A leitura em língua estrangeira a partir do conceito de gênero textual
Ano 5, n. 12, 2012
Autor: Gisele de Carvalho
Sobre o autor: Gisele de Carvalho é professora adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Fez mestrado em Língua Inglesa e doutorado em Estudos Linguísticos na Universidade Federal Fluminense. Autora de artigos e capítulos de livros, ultimamente tem-se dedicado a estudar gêneros opinativos veiculados em mídia impressa sob a perspectiva da Análise Crítica do Discurso.
Data: 19/10/2012
Publicado em: 19/10/2012
Sobre o autor: Gisele de Carvalho é professora adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Fez mestrado em Língua Inglesa e doutorado em Estudos Linguísticos na Universidade Federal Fluminense. Autora de artigos e capítulos de livros, ultimamente tem-se dedicado a estudar gêneros opinativos veiculados em mídia impressa sob a perspectiva da Análise Crítica do Discurso.
Data: 19/10/2012
Publicado em: 19/10/2012
Comece pelo que você sabe. Esse é o mote em torno do qual gira este pequeno artigo.
Ao ler um texto em língua estrangeira, principalmente quando não a dominamos, a tendência é desanimar, ou mesmo parar, no primeiro obstáculo; em geral, na primeira palavra desconhecida. Mas será que dependemos tanto do conhecimento lexical para entendermos um texto? Estaria mentido se respondesse “não”, mas por ora gostaria de deixar resposta tão categórica em suspenso, como um “talvez”. Há questões tão importantes quanto saber o significado das palavras e que são, via de regra, postas em segundo plano quando temos de ler em uma língua estrangeira, especialmente em situação de prova.
Comecemos por uma experiência. Em viagem ao extremo norte do Canadá, me deparei com o texto abaixo no hotel em que me hospedei em Pond Inlet. Ele está escrito em inuktitut, a língua dos Inuits, habitantes do Ártico, e é bem diferente da nossa língua portuguesa. Imediatamente – perdoe as esquisitices dos professores de línguas estrangeiras –, fiquei olhando o texto e pensando o que poderia depreender dele. Que tal tentar também?
Muito provavelmente, você reparou nos números, nos emoticons, nos pontos de interrogação, na disposição dos elementos na página, na repetição de uma pergunta sempre abaixo da linha dos números de 1 a 5 e chegou à conclusão de que estava diante de uma pesquisa do grau de satisfação dos hóspedes do hotel na forma de um questionário. Sem conhecer uma só palavra em inuktitut, acertou em cheio. Daqui para frente, você pode continuar com o jogo de adivinhação e tentar imaginar o que o hóspede seria convidado a avaliar: o atendimento na recepção, o conforto das instalações, a limpeza dos apartamentos, a qualidade do café da manhã. Sem ter conhecimento da língua, no entanto, não somos capazes de acertar na mosca a respeito do teor das perguntas no texto; mas passamos perto, com certeza.
O que se pode concluir do experimento? Em primeiro lugar, para inferir que o texto se trata de um questionário sobre o grau de satisfação, você começou por tudo o que sabe ou pode reconhecer. Em segundo, para concluir que o questionário visa a aferir o grau de satisfação de hóspedes de um hotel, você usou a informação acerca do contexto no qual o texto se insere.
É aqui que o conceito de gênero nos auxilia a compreender e A refletir, com um pouco mais de segurança, sobre os textos aos quais somos expostos. É aqui também que começamos a fazer a ponte com a teoria capaz de informar nossas decisões analíticas, já que, mesmo sem nos dar conta, somos analistas da linguagem em tempo integral.
Tomemos como ponto de partida a definição de gênero como “atividade com propósito e estágios reconhecidos, na qual os participantes tomam parte/se engajam como membros de uma cultura”*. Os gêneros organizam nossas interações. Exagero? Pense bem nestes exemplos do dia a dia: por que será que, ao almoçar com nossos familiares, não precisamos das fórmulas de polidez (para pedir que alguém lhe passe o azeite) que usamos com pessoas com quem não temos tanta intimidade? Por que temos tanta certeza de que as notícias de jornal não são rimadas? Se o currículo de um trabalhador, enviado para uma seleção de emprego, não está de acordo com a configuração convencional do gênero, e o de outro está, este será convidado para a entrevista, muito provavelmente. Mas – isso é importante – gêneros não são camisas de força. São pontos de partida por meio dos quais não precisamos começar do zero e que nos permitem prever como as interações se processam.
Voltando à definição, podemos depreender que gêneros são produzidos por atores sociais em seus contextos e são reconhecíveis (ou analisáveis) em seus aspectos macrodiscursivos e microtextuais. Tomemos como exemplo, a notícia de jornal e sua organização macrodiscursiva canônica em manchete e lead, seguidos de parágrafos que relatam o evento do ponto de vista da relevância (e não da ordem cronológica), de forma que os aspectos mais importantes são registrados logo no início do texto. Esses aspectos são intercalados com a voz e visão de autoridades e/ou testemunhas do evento em pauta. Esses seriam os estágios de uma notícia: cada um tem sua função específica, ao mesmo tempo que contribui para o todo, ou seja, para que o gênero cumpra seu papel de prover informações sobre um evento recente e relevante para uma comunidade, por meio de um texto escrito, publicado em jornal. No nível microtextual, podemos perceber características léxico-gramaticais recorrentes em, por exemplo, manchetes, como a ausência de artigos e presença de verbos no presente para se referir ao passado recente; ou ainda o uso de diferentes tipos de discurso relatado como modo de representação das vozes que figuram no texto. E o melhor: sabemos disso.
As escolhas léxico-gramaticais, por serem motivadas, não ocorrem no vácuo. Todo uso de linguagem está intimamente ligado ao contexto da situação, o contexto mais imediato da ocorrência de um texto. Assim, podemos observar e nos perguntar o que mais imediatamente tem impacto em nossas escolhas lexicais e gramaticais: em que área do conhecimento situamos nossa contribuição, com que propósito comunicativo o fazemos; que papéis sociais desempenhamos, e se temos mais ou menos controle sobre o nosso interlocutor, se o nosso relacionamento com ele é marcado por distância ou proximidade social; qual o papel da linguagem em nossas interações, de que canais e meios dispomos ao fazer uso dela. Em linhas gerais, se nossa contribuição se situa em um campo especializado, podemos prever que o texto produzido poderá conter léxico que aponta não só para a área do conhecimento em questão, como também para especificidades da área e assim conter termos técnicos e jargões. Se recebo um torpedo de minha filha me informando que vai chegar mais tarde em casa, sei que a despedida “bj!” é mais do que adequada já que é índice de uma relação em que as participantes mantêm contato frequente e envolvimento afetivo alto e que, portanto, podem usar linguagem marcada pela informalidade em suas trocas. O mesmo torpedo (mae vou chegar + tarde as 11. bj!), com suas abreviações, falta de acentos, de maiúsculas e de pontuação e com um símbolo matemático em lugar do advérbio, está plenamente de acordo com o canal gráfico e a forma escrita de uma mensagem de texto que se pretende ágil.
Esse é um dos conceitos-chave de uma abordagem para o estudo e a descrição da linguagem que prioriza a correlação sistemática, mas probabilística, entre texto e contexto, e que a compreende como uma via de mão dupla: do texto pode-se deduzir o contexto e o contexto permite prever como os significados manifestos no texto estarão linguisticamente representados. Essa correlação também nos permite dois caminhos metodológicos, que se alternam, para abordar um texto, um ascendente – do texto para o contexto – e outro descendente. Assim, é com base nesses pressupostos que, ao lermos em uma língua estrangeira, podemos nos beneficiar do que fazemos a todo instante: prevemos e deduzimos.
Um aspecto importante do conceito de gênero com que estamos trabalhando está na compreensão de que convenções sociais estabelecem como devemos nos comportar discursivamente a fim de levar a cabo nossas ações. Estas se encontram em estreita relação com o contexto de cultura. Ao longo da vida escolar, por exemplo, vamos apreendendo como certos textos se desenvolvem – como começam, progridem e terminam –, para que seu propósito comunicativo se realize. Essa experiência nos faz poder prever o que começa com Era uma vez..., que o fragmento nascida no dia 20 de janeiro de 1993, às 14 horas e 30 minutos, filha de... foi, provavelmente, retirado do meio de uma certidão de nascimento e que Atenciosamente seguido de uma assinatura indicaria o fim de uma carta mais formal. Assim, vamos ampliando nossa socialização no mundo dos gêneros, e essa experiência nos prepara tanto para reconhecermos como as interações sociais se processam, quanto para podermos agir de acordo.
Desse modo, refletir sobre o texto a que estamos expostos como um exemplar de um gênero é dar um primeiro passo no sentido de compreendê-lo, mesmo se não temos muito conhecimento da língua em que ele está escrito. Mas é preciso fazer esse exercício de forma consciente, “antenada”, transferindo para o momento da leitura em língua estrangeira tudo o que fazemos quase automaticamente ao ler em nossa língua materna.
Portanto, comece pelo que você sabe – e vai se dar conta de que sabe muito.
* EGGINS, S.; SLADE, D. Analysing casual conversation. London: Cassel, 1997, p. 56. A perspectiva teórica destes autores é denominada sistêmico-funcional. Sugerimos, também, para ampliação desta discussão, nosso artigo “A teoria traduzida em prática: atividades de leitura baseadas nos conceitos de Contexto de Cultura e Contexto de Situação”, publicado na revista Ensino de leitura: fundamentos, práticas e reflexões para professores da era digital. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras da UFRJ, Núcleo de Pesquisas em Linguagem, Educação e Tecnologia, 2011 (disponível para download emhttp://www.lingnet.pro.br/pages/ebooks-lingnet.php#axzz28pPh8pZ1).
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