das documentações curriculares de unidades territoriais como, por exemplo o Reino Unido, a província de Ontário no CanadáPortugalFrança e o documento curricular proposto para os Estados Unidos da América, o Common Core.
Equívoco sistemático 2 – achar que os alunos são pouco capazes e manter as expectativas baixas:
Atraso na introdução de expectativas, competências e conteúdos, deixando um vácuo educacional nos anos iniciais do EF e uma sobrecarga a partir do 5º ano, ou seja, a falta de rigor logo no início da escolarização compromete a capacidade de aprendizagem quando se introduz demandas cognitivas um pouco mais altas nas etapas seguintes, por que o processo é cumulativo.
Sugestão de abordagem:
Partir da documentação internacional como referência de rigor, ou seja, como  parâmetro do que se considera desejável e possível a ser perseguido em relação ao aprendizado dos alunos de mesma faixa etária, INDEPENDENTE de sua origem social – uma das competências de um currículo de qualidade é combater as desigualdades originadas ou exacerbadas na escola. As pesquisas de Neurociências e de como os alunos aprendem embasam as decisões sobre o que, como e quando introduzir conceitos, habilidades e conteúdos na educação escolar. Aqui no Brasil usa-se a desculpa de que o aluno é pobre para não se propor altas expectativas de aprendizagem.
Equívoco sistemático 3 – desconhecer referências teóricas úteis, como a Taxonomia de Bloom
Não utilizar taxonomias cognitivas como SOLO e Bloom* para garantir verticalmente, em todos os anos, que os alunos estão expostos a desafios cognitivos diferentes e crescentes
Sugestão de abordagem:
É importante que os brasileiros conheçam as referências internacionais para perceberem a magnitude das besteiras sistemáticas que são institucionalizadas aqui no Brasil, não só com anuência majoritária, mas com a assinatura da autoria do setor acadêmico de educação brasileiro. As taxonomias propõem verbos concretos para a escrita das habilidades. Compreender, desenvolver e consolidar estão fora – os verbos a serem usado devem permitir a observação do aprendizado: identificar, comparar, analisar e contrapor, por exemplo.
Com o auxílio de uma boa escolha de verbos, deve ser feito um ESFORÇO PARA DAR PROGRESSÃO VERTICAL E HORIZONTAL ao aprendizado: vertical é dentro do mesmo ano e horizontal é de um ano para o seguinte. É preciso reconhecer que os alunos têm capacidade de aprender muito mais do que hoje aprendem no Brasil: MAIS cedo e MAIS complexo.
Um dos exemplos mais fáceis de se comparar é o que se ensina às crianças até os 6 anos no Brasil e o que se ensina na França, por exemplo, conforme resumo abaixo:
“Ao final da pré-escola [6 anos] o meu filho será capaz de:
–Identificar as principais características da escrita;
–Ouvir e compreender um texto lido por adultos;
–Conhecer alguns textos do patrimônio [francês], principalmente contos;
–Produzir texto oral de maneira apropriada para que possa ser escrito por um adulto;
–Diferenciar sons [fonemas], distinguir as sílabas de uma palavra pronunciada, reconhecer sílabas similares em enunciados diferentes;
–Fazer a correspondência entre oral e escrita de palavras de um enunciado curto;
–Reconhecer e escreve a maior parte das letras do alfabeto;
Fazer a correspondência entre sons e letras [grafemas e fonemas]
Fazer cópia em letra cursiva, com auxílio do professor, de palavras curtas simples, cuja correspondência entre sons e letras [grafemas e fonemas] já tenham sido estudadas;
Escrever o seu nome em letra cursiva.
Equívoco sistemático 4 – A transição entre as etapas é truncada
As etapas curriculares não têm transição suave entre si:  os feudos conceituais e de responsabilidade entre as etapas escolares dominam a cena. Verdadeiras muralhas de conceitos e expectativas foram construídas entre elas. O ensino médio não conversa com o fundamental II, que não conversa com o Fundamental I que, por sua vez ainda acha que na educação infantil não acontece nada de aprendizado, apenas brincadeiras. Como se elas não fossem em si, fonte de aprendizado sistemático. A divisão do ensino médio em linhas diferentes de aprendizado, separando o que prepara para a universidade do profissionalizante, por exemplo, DEPENDE de um ensino fundamental amplo e competente. Se os alunos não aprenderem quase nada ANTES do ensino médio, separar os cursos apenas vai aumentar o fosso entre as classes sociais no Brasil.
Sugestão de abordagem:
Ao escrever o documento curricular, estabelecer PERFIS DE ENTRADA/SAÍDA DOS ALUNOS para cada etapa da educação básica:
1º ano do EF – reflete o trabalho anterior de EI
5º ano do EF – reflete o que se considera como responsabilidade da educação elementar
9º ano do EF – reflete o que se almeja para a educação secundária, como preparo para o EM e até para o ES, como no caso do Common Core dos EUA
Erro sistemático 5 – Confundir expectativas e habilidades com exemplos e listas de atividade:
Fazer confusão entre a expectativa de ensino e as atividades de ensino que a desenvolvem. Por exemplo: diferenciar fato de opinião em texto jornalístico ou (EF02LP13) Construir o sentido global de quadrinhos e tirinhas por meio da conexão entre imagens e palavras.
USO PARCIMONIOSO DE EXEMPLOS DE ATIVIDADES OU DE CONTEÚDOS apenas quando estritamente necessário para diferenciar, explicar ou dar progressão em uma habilidade. Foco na progressão de competências claramente definidas.
Conclusão: ao conhecer de antemão os equívocos sistemáticos, é possível evitá-los e elaborar um documento curricular competente, que sirva de base para um planejamento pedagógico e escolar ambicioso.

SOLO e Bloom* 

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