quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Pensamento e Linguagem (Lev Semenovick Vigotsky)


O fato mais importante posto a nu pelo estudo genético do pensamento e a linguagem é o fato de a relação entre ambas passar por muitas alterações; os progressos no pensamento e na linguagem não seguem trajetórias paralelas: as suas curvas de desenvolvimento cruzam-se repetidas vezes, podem aproximar-se e correr lado a lado, podem até fundir-se por momentos, mas acabam por se afastar de novo. Isto aplica-se tanto ao desenvolvimento filogenético como ao ontogenético.
Nos animais, o pensamento e a linguagem têm varias raízes e desenvolvem-se segundo diferentes trajetórias de desenvolvimento. Este fato é confirmado pelos estudos recentes de Koehler, Yerkes e outros sobre os macacos. Koehler provou que o surgimento de um intelecto embrionário nos animais — isto é, o aparecimento de pensamento no sentido próprio do termo — não se encontra de maneira nenhuma relacionado com a linguagem. As “invenções” dos macacos na execução e utilização de instrumentos, ou no capítulo da descoberta de caminhos indiretos para a solução de determinados problemas, embora sejam sem sombra de dúvida pensamento embrionário, pertencem a uma fase pré-linguística do desenvolvimento do pensamento.
Na opinião de Koehler, as suas investigações mostram que o chimpanzé evidencia um esboço de comportamento intelectual do mesmo gênero e do mesmo tipo que o do homem. São a ausência de linguagem. “esse instrumento técnico auxiliar infinitamente valioso”, e a pobreza das imagens, “esse material intelectual extremamente importante”, que explicam a tremenda diferença existente entre os antropóides e os homens mais primitivos “e vedam ao chimpanzé o mais pequeno desenvolvimento cultural” (18)(18, pp 191-192).
Vigora considerável desacordo entre os psicólogos das diferentes escolas acerca da interpretação teórica das descobertas de Koehler. A massa de literatura crítica a que estes estudos deram origem representa uma grande variedade de pontos de vista o que torna tanto mais significativo o ninguém contestar os fatos ou a dedução que mais particularmente nos interessa: a independência entre as ações do chimpanzé e a linguagem. Isto é admitido de boa mente, mesmo pelos psicólogos que, como Thorndyke e Borovski. nada vêem nas ações do chimpanzé para lá dos mecanismos instintuais e da aprendizagem por “tentativas e erros”, “nada mais, salvo o já conhecido processo de formação de hábitos” (4)(4, p. 179). e pelos introspeccionistas que fogem a rebaixar o intelecto ao nível do comportamento dos macacos, mesmo dos mais avançados. Buehler diz com muito acerto que as ações dos chimpanzés não têm qualquer relação com a linguagem; e que, no homem, o pensamento mobilizado pela utilização dos utensílios (Werkzeugdenken) também tem uma relação muito mais tênue com a linguagem e com os conceitos do que qualquer outra forma de pensamento.
A questão seria bem simples se os macacos não tivessem nenhum rudimento de linguagem, não tivessem nada que se assemelhasse à linguagem. Ora, acontece que encontramos no chimpanzé uma linguagem relativamente bem desenvolvida, que, sob certos aspectos — sobretudo foneticamente — não deixa de ser semelhante à humana. Esta linguagem tem uma característica notável: a de funcionar independentemente do intelecto. Koehler, que estudou os chimpanzés durante muitos anos na Estação de Antropóides das Ilhas Canárias, ensina-nos que as suas expressões fonéticas denotam apenas desejos e estados subjetivos; são expressões de afetos e nunca um sinal de algo objetivo” (19)(19, p. 27). Mas a fonética dos chimpanzés e a humana têm tantas coisas em comum que podemos confiantemente presumir que a ausência de um discurso do gênero humano não se deve a nenhuma causa periférica.
O chimpanzé é um animal extremamente gregário e responde de forma muito intensa à presença doutros exemplares da sua espécie. Koehler descreve formas altamente diversificadas de “comunicação lingüística” entre chimpanzés. Em primeiro lugar vem o seu vasto repertório de expressões afetivas: jogo facial, gestos, vocalização; a seguir encontram-se os movimentos que exprimem as emoções sociais; gestos de saudação, etc. Os macacos são capazes tanto de “compreender mutuamente os seus gestos” como também de “exprimir”, por meio de gestos, desejos que envolvem outros animais. Habitualmente, um chimpanzé executará o início de uma ação que pretende que outro animal execute — por exemplo, empurrá-lo-á e executará os movimentos iniciais de marcha para “convidar” o outro a segui-lo, ou agarrará o ar quando pretende que o outro lhe dê uma banana. Todos estes gestos são gestos relacionados diretamente com a própria ação. Koehler menciona que o experimentador é levado a utilizar meios de comunicação elementares essencialmente semelhantes para transmitir aos macacos aquilo que espera deles.
Estas observações confirmam sobejamente a opinião de Wundt segundo a qual os gestos de apontar que constituem o primeiro estádio do desenvolvimento da linguagem humana não aparecem ainda nos animais, mas alguns gestos dos macacos são uma forma de transição entre o movimento de preensão e o de apontar. (56)(56, p. 219). Consideramos que este gesto de transição é um passo muito importante da expressão afetiva não adulterada para a linguagem objetiva.
Não há no entanto provas factuais de que os animais tenham atingido o estádio da representação objetiva de nenhuma das suas atividades. Os chimpanzés de Koehler brincavam com barro colorido, começando por “pintar., com os lábios e a língua e passando mais tarde para pincéis a sério; mas estes animais — que normalmente transferem para as suas brincadeiras o uso dos utensílios e outros comportamentos aprendidos em atividades “sérias” (isto é, em experiências) e, vice-versa — nunca evidenciaram a mínima intenção de representar o quer que fosse nos seus desenhos nem o mais leve indício de atribuírem o mais pequeno significado aos seus produtos. Afirma Buehler:
Certos fatos põe-nos de sobreaviso no sentido de não sobrestimarmos as ações dos chimpanzés. Sabemos que nunca nenhum viajante confundiu um gorila ou um chimpanzé com um homem, e que nunca ninguém observou entre eles nenhum dos utensílios ou métodos tradicionais que, nos homens, embora variando com as tribos, indicam a transmissão de geração em geração das descobertas já feitas, nenhuma das arranhadelas que executam na areia ou no barro poderia ser confundida com desenhos que representassem alguma coisa ou com decorações traçadas durante a atividade lúdica; não há linguagem representacional, isto é, não há sons equivalentes a nomes. Todo este conjunto de circunstâncias deve ter alguma causa intrínseca (7)(7, p. 20).
De entre os observadores modernos dos macacos, Yerkes deve ser o único que explica a sua carência de linguagem por outras razões que não sejam as “causas intrínsecas”. A sua investigação sobre o cérebro do orangotango produziram dados muito semelhantes aos de Koehler; mas levou as suas conclusões mais longe, pois admite uma “inteleção mais elevada” nos orangotangos — ao nível é certo de uma criança de três anos, pelo menos (57)(57, p. 132).
Yerkes deduz esta intelecção com base em semelhanças superficiais entre o comportamento dos homens e o dos antropóides: não apresenta nenhuma prova objetiva de que os orangotangos resolvam os problemas socorrendo-se da intelecção, isto é, de “imagens”, ou de que sigam e discirnam os estímulos. No estudo dos animais superiores, pode-se usar a analogia com bons resultados, dentro dos limites da objetividade, mas basear uma hipótese em analogias não será com certeza um procedimento científico correto.
Koehler, por outro lado, foi mais além: não se limitou a utilizar a simples analogia na sua investigação da natureza dos processos intelectuais dos chimpanzés. Mostrou também, por meio de uma análise experimental rigorosa, que o êxito das ações dos animais dependia do fato de eles poderem ver todos os elementos da situação simultaneamente — este fator era decisivo para o seu comportamento. Se o pau que utilizavam para chegar a um fruto colocado para lá das barras fosse ligeiramente deslocado de forma que o utensílio (o pau) e o objetivo (o fruto) deixassem de ser visíveis num só relance, a resolução do problema tornar-se-ia muito difícil, freqüentemente impossível até (especialmente durante as primeiras experiências). Os macacos tinham aprendido a alongar os seus utensílios, inserindo um pau no orifício praticado noutro pau. Se por acaso os dois paus se cruzassem nas suas mãos formando um X, tornavam-se incapazes de realizar a operação familiar muito praticada de alongar o utensílio. Poderiam citar-se dúzias de exemplos destes extraídos das experiências de Koehler.
Koehler considera que a presença real de uma situação bastante simples é condição indispensável em qualquer investigação do intelecto dos chimpanzés, condição sem a qual o seu intelecto não funcionará: conclui daqui que as limitações intrínsecas da “imagética” (ou “ideação”) são uma característica fundamental do comportamento intelectual do chimpanzé. Se aceitarmos as teses de Koehler, então a hipótese de Yerkes parece mais do que duvidosa.
Em conexão com estes recentes estudos experimentais e observações do intelecto e da linguagem dos chimpanzés, Yerkes apresenta novo material sobre o seu desenvolvimento lingüístico e uma nova e engenhosa teoria que pretende explicar a sua carência de verdadeira linguagem. “As reações orais”, afirma ele, “são muito freqüentes e variadas nos chimpanzés jovens, mas a linguagem no sentido humano não existe” (58)(58, p. 53). 0 seu aparelho vocal é tão desenvolvido e funciona tão bem como o do homem. O que lhe falta é a tendência para imitar sons. A sua mímica está quase totalmente dependente dos estímulos óticos; eles copiam ações, mas não sons. São incapazes de fazer o que o papagaio faz com tanto êxito.
Se as tendências imitativas do papagaio se combinassem com o calibre intelectual das do chimpanzé, este último possuiria sem dúvida linguagem, já que tem um mecanismo vocal semelhante ao do homem, assim como um intelecto de tipo e nível que lhe permitem utilizar os sons tendo em vista o discurso oral (58)(58, p. 53).
Nas suas experiências, Yerkes aplicou quatro métodos para ensinar os chimpanzés a falar. Nenhum deles obteve êxito. Tais fracassos, em princípio, nunca resolvem um problema, como é claro. Neste caso, estamos ainda para saber se é ou não possível ensinar os chimpanzés a falar. Não é raro que a culpa caiba ao experimentador. Koehler diz que se os anteriores estudos não conseguiram mostrar que os chimpanzés não têm intelecto, tal não se deve ao fato de os chimpanzés não o possuírem, mas devido à inadequação dos métodos, à ignorância dos graus de complexidade no interior dos quais o intelecto do chimpanzé pode manifestar-se, à ignorância da sua dependência, à ignorância do fato que tal manifestação depende da existência de uma situação visual global. “As investigações sobre a capacidade intelectual — troçava Koehler — “testam tanto o investigador como o investigado” (18)(18, p. 191).
Sem terem resolvido a questão em princípio, as experiências de Yerkes mostraram mais uma vez que os antropóides não têm nada que se pareça com a linguagem humana, nem sequer em embrião. Se relacionarmos isto com o que já sabemos de outras fontes, podemos presumir que os macacos são provavelmente incapazes de acederem a uma verdadeira linguagem.
Possuindo eles o aparelho vocal indispensável e a gama de sons necessários porque razão são incapazes de falar? Yerkes atribui isso à ausência da capacidade de imitação, ou à sua debilidade. Pode ter sido esta a causa dos resultados negativos das suas experiências, mas provavelmente ele não terá razão ao ver nessa carência a causa fundamental da ausência de linguagem nos macacos. Embora ele a dê como ponto assente, esta última tese é negada por tudo o que conhecemos do intelecto do chimpanzé.
Yerkes dispunha de um excelente meio para comprovar a sua tese, meio esse que por qualquer razão não utilizou e que muito gostaríamos de poder aplicar se disso tivéssemos possibilidade material: excluiríamos o fator auditivo ao adestrarmos as qualidades lingüísticas dos animais. A linguagem não depende necessariamente do som. Há por exemplo a linguagem de sinais dos surdos-mudos e a leitura dos lábios, que é também interpretação de movimentos. Nas linguagens dos povos primitivos, os gestos são utilizados em paralelo com o som e desempenham um papel de certa importância. Em princípio, a linguagem não depende da natureza do material que emprega. Se é verdade que os chimpanzés têm o intelecto necessário para adquirirem algo análogo à linguagem humana, e o único problema reside no fato de não serem capazes de imitação vocal, então deveriam ser capazes de dominar nas experiências um qualquer tipo de gestos convencionais, cuja função psicológica seria precisamente a mesma dos sons convencionais. Como o próprio Yerkes conjectura, poder-se-ia treinar os chimpanzés a utilizarem gestos de mão, por exemplo, em substituição dos sons. O meio de expressão não está em causa; o que importa é o uso funcional dos signos, de quaisquer signos que possam desempenhar um papel correspondente ao da linguagem humana.
Este método ainda não foi posto à prova e não podemos ter a certeza dos resultados que daria, mas tudo o que conhecemos do comportamento dos chimpanzés, incluindo os dados de Yerkes. nos obriga a arredar a esperança de que pudessem aprender a linguagem funcional. Nunca ouvimos falar de que houvesse qualquer indício de utilização sua dos signos. A única coisa que sabemos com certeza objetiva e, não que possuem “ideação”, mas que, em determinadas circunstâncias são capazes de executar utensílios muito simples e recorrer a “desvios” e que estas circunstâncias exigem uma situação global perfeitamente visível e clara. Em todos os problemas em que não se verificava a existência de estruturas visuais imediatamente perceptíveis, e que se centravam num outro tipo de estrutura diferente, — um tipo de estrutura mecânica, por exemplo — os chimpanzés abandonavam o comportamento de tipo intuitivo para adotarem muito pura e simplesmente o método de tentativas e erros.
As condições necessárias para o funcionamento intelectual dos macacos serão as mesmas condições exigidas para a descoberta da linguagem, ou o uso funcional dos signos? De maneira nenhuma. A descoberta da linguagem não pode depender em caso nenhum de uma configuração ótica. Exige uma operação intelectual de tipo diferente e não temos quaisquer indicações que nos digam que tal operação se encontra ao alcance dos chimpanzés e a maior parte dos investigadores admitem a hipótese de que eles carecem de tal capacidade: esta carência pode ser a principal diferença entre o intelecto dos chimpanzés e o dos homens.
Koehler introduziu o termo Einsicht (intuição) para designar as operações intelectuais acessíveis aos chimpanzés. A escolha do termo não é acidental. Kafka assinalou que Koehler parece significar com ele a ação de ver no sentido literal do termo e só por extensão a “visão” genérica de relações, ou a compreensão por oposição à ação cega (17)(17, p 130).
Deve dizer-se que Koehler nunca define Einsicht, nem explicita a sua teoria. Na ausência de interpretações teóricas, o termo é algo ambíguo na sua aplicação: por vezes, designa as características específicas da própria operação, a estrutura das ações dos chimpanzés e por vezes o processo psicológico que precede e prepara tais ações; como que um plano interno de operações. Koehler não avança qualquer hipótese acerca do mecanismo de reação intelectual, mas é claro que, funcione o intelecto como funcionar, e seja qual for a localização que lhe atribuirmos, — nas próprias ações dos chimpanzés ou em qualquer processo preparatório interno (cerebral ou neuro-muscular) — a tese mantém-se válida, a tese de que esta reação não é determinada por traços de memória, mas pela situação tal como se apresenta visualmente. O chimpanzé desperdiçará até o melhor dos instrumentos para determinado problema se não o vir ao mesmo tempo ou quase ao mesmo tempo que o objetivo (i). Assim, a tomada em consideração da Einsicht não altera em nada a nossa conclusão de que o chimpanzé, mesmo que possuísse as qualidades do papagaio, seria com certeza sobremaneira incapaz de dominar a linguagem.
No entanto, como dissemos, o chimpanzé possui uma linguagem própria bastante rica. O colaborador de Yerkes, Learned, compilou um dicionário de trinta e dois elementos de discurso, ou “palavras”, que não só se assemelham foneticamente ao discurso humano, como possuem também certo significado, no sentido em que são suscitadas por certas situações ou objetos relacionados com o prazer ou o desprazer, ou que inspiram desejo, malícia ou medo (58)(58, p. 54). Estas “palavras” foram compiladas enquanto os chimpanzés aguardavam que os alimentassem, ou durante as refeições na presença de humanos, ou enquanto os chimpanzés estavam sós. São reações vocais afetivas, mais ou menos diferenciadas e, em certa medida, relacionadas, à maneira dos reflexos condicionados, com estímulos referentes à alimentação ou a outras situações vitais quer dizer, era uma linguagem estritamente emocional.
Relativamente a esta descrição da linguagem dos macacos gostaríamos de realçar três pontos: em primeiro lugar, a coincidência da produção dos sons com gestos afetivos, particularmente perceptíveis quando os chimpanzés se encontram muito excitados, não se limita aos antropóides — pelo contrário, é muito vulgar nos animais dotados de voz. A linguagem humana teve certamente origem no mesmo tipo de reações vocais.
Em segundo lugar, os estados afetivos que suscitam abundantes reações vocais nos chimpanzés são desfavoráveis ao funcionamento do intelecto. Koehler menciona repetidamente que, nos chimpanzés, as reações emocionais, sobretudo as de grande intensidade, obliteram qualquer operação intelectual simultânea.
Em terceiro lugar, dever-se-á sublinhar de novo que nos macacos. a linguagem não tem por função exclusiva aliviar as tensões emocionais. Tal como noutros animais e também no homem, é também um meio de contato psicológico com os seus semelhantes Tanto nos chimpanzés de Yerkes e Learned, como nos macacos observados por Koehler, esta função é inconfundível. Mas não se encontra relacionada com as reações intelectuais, isto é, com o pensamento. Tem origem na emoção e faz claramente parte do síndroma emocional total, parte essa, porém, que desempenha uma função específica, tanto biológica como psicologicamente. Está muito longe de constituir uma série de tentativas conscientes e intencionais para informar e influenciar os outros. Essencialmente é uma reação instintiva ou algo extremamente semelhante.
Dificilmente se porá em dúvida que, do ponto de vista biológico, esta função da linguagem é uma das mais primitivas e que geneticamente tem algo a ver com os sinais visuais e orais dados pelos chefes dos grupos animais. Num estudo recentemente publicado sobre a linguagem das abelhas, K. v. Frisch descreve certas formas de comportamento muito interessantes e teoricamente importantes, que servem para o intercâmbio ou o contato (10) e que, sem sombra de dúvida, têm origem no instinto. Apesar das diferenças fenotípicas, estas manifestações comportamentais são no seu fundamental semelhantes ao intercâmbio lingüístico dos chimpanzés. Esta similitude aponta mais uma vez para independência entre a “comunicação” dos chimpanzés e toda e qualquer atividade intelectual.
Empreendemos esta análise de diversos estudos da linguagem e do intelecto dos macacos para elucidarmos a relação entre o pensamento e a linguagem no desenvolvimento filogenético destas funções. Podemos agora resumir as nossas conclusões, que nos serão úteis para o prosseguimento da análise do problema:
(1) O pensamento e a linguagem têm raízes genéticas diferentes.
(2) As duas funções desenvolvem-se segundo trajetórias diferentes e independentes.
(3) Não há nenhuma relação nítida e constante entre elas.
(4) Os antropóides revelam um intelecto que, sob certos aspectos (a utilização embrionária dos instrumentos) é semelhante ao dos homens e uma linguagem também algo semelhante à humana, mas em aspectos totalmente diferentes (o aspecto fonético da sua fala, a sua função de alívio emocional, os embriões de uma função social).
(5) A estreita correspondência entre o pensamento e a linguagem, existente no homem, encontra-se praticamente ausente nos antropóides.
(6) Na filogenia do pensamento e da linguagem distingue-se com muita clareza uma fase pré-intelectual no desenvolvimento da linguagem e uma fase pré-linguística no desenvolvimento do pensamento.
II
Ontogeneticamente, a relação entre a gênese do pensamento e a da linguagem é muito mais intrincada e obscura; mas também aqui poderemos distinguir duas linhas de evolução distintas, resultantes de duas raízes genéticas diferentes.
A existência de uma fase pré-linguística do desenvolvimento do pensamento na infância só recentemente foi corroborada por provas objetivas. Aplicaram-se a crianças que ainda não tinham aprendido a falar as mesmas experiências que Koehler levou a cabo com chimpanzés. O próprio Koehler havia já realizado ocasionalmente essas experiências com crianças com o objetivo de estabelecer comparações e Buehler empreendeu um estudo sistemático das crianças com a mesma orientação. Os resultados foram semelhantes para as crianças e os chimpanzés.
Sobre as ações das crianças, diz-nos Buehler:
eram exatamente como as dos chimpanzés, de tal forma esta fase da vida das crianças poderia ser corretamente designada por idade chimpanzóide; na criança que estudamos correspondia aos décimo primeiro e décimo segundo meses. É na idade chimpanzóide que ocorrem as primeiras invenções da criança — invenções muito primitivas, é certo, mas extremamente importantes para o seu desenvolvimento (7)(7, p. 46).
O que sobremaneira importa do ponto de vista teórico, tanto nestas experiências, como nas dos chimpanzés, é a descoberta da independência entre as reações intelectuais rudimentares e a linguagem. Notando isto, Buehler comenta:
Costumava-se dizer que a linguagem era o início da hominização (Menschwerden); talvez sim, mas antes da linguagem, há o pensamento implicado na utilização de utensílios, isto é, a compreensão das conexões mecânicas e a idealização de meios mecânicos com fins mecânicos, ou, para ser ainda mais breve, antes de surgir a linguagem, a ação torna-se subjetivamente significativa — por outras palavras, torna-se conscientemente finalista (7)(7, p. 48).
As raízes pré-intelectuais da linguagem no desenvolvimento da criança há muito que são conhecidas. O papaguear das crianças, o seu choro e inclusivamente as suas primeiras palavras são muito claramente estádios do desenvolvimento da linguagem que nada têm a ver com o desenvolvimento do pensamento. Tem-se encarado duma forma generalizada estas manifestações como formas de comportamento predominantemente emocionais. Contudo, nem todas servem apenas a função de alívio de uma tensão. Investigações recentes das primeiras formas de comportamento das crianças e das primeiras reações das crianças à voz humana (efetuadas por Charlotte Buehler e o seu círculo) mostraram que a função social da linguagem já é claramente evidente durante o primeiro ano de vida, quer dizer, no estádio pré-intelectual do desenvolvimento da linguagem de criança. Observaram-se reações bem definidas à voz humana logo no terceiro mês de vida e a primeira reação especificamente social à voz durante o segundo mês (5)(5, p. 124). Estas investigações também estabeleceram que as gargalhadas, os sons inarticulados, os movimentos etc., são meios de contato social logo durante os primeiros meses da vida das crianças.
Assim, as duas funções da linguagem que observamos no desenvolvimento filogenético já existem e são evidentes nas crianças com menos de um ano de idade.
Mas a mais importante descoberta é o fato de em determinado momento por alturas dos dois anos de idade, as curvas de desenvolvimento do pensamento e da linguagem, até então separadas, se tocarem e fundirem, dando início a uma nova forma de comportamento. Foi Stern quem pela primeira vez e da melhor forma nos deu uma descrição deste momentoso acontecimento. Ele mostrou como a vontade de dominar a linguagem se segue à primeira compreensão difusa dos propósitos desta, quando a criança “faz a maior descoberta da sua vida”, a de que “todas as coisas têm um nome” (40)(40, p. 108).
Este momento crucial, quando a linguagem começa a servir o intelecto e os pensamentos começam a oralizar-se, é indicado por dois sintomas objetivos que não deixam lugar a dúvidas: (1)(1), a súbita e ativa curiosidade da criança pelas palavras, as suas perguntas acerca de todas as coisas novas (“o que é isto?”) e, (ii) o conseqüente enriquecimento do vocabulário que progride por saltos e muito rapidamente.
Antes do ponto de viragem, a criança reconhece (como alguns animais) um pequeno número de palavras que, tal como no condicionamento, substituem objetos, pessoas, ações, estados, desejos. Nessa idade, a criança só conhece as palavras que lhe foram transmitidas por outras pessoas. Agora a situação altera-se: a criança sente a necessidade das palavras e, por meio das suas perguntas, tenta ativamente aprender os signos relacionados com os objetos Parece ter descoberto a função simbólica das palavras. A linguagem, que no estádio anterior era afetiva-conotativa entra agora no estádio intelectual. As trajetórias do desenvolvimento da linguagem e do pensamento encontraram-se.
Neste momento, os problemas do pensamento e da linguagem entrelaçam-se. Detenhamo-nos um pouco, examinemos o que acontece exatamente quando a criança faz a sua “grande descoberta” e vejamos se a interpretação de Stern é correta.
Buehler e Koffka comparam ambos esta descoberta com as invenções dos chimpanzés Segundo Koffka, uma vez descoberto pela criança, o nome entra na estrutura do objeto, tal como o pau passa a fazer parte da situação de querer agarrar o fruto (20)(20, p. 243).
Examinaremos a solidez desta analogia mais tarde, quando analisarmos as relações estruturais e funcionais entre o pensamento e a linguagem. De momento, limitar-nos-emos a notar que “a grande descoberta das crianças” só se torna possível depois de se ter atingido um nível de desenvolvimento do pensamento e linguagem relativamente elevado. Por outras palavras, a linguagem não pode ser “descoberta” sem o pensamento.
Em resumo, devemos concluir que:
(1) No seu desenvolvimento ontogenético, o pensamento e a linguagem têm raízes diferentes.
(2) No desenvolvimento lingüístico da criança, podemos estabelecer com toda a certeza uma fase pré-intelectual no desenvolvimento lingüístico da criança — e no seu desenvolvimento intelectual podemos estabelecer uma fase pré-lingüística.
3) A determinada altura estas duas trajetórias encontram-se e, em conseqüência disso, o pensamento torna-se verbal e a linguagem racional.
III
Seja qual for a forma como abordemos o controverso problema da relação entre o pensamento e a linguagem, teremos sempre que tratar com certa exaustão do discurso interior. Este é tão importante para a nossa atividade pensante que muitos psicólogos, entre os quais Watson, chegam a identificá-lo com o pensamento — que consideram ser uma fala inibida e silenciosa. Mas a psicologia ainda não sabe como se dá a transição do discurso aberto para o discurso interior, nem com que idade ocorre, por que processo e por que razão se realiza.
Watson diz que não sabemos em que ponto do desenvolvimento da sua organização lingüística, as crianças passam do discurso aberto para o murmúrio e depois para o discurso interior, porque esse problema só foi estudado de forma acidental. As nossas investigações levam-nos a crer que Watson põe o problema de uma forma incorreta. Não há razões válidas para crer que o discurso interior se desenvolve duma forma mecânica qualquer, por meio de uma gradual diminuição da audibilidade da fala (murmúrio).
É verdade que Watson menciona outra possibilidade: “talvez as três formas se desenvolvam simultaneamente” — afirma ele (54)(54, p. 322). Esta hipótese parece-nos tão infundada do ponto de vista genético como a seqüência: fala em voz alta, murmúrio, discurso interior. Este “talvez” não é escorado por nenhum dado objetivo. Contra ele testemunham as profundas dessemelhanças entre o discurso externo e o discurso interior, reconhecidas por todos os psicólogos, inclusive Watson. Não há qualquer fundamento para presumir que os dois processos, tão diferentes funcionalmente (adaptação social, num caso, e adaptação pessoal, no outro) e estruturalmente (com efeito, a economia extrema, elíptica, do discurso interior transforma a configuração do discurso até quase o tornar irreconhecível), possam ser geneticamente paralelos e convergentes. Também não nos parece plausível (para voltarmos à tese principal de Watson) que se encontrem relacionadas mutuamente pela fala murmurada, a qual, nem pela sua estrutura nem pela sua função, pode ser considerada um estádio intermédio entre o discurso exterior e o discurso interior. Encontra-se a meio caminho apenas fenotipicamente e não genotipicamente.
Os nossos estudos do murmúrio nos bebês comprovam isto completamente. Descobrimos que, estruturalmente, quase não há diferença nenhuma entre o murmurar e a fala em voz alta; funcionalmente, o murmúrio difere profundamente do discurso interior e não manifesta qualquer tendência a assumir as características deste último. Ao demais, não se desenvolve espontaneamente até à idade escolar, embora possa ser induzido muito precocemente: com efeito, sob o efeito da pressão social, uma criança de três anos pode baixar a voz ou murmurar, durante curtos períodos de tempo e com grande esforço. Este é o único ponto que parece escorar a concepção de Watson.
Embora discordemos da tese de Watson, acreditamos que este encontrou a abordagem metodológica correta: para resolver o problema, teremos que procurar o elo intermédio entre o discurso aberto e o discurso interior.
Inclinamo-nos para ver esse elo no discurso egocêntrico da criança descrito por Piaget, o qual, para lá do seu papel de acompanhamento da atividade da criança e as suas funções repressiva e de alívio das tensões, facilmente assume uma função planeadora, isto é, se transforma em pensamento propriamente dito muito natural e facilmente.
Se a nossa hipótese se verificar correta, teremos que concluir que a fala é interiorizada psicologicamente antes de ser interiorizada fisicamente. O discurso egocêntrico é discurso interior pelas suas funções; é discurso em vias de se interiorizar, intimamente associado com o ordenamento do comportamento da criança, já parcialmente incompreensível para os outros, mas que mantém ainda uma forma bem explícita, patente, na sua forma e que não mostra quaisquer tendências para se transformar em murmúrio ou qualquer outra forma de discurso semi-silencioso.
Devíamos também ter então resposta para o problema da razão por que o discurso se interioriza. Interioriza-se porque a sua função se altera. O seu desenvolvimento deveria ter também três estádios: não os que Watson julgava, mas os seguintes: discurso externo, discurso egocêntrico e discurso interior. Passaríamos também a dispor de um método excelente para estudar o discurso interior “ao vivo”, por assim dizer, enquanto as suas peculiaridades funcionais e estruturais estão ainda a formar-se; seria um método objetivo, pois que estas peculiaridades surgem quando o discurso é ainda audível, isto é, acessível à observação e à mediação.
As nossas investigações demonstram que o desenvolvimento da linguagem segue o mesmo curso e obedece às mesmas leis que o desenvolvimento de todas as outras operações mentais que envolvem a utilização de signos, como sejam, a atividade de contagem e a memorização mnemônica. Verificamos que estas operações se desenvolvem geralmente em quatro estádios. O primeiro é o estádio primitivo ou natural, que corresponde ao discurso pré-intelectual e ao pensamento pré-verbal, altura em que estas operações aparecem na sua forma original, tal como se desenvolveram no estádio primitivo do comportamento.
Vem a seguir o estádio que poderíamos chamar “da psicologia ingênua”, por analogia com aquilo que se designa por “física ingênua” — a experiência que a criança tem das propriedades físicas do seu próprio corpo e dos objetos que a cercam e a aplicação desta experiência ao uso dos instrumentos: o primeiro exercício da inteligência prática infantil que desabrocha.
Esta fase é muito claramente definida no desenvolvimento lingüístico da criança. Manifesta-se pela utilização correta das formas e estruturas gramaticais antes de a criança ter compreendido as operações lógicas que representam. A criança pode operar com proposições subordinadas, com palavras como, porque, se, quando e mas, muito antes de dominar realmente as relações causais, condicionais ou temporais. Domina a sintaxe da linguagem antes de dominar a sintaxe do pensamento. Os estudos de Piaget provaram que a gramática se desenvolve antes da lógica e que a criança aprende relativamente tarde as operações mentais que correspondem à forma verbal que já utiliza há muito.
Com a gradual acumulação da experiência psicológica ingênua, a criança entra numa terceira fase, que se distingue por sinais externos por operações externas que são utilizadas como auxiliares para a solução dos problemas internos. É a fase em que a criança conta pelos dedos, recorre a auxiliares mnemônicos, etc. No desenvolvimento lingüístico caracteriza-se pelo discurso egocêntrico.
Chamamos ao quarto estádio, estádio de “crescimento interno”. As operações externas interiorizam-se e sofrem uma profunda transformação durante esse processo. A criança começa a contar de cabeça, a utilizar a “memória lógica”, quer dizer, a operar com as relações intrínsecas e a utilizar signos. No desenvolvimento lingüístico é o último estádio do discurso interior, silencioso. Continua a haver uma interação constante entre as operações externas e internas e cada uma das formas converte-se incansável e incessantemente na outra e vice-versa. Pela sua forma, o discurso interior pode aproximar-se muito do discurso externo ou tornar-se até exatamente igual a este último, quando serve de preparação para o discurso externo — por exemplo, quando se está a pensar uma conferência que se vai proferir. Não existe qualquer divisão nítida entre o comportamento interno e o comportamento externo e cada um deles influencia o outro.
Ao considerarmos a função do discurso interior nos adultos após se ter completado o desenvolvimento, temos de perguntar a nós próprios se, no seu caso, os processos lingüísticos e intelectivos têm uma relação necessária, se podemos passar um traço de igual entre ambos. Também aqui, como no caso dos animais, a resposta é negativa.
Esquematicamente, podemos imaginar o pensamento e a linguagem como dois círculos que se intersectam Nas regiões sobrepostas, o pensamento e a linguagem coincidem, produzindo assim o que se chama pensamento verbal. O pensamento verbal, porém, não engloba de maneira nenhuma todas as formas de pensamento ou todas as formas de linguagem. Há uma vasta área de pensamento que não apresenta nenhuma relação direta com a linguagem. O pensamento manifestado na utilização de utensílios encontra-se incluído nesta área, tal como acontece com o pensamento prático em geral. Além disso, as investigações levadas a cabo pelos psicólogos da escola de Wuerzburg demonstraram que o pensamento pode funcionar sem quaisquer imagens verbais ou movimentos lingüísticos detectáveis por auto-observação. As experiências mais recentes mostram também que não há correspondência direta entre o discurso interior e a língua ou os movimentos da laringe do indivíduo sujeito à observação.
Não há também quaisquer razões psicológicas para fazer decorrer todas as formas de atividade lingüística do pensamento. Nenhum processo de pensamento estará com certeza a ser mobilizado quando um indivíduo recita em silêncio um poema aprendido de cor ou quando repete mentalmente uma, frase que lhe foi fornecida com propósitos experimentais — apesar do que possa pensar Watson. Por último, há a linguagem lírica suscitada pela emoção. Embora tenha todas as marcas auditivas da fala, dificilmente poderá ser classificada como atividade intelectual no sentido próprio do termo.
Somos portanto forçados a concluir que a fusão entre o pensamento e a linguagem, tanto nos adultos como nas crianças é um fenômeno limitado a uma área circunscrita. O pensamento não verbal e a linguagem não intelectual não participam desta fusão e só indiretamente são afetados pelos processos do pensamento verbal.
IV
Podemos agora resumir os resultados da nossa análise. Começamos por tentar seguir a genealogia do pensamento e da linguagem até às suas raízes, utilizando os dados da psicologia comparativa. Estes dados são insuficientes para detectarmos as trajetórias de desenvolvimento do pensamento e da linguagem pré-humanos com um grau mínimo de certeza. A questão fundamental, a de saber-se se os antropóides possuem ou não o mesmo tipo de intelecto do que o homem, é ainda controversa. Koehler responde afirmativamente, outros respondem pela negativa. Mas seja qual for a solução que as futuras investigações derem a este problema, uma coisa é já clara: no mundo animal, o percurso para um intelecto de tipo humano não é igual à trajetória para uma linguagem de tipo humano; o pensamento e a linguagem não brotam da mesma raiz.
Nem aqueles que negariam a existência de um intelecto nos chimpanzés podem negar que os macacos possuem algo que se aproxima do intelecto, que o tipo mais elevado de formação de hábitos neles patente é um intelecto embrionário. A utilização de utensílios prefigura o comportamento humano. Para os marxistas, as descobertas de Koehler não constituem surpresa Marx afirmou há muito (27) que a utilização e a criação de instrumentos de trabalho embora estejam presentes nos animais de forma embrionária, são características específicas do processo de trabalho humano A tese de que as raízes do intelecto humano se estendem ao reino animal e tem origem nele foi há muito admitida pelo marxismo vemo-la ser elaborada por Plekhanov (34)(34, p. 138).
Engels escreveu que os homens e os animais compartilham todas as formas de atividade intelectual; só o seu nível de desenvolvimento difere (9): os animais são capazes de raciocinar a um nível elementar, de analisar (o partir de uma noz é um inicio de análise) e de fazer experiências, quando confrontados com determinados problemas, ou quando se lhes depara uma situação difícil. Alguns, como o papagaio, por exemplo, não só são capazes de aprender a falar, como podem até aplicar palavras com sentido, duma forma restrita: para pedir alguma coisa, usará palavras pelas quais receberá uma recompensa; quando é irritado deixará escapar as mais seletas invectivas do seu vocabulário.
Escusado será dizer que Engels não acredita os animais com a capacidade de pensarem ou de falarem ao nível do homem, mas, neste momento, não precisamos de aprofundar muito o significado exato da sua afirmação. Por agora, apenas desejamos confirmar que não há boas razões para negar a existência, nos animais, de uma inteligência e uma linguagem embrionárias do mesmo tipo da dos homens que, se desenvolvem, também como nos homens, segundo trajetórias separadas. A capacidade de expressão oral dos animais não nos dá nenhuma indicação sobre o seu desenvolvimento mental.
Vamos agora resumir os dados pertinentes fornecidos por estudos recentes sobre as crianças. Vemos que nas crianças também, as raízes e curso seguido pelo desenvolvimento do intelecto diferem dos da linguagem — e que, inicialmente, o pensamento é não-verbal e a linguagem é não-intelectual. Stern afirma que, em determinado ponto, as duas linhas de desenvolvimento se cruzam, tornando-se a linguagem racional e o pensamento verbal. A criança “descobre” que “cada coisa tem o seu nome e começa a perguntar como se chamam todos os objetos.
Alguns psicólogos (8) não estão de acordo com Stern, discordando que esta primeira fase de perguntas tenha ocorrência universal e que seja necessariamente sintoma de qualquer descoberta momentosa. Koffka adota uma posição intermédia entre Stern e os seus opositores. Como Buehler, ele realça a analogia entre a invenção de utensílios pelos chimpanzés e a descoberta pela criança da função nominativa da linguagem mas, segundo ele, esta descoberta não é de tão vasto alcance como Stern supunha. Segundo o ponto de vista de Koffka, a palavra passa a fazer parte da estrutura do objeto no mesmo pé que todas as outras partes suas constituintes. Durante um certo período de vida da criança, a palavra para esta não é um signo, mas apenas uma das propriedades do objeto que tem de ser fornecida para que a estrutura fique completa. Como Buehler apontou, cada novo objeto apresenta uma nova situação problemática para a criança e esta resolve o problema uniformemente nomeando o objeto. Quando lhe falta a palavra para o novo objeto pergunta-a aos adultos (7)(7, p. 54).
Julgamos que esta concepção se encontra mais próxima da verdade Os dados existentes sobre a linguagem das crianças (escorados pelos dados antropológicos) sugerem-nos com grande força que durante um longo período de tempo a palavra é para a criança uma propriedade, mais do que o símbolo do objeto, que a criança apreende a estrutura-palavra-objeto mais cedo do que a estrutura simbólica interna. Escolhemos esta hipótese intermédia entre as várias que se nos oferecem porque, tendo em conta a lei das probabilidades, achamos difícil de acreditar que uma criança entre os dezoito meses e os dois anos de idade seja capaz de descobrir a função simbólica da linguagem. Tal descoberta surge mais tarde e não duma forma repentina, mas através de uma série de transformações “moleculares”. A hipótese que preferimos está em conformidade com a configuração geral da trajetória da dominação dos sons que nas anteriores seções descrevemos. Mesmo nas crianças em idade escolar o uso funcional de um novo signo é precedido por um período de aprendizagem durante o qual a criança vai dominando progressivamente a estrutura externa do signo. De forma correspondente, só ao operar com as palavras, que começou por conceber como uma propriedade dos objetos, a criança descobre e consolida a sua função como signo.
Deste modo, a tese de Stern da “descoberta” sofre limitações e carece de uma reavaliação. Contudo, o seu princípio básico permanece válido: é evidente que, sob o ponto de vista ontogenético, o pensamento e o discurso se desenvolvem ao longo de linhas separadas e que num certo ponto essas linhas se encontram. Este importante fato está hoje definitivamente provado, sem detrimento de clarificação, através de estudos posteriores, dos detalhes em que os psicólogos ainda estão em desacordo: se esse encontro se dá num só ponto ou em vários pontos, como uma súbita descoberta ou após longa preparação através do uso prático e da lenta troca funcional, e se ocorre aos dois anos de idade ou na idade escolar.
Podemos agora sumariar a nossa investigação do discurso interior. Também aqui consideramos várias hipóteses e chegamos à conclusão que o discurso interior se desenvolve através de uma lenta acumulação de mudanças funcionais e estruturais, que se desliga do discurso externo da criança simultaneamente com a diferenciação das funções social e egocêntrica do discurso, e finalmente que as estruturas do discurso dominadas pela criança se transformam nas estruturas básicas do seu pensamento.
Isto conduz-nos a um outro incontestável fato de grande importância: o desenvolvimento do pensamento é determinado pela linguagem, ou seja, pelos instrumentos lingüísticos do pensamento e pela experiência sociocultural da criança. Fundamentalmente, o desenvolvimento da lógica na criança, como o demonstraram os estudos de Piaget, é função direta do seu discurso socializado. O crescimento intelectual da criança depende do seu domínio dos meios sociais de pensamento, ou seja, da linguagem.
Podemos agora formular as principais conclusões a retirar das nossas análises. Se compararmos o desenvolvimento primitivo do discurso e do intelecto — que, como vimos, se desenvolvem ao longo de linhas separadas quer nos animais quer nas crianças de tenra idade — com o desenvolvimento do discurso interior e do pensamento verbal, temos de concluir que o último estádio não é uma simples continuação do primeiro. A natureza do próprio desenvolvimento transforma-se, do biológico no sócio-histórico. O pensamento verbal não é uma forma natural de comportamento, inata, mas é determinado pelo processo histórico-cultural e tem propriedades e leis específicas que não podem ser encontradas nas formas naturais do pensamento e do discurso. Desde que, admitamos o caráter histórico do pensamento verbal, teremos que o considerar sujeito a todas as premissas do materialismo histórico, que são válidas para qualquer fenômeno histórico na sociedade humana. Só pode concluir-se que a este nível o desenvolvimento do comportamento será essencialmente governado pelas leis gerais do desenvolvimento histórico da sociedade humana.
O problema do pensamento e linguagem estende-se, portanto, para além dos limites da ciência natural e torna-se no problema focal da psicologia humana histórica, ou seja, da psicologia social. Consequentemente, ele deve ser colocado de um modo diferente. Este segundo problema exposto pelo estudo do pensamento do discurso será objeto de investigação separada.

5. Gênese e estudo experimental da formação dos conceitos

I
Até muito recentemente, o estudioso da gênese dos conceitos encontrava-se inferiorizado pela carência de um método experimental que lhe permitisse observar a dinâmica interna do processo.
Os métodos tradicionais de estudo dos conceitos subdividem-se em dois grupos. O chamado método da definição, com as suas variantes, é típico do primeiro grupo de métodos. É usado para investigar os conceitos já formados na criança através da definição verbal dos seus conteúdos. No entanto, este método tem dois importantes inconvenientes que o tornam inadequado para investigar o processo em profundidade. Em primeiro lugar, é um método que se exerce sobre o produto acabado da gênese dos conceitos, descurando a dinâmica e o desenvolvimento do próprio processo. Em vez de registar o pensamento da criança, limita-se freqüentemente a suscitar uma reprodução verbal do conhecimento verbal, de definições acabadas fornecidas a partir do exterior. Pode ser um teste do conhecimento e da experiência da criança ou do seu desenvolvimento lingüístico, mais do que estudo de um processo intelectual no verdadeiro sentido da palavra. Em segundo lugar, este método, ao centrar-se na palavra, não consegue entrar em linha de conta com a percepção e a elaboração do material sensorial que dão origem aos conceitos. O material sensorial e a palavra são materiais indispensáveis na formação do conceito O estudo separado da palavra coloca o processo num plano puramente verbal que não é característico do pensamento da criança. A relação entre o conceito e a realidade permanece por explicar; o significado de uma determinada palavra é abordada através de outra palavra e esta operação, por muito que nos permita descobrir, nunca nos dará um quadro dos conceitos da criança mas sim um registo das relações existentes no seu cérebro entre famílias de palavras previamente formadas.
O segundo grupo engloba os métodos utilizados no estudo da abstração. Estes métodos incidem sobre os processos psíquicos que conduzem à formação dos conceitos. Exige-se da criança que descubra um certo número de traços comuns numa série de impressões discretas, abstraindo esses traços comuns de todos os outros traços com que se encontram fundidos na percepção. Os métodos deste tipo descuram o papel desempenhado pelo símbolo (a palavra) na gênese do conceito: um quadro parcial substitui a estrutura complexa do processo total por um processo parcial.
Assim, ambos os métodos parciais tradicionais separam a palavra do material da percepção e operam com uma, quer com o outro, tomados em separado. A criação de um novo método que permite a combinação de ambas as partes foi um grande passo em frente. O novo método introduz no quadro experimental palavras sem sentido que a princípio não significam nada para a criança sujeita à experiência. Introduz também conceitos artificiais relacionando cada palavra sem sentido com uma combinação particular dos atributos dos objetos para a qual não exista nenhum conceito nem palavra. Por exemplo, nas experiências de Ach (1), a palavra gatsun vai a pouco e pouco significando “grande e pesado”; a palavra fal, pequeno e leve; Este método pode ser utilizado tanto com crianças como com adultos, visto que para resolver o problema o indivíduo observado não precisa ter já qualquer experiência ou conhecimento prévio. O método também entra em linha de conta com o fato de um conceito não ser uma formação isolada, ossificada, imutável mas parte ativa de um processo intelectual, constantemente mobilizada ao serviço da comunicação, do conhecimento e da resolução de problemas. O novo método centra a investigação sobre as condições funcionais da gênese dos conceitos.
Rimat levou a cabo um estudo cuidadosamente preparado com adolescentes, utilizando uma variante deste método. A conclusão principal a que chegou foi a de que a verdadeira gênese dos conceitos excede a capacidade dos pré-adolescentes e só começa com o dealbar da puberdade. Escreve este autor:
Estabelecemos terminantemente que só ao findar o décimo segundo ano da vida das crianças se manifesta um acentuado e súbito aumento da capacidade de formar sem ajuda, conceitos objetivos generalizados... O pensamento através dos conceitos, emancipado da percepção, traz à criança exigências que excedem as suas possibilidades mentais para as idades inferiores a doze anos (35)(35, p. 112)
As investigações de Ach e Rimat provam a falsidade da concepção segundo a qual a gênese dos conceitos se baseia nas conexões associativas. Ach demonstrou que a existência de associações entre os símbolos verbais e os objetos, por mais numerosas que sejam, não é, em princípio, por si própria suficiente para a formação dos conceitos. As suas descobertas experimentais não confirmam a velha idéia que pretende que um conceito se desenvolve pelo máximo fortalecimento das conexões associativas envolvendo os atributos comuns a todos — um grupo de objetos e o enfraquecimento das associações — estabelecidas entre os atributos em que esses mesmos objetos diferem.
As experiências de Ach demonstraram que a gênese dos conceitos é um processo criativo e não mecânico e passivo; que um conceito surge e toma forma no decurso de uma complexa operação orientada para a resolução do mesmo problema, e que a simples presença das condições externas que favorecem uma relacionação mecânica entre a palavra e o objeto não basta para produzir um conceito. Segundo este ponto de vista, o fator decisivo para a gênese dos conceitos é a chamada tendência determinante
Antes de Ach, a psicologia postulava a existência de duas tendências básicas que regeriam o fluxo das nossas idéias: a reprodução através das associações e a persistência. A primeira tendência, traz-nos à memória as imagens que em experiências passadas se encontravam ligadas à imagem que, em determinada altura, nos ocupa o espírito. A segunda é a tendência de cada imagem para regressar e voltar a penetrar no fluxo de imagens. Nas suas primeiras investigações, Ach demonstrou que estas duas tendências não conseguiam explicar os atos de pensamento que possuem uma finalidade conscientemente orientada. O estudo dos conceitos por parte de Ach mostrou que nenhum conceito novo se formava sem o efeito regulador da tendência determinante gerada pela tarefa experimental.
Segundo o esquema de Ach, a gênese dos conceitos não segue o modelo de uma cadeia associativa em que um elo solicita o segundo: é um processo orientado para um objetivo, uma série de operações que servem como passos intermédios em direção a um objetivo final. A memorização das palavras e a sua relacionação com determinados objetos, por si só, não conduz à formação do conceito: para que o processo comece terá de surgir um problema que não possa ser resolvido doutra forma, a não ser pela formação de novos conceitos.
Esta caracterização do processo de formação de novos conceitos é no entanto insuficiente. A criança pode compreender e empreender a tarefa experimental muito antes de atingir os doze anos de idade, e no entanto ser incapaz de formar novos conceitos até ter atingido essa idade. O estudo do próprio Ach demonstrou que as crianças não diferem dos adolescentes e dos adultos pela forma como compreendem os objetivos, mas pela forma como o seu espírito opera para atingir esses objetivos. O pormenorizado estudo experimental de D. Usnadze sobre a gênese dos conceitos em idade pré-escolar (44)(44, 45,) também demonstrou que, nessa idade, as crianças abordam os problemas exatamente da mesma maneira que um adulto quando opera com conceitos, mas que o caminho que seguem para os resolver é inteiramente diferente. Só podemos concluir que os fatores responsáveis pela diferença essencial entre o pensamento conceptual do adulto e as formas de pensamento características da criança de tenra idade não são nem a tendência determinante, nem o objetivo prosseguido, mas outros fatores que os investigadores não inquiriram.
Usnadze assinala que, embora os conceitos completamente formados só surjam relativamente tarde, as crianças começam a utilizar palavras socorrendo-se delas para estabelecerem um terreno de compreensão mútua com os adultos e entre si Com base nisto, conclui que as palavras se apoderam da função dos conceitos e podem servir como meios de comunicação, muito antes de atingirem o nível dos conceitos característico do pensamento completamente desenvolvido.
Vêmo-nos confrontados, portanto, com o seguinte estado de coisas: uma criança é capaz de apreender um problema e visualizar o objetivo que tal problema levanta, num estádio muito precoce do seu desenvolvimento. Como as tarefas levantadas pela compreensão e a comunicação são essencialmente semelhantes para a criança e o adulto, a criança desenvolve equivalentes funcionais dos conceitos numa idade extremamente precoce. mas as formas de pensamento que utiliza ao defrontar-se com estas tarefas diferem profundamente das que o adulto emprega pela sua composição, pela sua estrutura e pelo seu modo de operação. O principal problema suscitado pelo processo de formação do conceito — ou por qualquer atividade finalista — é o problema dos meios pelos quais tal operação é levada a cabo, por exemplo, não se consegue explicar cabalmente o trabalho, se se disser que este é suscitado pelas necessidades humanas. Temos que entrar também em linha de conta com os instrumentos utilizados e a mobilização dos meios adequados e necessários para o realizar. Para explicar as formas mais elevadas do comportamento humano, temos que pôr a nu os meios através dos quais o homem aprende a organizar e dirigir o seu comportamento. Todas as funções psíquicas de grau mais elevado são processos mediados e os signos são os meios fundamentais utilizados para os dominar e orientar. O signo mediador é incorporado na sua estrutura como parte indispensável a bem dizer fulcral do processo total. Na gênese do conceito, esse signo é a palavra, que a princípio desempenha o papel de meio de formação de um conceito, transformando-se mais tarde em símbolo. Nas experiências de Ach não se dá a esta função da palavra a atenção suficiente. O seu estudo, embora tenha o mérito de desacreditar, de uma vez por todas, o ponto de vista mecanicista sobre a formação dos conceitos, não pôs a nu a verdadeira natureza do processo — nem geneticamente, nem funcionalmente, nem estruturalmente. Enveredou por uma direção errada com a sua interpretação puramente teleológica, que eqüivale a afirmar que é o próprio objetivo que cria a atividade apropriada através da tendência determinante — isto é, de que o problema traz consigo a sua resolução.
II
Para estudar o processo de gênese do conceito nas suas diferentes fases de desenvolvimento, utilizamos o método elaborado por um dos nossos colaboradores, L. S. Sakharov (36). Poderíamos descrevê-lo como o método do duplo estímulo: apresentam-se ao indivíduo observado duas séries de estímulos, uma das quais como objeto da sua atividade e a outra como signos que servem para organizar esta última. (2)
Sob muitos e importantes aspectos, este modo de proceder inverte as experiências de Ach sobre a formação dos conceitos. Ach começa por dar ao indivíduo observado um período de aprendizagem ou de prática; pode manipular os objetos e ler as palavras sem sentido neles escritas antes de se lhe dizer qual a tarefa que se lhe pede. Nas nossas experiências, põe-se o problema ao indivíduo sujeito a observação logo de início; o problema não se altera durante toda a experiência mas as chaves para a sua resolução são introduzidas pouco a pouco, de cada vez que a criança volta um bloco. Decidimo-nos por esta seqüência porque julgamos que, para que o processo se desencadeie, é necessário pôr a criança perante o problema. A introdução gradual dos meios necessários à resolução do problema permite-nos estudar o processo total da formação dos conceitos em todas as suas fases dinâmicas. A formação do conceito é seguida pela sua transferência para outros objetos; o indivíduo observado e induzido a utilizar os novos termos para falar dos objetos diferentes dos blocos experimentais e a definir o seu significado duma forma generalizada.
III
Na série de investigações sobre o processo de gênese dos conceitos iniciados no nosso laboratório por Sakharov e completados por nós e pelos nossos colaboradores Kotelova e Pachlovskaia (48)(49)(48, 49, p. 70) estudaram-se mais de cem indivíduos — crianças, adolescentes e adultos, incluindo alguns com perturbações das atividades lingüísticas e intelectuais.
Os principais resultados do nosso estudo podem ser resumidos como se segue: o desenvolvimento dos processos que acabam por gerar a formação dos conceitos começam durante as fases mais precoces da infância, mas as funções intelectuais que, em determinadas combinações formam a base psicológica da formação dos conceitos amadurecem, tomam forma e desenvolvem-se apenas durante a puberdade. Antes dessa idade encontramos certas formações intelectuais que desempenham funções semelhantes aos dos conceitos genuínos que mais tarde aparecem. Relativamente à sua composição, estrutura e funcionamento estes equivalentes funcionais dos conceitos têm uma relação com os verdadeiros conceitos que é semelhante à relação entre o embrião e o organismo completamente desenvolvido. Identificar ambos seria ignorar o lento processo de desenvolvimento entre a fase inicial e a fase final.
A formação dos conceitos é resultado de uma complexa atividade em que todas as funções intelectuais fundamentais participam. No entanto, este processo não pode ser reduzido à associação, à tendência, à imagética, à inferência ou às tendências determinantes. Todas estas funções são indispensáveis, mas não são suficientes se não se empregar o signo ou a palavra, como meios pelos quais dirigimos as nossas operações mentais, controlamos o seu curso e o canalizamos para a solução do problema com que nos defrontamos.
A presença de um problema que exige a formação de conceitos não pode por si só ser considerada como causa do processo, embora as tarefas que a sociedade coloca aos jovens quando estes entram no mundo cultural, profissional e cívico dos adultos sejam um importante fator para a emergência do pensamento conceptual. Se o meio ambiente não coloca os adolescentes perante tais tarefas, se não lhes fizer novas exigências e não estimular o seu intelecto, obrigando-os a defrontarem-se com uma seqüência de novos objetivos, o seu pensamento não conseguirá atingir os estádios de desenvolvimento mais elevados, ou atingi-lo-á apenas com grande atraso.
A tarefa cultura, por si só, porém, não explicas o mecanismo de desenvolvimento que tem por resultado a formação do conceito. O investigador deve intentar compreender as relações intrínsecas entre as tarefas externas e a dinâmica do desenvolvimento e considerar a gênese dos conceitos como função do crescimento cultural e social global da criança, que não afeta apenas o conteúdo mas também o seu modo de pensar A nova utilização significativa, o seu emprego como meio para a formação dos conceitos é a causa psicológica imediata da transformação radical no processo intelectual que ocorre no limiar da adolescência.
Nesta idade não aparece nenhuma função elementar nova que seja essencialmente diferente das que já existem: todas as funções existentes passam a ser incorporadas numa nova estrutura, formam uma nova síntese, passam a fazer parte de um novo todo complexo; as leis que regem este todo determinam também o destino de cada sua parcela individual. O recurso às palavras para aprender a orientar os processos mentais pessoais e parte integrante do processo de formação dos conceitos. A capacidade para regular as nossas ações pessoais utilizando meios auxiliares só atinge o seu completo desenvolvimento na adolescência.
IV
Da nossa investigação resultou que a acessão à formação dos conceitos se opera em três fases distintas, cada uma das quais se subdivide em vários estádios. Nesta seção e nas seis que se seguem, descreveremos estas fases e as suas subdivisões à medida que aparecem quando as estudamos pelo método do “duplo estímulo”.
Os bebês dão o primeiro passo para a formação dos conceitos quando congregam um certo número de objetos num acervo desorganizado ou “monte” para resolverem um problema que nós adultos resolveríamos geralmente formando um novo conceito. O “monte”, constituído por um conjunto de objetos dessemelhantes reunidos sem qualquer base. revela um alargamento difuso não orientado, do significado do signo (palavra artificial) a objetos aparentemente não relacionados uns com os outros, ligados entre si ocasionalmente na percepção da criança.
Neste estádio, o significado das palavras para a criança não denota mais do que uma conglomeração sincrética e vaga dos objetos individuais que duma forma ou doutra coalesceram numa imagem no seu espírito. Dada a sua origem sincrética, essa imagem é altamente instável.
Na percepção, no pensamento e na ação, a criança tende a fundir os elementos mais diversos numa só imagem não articuladas sob a influência mais intensa de uma impressão ocasional. Claparède deu o nome de sincretismo a esta conhecida característica do pensamento infantil; Blonski chamou-lhe “coerência incoerente” do pensamento infantil. Descrevemos noutra ocasião o fenômeno como resultado de uma tendência para compensar a pobreza das relações objetivas bem apreendidas por meio de uma super-abundância de relacionações subjetivas e para confundir estas reações subjetivas com as ligações objetivas entre as coisas. Estas relações sincréticas e os “montes” de objetos: congregados em torno do significado de uma palavra, refletem também os laços objetivos, na medida em que estes últimos coincidirem com as relações existentes entre as percepções ou impressões da criança. Por conseguinte, muitas palavras têm parcialmente o mesmo significado para o adulto e a criança, especialmente as palavras que se referem a objetos concretos que fazem parte do meio ambiente habitual da criança. Os significados que os adultos e as crianças atribuem a determinada palavra como que “coincidem” muitas vezes no mesmo objeto concreto e isto basta para assegurar a compreensão mútua.
A primeira fase da formação dos conceitos que acabamos de descrever subsume três estádios distintos. Foi-nos possível observá-los pormenorizadamente no quadro do estudo experimental.
O primeiro estádio na formação dos conjuntos sincréticos que representam para a criança o significado de determinada palavra artificial é a manifestação do estádio das aproximações sucessivas (de “tentativas e erros”) no desenvolvimento do pensamento. O grupo é criado ao acaso e a adjunção de cada objeto não é mais do que uma simples tentativa ou hipótese, o objeto é imediatamente substituído por outro, mal se verifica que a hipótese é errada, isto é, quando o experimentador volta o objeto e mostra que este tem um nome diferente,
Durante o estádio que se segue, a composição do grupo é grandemente determinada pela posição espacial dos objetos experimentados, isto é, por uma organização puramente sincrética do campo visual da criança. A imagem ou grupo sincréticos formam-se como resultado da contiguidade no espaço ou no tempo dos elementos isolados ou pelo fato de a percepção imediata da criança os levar a uma relação mais complexa.
Durante o terceiro estádio da primeira fase da formação dos conceitos a imagem sincrética repousa numa base mais complexa: é composta de elementos retirados de diferentes grupos ou “montes” já anteriormente formados pela criança da forma que acima se descreveu. Estes elementos sujeitos a uma nova combinação não têm qualquer relação intrínseca entre si, de forma que a nova formação possui a mesma “coerência incoerente” que os primeiros conjuntos. A única diferença reside no fato de que ao tentar dar significado a um novo nome a criança já consegue seguir uma operação a dois tempos, mas esta operação mais elaborada permanece sincrética e não produz uma ordem mais elevada do que a simples reunião de “montes”.
V
A segunda fase importante na via da gênese do conceito engloba muitas variações de um tipo de pensamento que designaremos por “pensamento por complexos”. Num complexo, os objetos individuais isolados encontram-se reunidos no cérebro da criança não só pelas suas impressões subjetivas, mas também por relações realmente existentes entre esses objetos. Isto é um novo passo em frente, uma progressão para um nível muito superior.
Quando atinge esse nível a criança já superou parcialmente o seu egocentrismo. Já não confunde as relações entre as suas impressões com relações entre coisas — passo decisivo para abandonar o sincretismo e se aproximar do pensamento objetivo. O pensamento por meio de complexos já é um pensamento coerente e objetivo, embora não reflita as relações objetivas da mesma forma que o pensamento conceptual.
No pensamento dos adultos persistem certos resíduos do pensamento por meio de complexos. Os nomes de família são talvez o melhor exemplo disto. Todo o nome de família, (“Petrov”, por exemplo) subsume o indivíduo duma maneira que se assemelha estreitamente ao modo de funcionamento dos complexos infantis. A criança que atingiu esse estádio de desenvolvimento como que pensa em termos de nomes de família; quando começa a organizar o universo dos objetos isolados, fá-lo agrupando-os em famílias separadas, mutuamente relacionadas.
Num complexo, as ligações entre os seus componentes são mais concretas e factuais do que abstratas e lógicas; do mesmo modo, também não classificamos uma pessoa na família Petrov por haver qualquer relação lógica entre essa pessoa e os outros membros portadores do nome. São os fatos que ditam a resposta.
As ligações factuais que subjazem aos complexos são descobertas através da experiência. Por conseguinte, um complexo é, acima de tudo, e principalmente, um agrupamento concreto de objetos ligados por nexos factuais. Como um complexo não é formado no plano do pensamento lógico abstrato, os nexos que o geram, bem assim como os nexos que ajuda a criar, carecem de unidade lógica; podem ser de muitos e diferentes tipos. Todo e qualquer nexo existente pode levar à criação de um complexo. É essa a principal diferença entre um complexo e um conceito. Enquanto os conceitos agrupam os objetos em função de um atributo, as ligações que unem os elementos de um complexo com o todo e entre si podem ser tão diversas quanto os contatos e as relações existentes na realidade entre os elementos.
Na nossa investigação observamos cinco tipos fundamentais de complexos que se sucediam uns aos outros durante este estádio de desenvolvimento.
Chamamos ao primeiro tipo de complexo o tipo associativo. Pode basear-se em todo e qualquer nexo que a criança note entre os objetos da amostra e os objetos de alguns outros blocos. Na nossa experiência o objeto-amostra, o que fora dado em primeiro lugar à criança com o nome à vista, forma o núcleo do grupo a ser construído. Na construção de um complexo associativo, a criança pode acrescentar um bloco ao objeto de partida por ter a mesma cor que este, juntando a seguir outro porque é semelhante ao núcleo pela sua forma e dimensão ou por qualquer outro atributo que lhe chame a atenção. Qualquer conexão entre o objeto do núcleo e outro qualquer objeto basta para que a criança inclua esse objeto no grupo e o designe pelo “nome de família”. A conexão entre o núcleo e o outro objeto não tem que ser um traço comum, como por exemplo, a mesma cor ou forma; uma semelhança ou um contraste, ou uma proximidade no espaço podem também servir para estabelecer a ligação.
Para a criança dessa idade a palavra deixa de ser o nome próprio do objeto singular; torna-se o nome de família de um grupo de objetos relacionados entre si por muitas e variadas formas, tantas e tão variadas como as relações entre as famílias humanas.
VI
O pensamento por complexos do segundo tipo consiste em combinar os objetos ou as impressões concretas que estes deixam no espírito da criança em grupos que se assemelham muito estreitamente a coleções. Os objetos são agrupados com base em qualquer traço por que defiram, complementando-se, assim, mutuamente.
Nas nossas experiências, a criança tomava objetos que diferiam da amostra pela cor, pela forma ou o tamanho, ou por outra qualquer característica. Não pegava nelas ao acaso; escolhia-os porque contrastavam com o atributo da amostra que tomara como base do agrupamento e complementava esse atributo. O resultado disto era uma coleção das cores e formas presentes no material da experiência, por exemplo, um grupo de blocos de diferentes cores.
O que guia a criança na construção da coleção era a associação por contraste e não a associação por semelhança. No entanto esta forma de pensar combinava-se por vezes com a forma associativa propriamente dita, atrás descrita, produzindo uma coleção baseada em princípios mistos. A criança não consegue manter-se fiel durante toda a experiência ao princípio que originalmente aceitara para base da coleção. Insensivelmente passa a considerar uma característica diferente, de forma que o grupo que daqui resulta se torna uma coleção mista, de cores e turmas, por exemplo.
Este longo e persistente estádio de desenvolvimento do pensamento da criança radica na sua experiência, na qual verifica que coleções de coisas complementares formam por vezes um conjunto ou um todo. A experiência ensina à criança certas formas de agrupamento funcional: a chávena, o pires e a colher; um talher constituído por um garfo, uma faca, uma colher e um prato; o conjunto de roupas que veste. Tudo isto são modelos de conjuntos complexos naturais. Até os adultos, quando falam dos pratos ou das roupas, habitualmente estão a pensar em conjuntos de objetos concretos mais do que em conceitos generalizados.
Recapitulando, a imagem sincrética que leva à formação de “montes” baseia-se em nexos vagos e subjetivos; o complexo associativo fundamenta-se nas semelhanças existentes ou outras ligações necessárias entre as coisas; o conjunto complexo, baseia-se nas relações entre os objetos observadas através da experiência prática. Poderíamos dizer que o conjunto baseado nos complexos é um agrupamento de objetos baseado na sua participação na mesma operação prática — da sua cooperação funcional.
VII
Após o estádio de pensamento que opera por complexos, há que colocar necessariamente o complexo em cadeia — uma adjunção dinâmica e seqüencial de ligações isoladas numa única, sendo o significado transmitido de um elo para o outro. Por exemplo, se a amostra experimental é um triângulo amarelo, a criança poderia por exemplo, pegar em alguns blocos triangulares até a sua atenção ser atraída por, digamos, pela cor azul do bloco que a determinada altura acabara de acrescentar ao conjunto; passaria a selecionar blocos azuis sem atender à forma — angulosos, circulares, semicirculares. Isto, por seu turno, basta para voltar a alterar o critério; esquecendo-se da cor, a criança passa a escolher blocos redondos. O atributo decisivo varia constantemente durante todo o processo. O tipo de nexos ou a forma como cada elo da cadeia se articula com o que o precede e o que se lhe segue não apresentam coerência nenhuma. A amostra inicial não tem importância fulcral. Cada elo, uma vez incluído num complexo em cadeia, é tão importante como o primeiro e pode tornar-se um ímã para uma série de outros objetos.
A formação de cadeias demonstra flagrantemente a natureza factual concreta e perceptiva do pensamento por complexos. Um objeto que entrou num complexo devido a um dos seus atributos, não entra nele como portador desse atributo, mas como elemento isolado com todos os seus atributos. A criança não abstrai o traço isolado do todo restante, nem lhe confere um papel especial como acontece com os conceitos. Nos complexos a organização hierárquica está ausente: todos os atributos são funcionalmente equivalentes. A amostra pode ser completamente esquecida quando se forma uma ligação entre dois objetos diferentes. Estes objetos podem não ter nada em comum com alguns dos outros elementos e, no entanto, fazerem parte da mesma cadeia por força de compartilharem um atributo com outro dos elementos.
Por conseguinte, o complexo em cadeia pode ser considerado como a forma mais pura do pensamento por meio dos complexos. Ao contrário do complexo associativo, cujos elementos, no fim de contas, se encontram interligados por meio de um elemento — o núcleo do complexo — o complexo em cadeia não tem núcleo, há relações entre elementos isolados, mas nada mais.
Um complexo não se eleva acima dos seus elementos como acontece com o conceito; funde-se com os objetos concretos que o constituem. Esta fusão do geral com o particular, entre o complexo e os seus elementos, esta amálgama psíquica, como Werner lhe chamava, é a característica distintiva de todo o pensamento por complexos — e do complexo em cadeia, muito em particular.
VIII
Como o complexo em cadeia é factualmente inseparável do grupo de objetos concretos que o formam, adquire amiúde uma qualidade vaga e flutuante O tipo e a natureza das ligações podem mudar de elo para elo imperceptivelmente quase. Muitas vezes, uma semelhança muito remota basta para criar uma ligação entre dois elos da cadeia. Por vezes os atributos são considerados semelhantes, não devido a uma semelhança genuína mas devido a uma vaga impressão de que têm alguma coisa em comum. Isto leva ao quarto tipo de complexo observado nas nossas experiências. Poderíamos designá-lo por complexo difuso.
O complexo difuso e marcado pela fluidez do próprio atributo que une os seus elementos individuais. Formam-se grupos de objetos ou imagens perceptualmente concretos por meio de ligações difusas ou indeterminadas. Por exemplo, uma das crianças das nossas experiências escolheria indiferentemente para associar a um triângulo, trapézios ou triângulos, pois aqueles lhe faziam lembrar triângulos com os vértices cortados. Os trapézios conduzi-la-iam aos quadrados, os quadrados aos hexágonos, os hexágonos aos semicírculos e estes por fim aos círculos. A cor, como base para a seleção, é igualmente flutuante e variável. Os objetos amarelos podem ser seguidos por objetos verdes; a seguir o verde pode mudar para azul e o azul para o preto.
Os complexos resultantes deste tipo de pensamento são tão indefinidos que podem não ter limites. Tal qual uma tribo bíblica que aspira a multiplicar-se até ser mais numerosa do que as estrelas do céu ou as areias do mar, também um complexo difuso no espírito de uma criança é uma espécie de família que tem poderes de expansão ilimitados por adjunção sucessiva de mais e mais membros ao grupo original.
As generalizações da criança nas áreas não sensoriais e não práticas do seu pensamento que não podem ser facilmente verificáveis através da percepção ou da ação são os equivalentes na vida real dos complexos difusos observados nas experiências. É bem sabido que a criança é capaz de transições surpreendentes, de espantosas generalizações e associações, quando o seu pensamento se aventura para lá das fronteiras do pequeno mundo palpável da sua experiência. Fora desse mundo, a criança constrói freqüentemente surpreendentes complexos ilimitados pela universalidade das ligações que abarcam.
Estes complexos ilimitados, porém, são construídos segundo os mesmos princípios dos complexos concretos circunscritos. Em ambos os tipos de complexos, a criança mantém-se dentro do limite das ligações concretas entre as coisas, mas, na medida em que o primeiro tipo de complexos compreende objetos que se encontram fora da esfera do seu conhecimento prático, estas ligações baseiam-se naturalmente em atributos difusos irreais e instáveis.
IX
Para completar o quadro do pensamento por meio de complexos. temos que descrever um outro tipo de complexos — que como que constitui a ponte entre os complexos e o estádio final e superior do desenvolvimento da gênese dos conceitos.
Chamamos pseudo-conceitos a este tipo de complexos, porque a generalização formada no cérebro, embora fenotipicamente se assemelhe aos conceitos dos adultos é psicologicamente muito diferente do conceito propriamente dito; na sua essência é ainda um complexo.
Na montagem experimental, uma criança produz um pseudo-conceito sempre que cerca uma amostra com objetos que poderiam também ser congregados com base num conceito abstrato Por exemplo, quando a amostra é constituída por um triângulo amarelo e a criança pega em todos os triângulos do material experimental, poderia estar a ser orientada pela idéia geral ou conceito de triângulo. No entanto, a análise experimental mostra que na realidade a criança é orientada pela semelhança concreta visível e se limita a formar um complexo associativo confinado a um certo numero de ligações, um certo tipo de conexões sensoras. Embora os resultados sejam idênticos, o processo pelo qual são atingidos não é de maneira nenhuma o mesmo que no pensamento conceptual (iii)
Temos de deter-nos a observar este tipo de complexos com algum pormenor. Ele desempenha um papel predominante no pensamento da criança na vida real e é importante como elo de transição entre o pensamento por complexos e a verdadeira formação de conceitos.
X
Os pseudo-conceitos predominam sobre todos os outros complexos no pensamento da criança em idade pré-escolar, pela simples razão de que, na vida real, os complexos que correspondem ao significado das palavras não são espontaneamente desenvolvidos pela criança: a trajetória seguida por um complexo no seu desenvolvimento encontra-se pré-determinada pelo significado que determinada palavra já possui na linguagem dos adultos.
Nas nossas experiências, a criança, liberta da influência diretriz das palavras familiares, era capaz de desenvolver significados de palavras e de formar complexos de acordo com as suas preferências pessoais. Só através da experimentação poderemos avaliar o tipo e a latitude desta atividade espontânea de domínio da linguagem dos adultos. A atividade pessoal da criança não se encontra de maneira nenhuma esterilizada, embora se encontre geralmente oculta da vista e canalizada para vias complexas, por influência da linguagem dos adultos.
A linguagem do meio ambiente, como os seus significados estáveis, permanentes, aponta o caminho que a generalização infantil seguirá. No entanto, constrangido como se encontra, o pensamento da criança prossegue ao longo da via pré-determinada, segundo a forma peculiar ao seu nível de desenvolvimento intelectual. O adulto não pode transmitir à criança o seu modo de pensar. Apenas lhe fornece o significado já acabado de uma palavra, em torno do qual a criança forma um complexo — com todas as peculiaridades estruturais funcionais e genéticas do pensamento por meio de complexos, mesmo quando o produto do seu pensamento é na realidade idêntico, pelo seu conteúdo, a uma generalização que poderia ter sido obtida por meio do pensamento conceptual. A semelhança externa entre o pseudo-conceito e o conceito real, que torna muito difícil pôr a nu este tipo de complexos é um dos mais importantes obstáculos para a análise genética do pensamento.
A equivalência funcional entre o complexo e o conceito, a coincidência que existe na prática entre o significado de muitas palavras para o adulto e a criança de três anos, a possibilidade de compreensão mútua e a aparente similitude dos seus processos intelectivos levou a presumir-se erradamente que todas as formas de pensamento e de atividade intelectual dos adultos já se encontram presentes em embrião no pensamento das crianças e que na puberdade não se dá nenhuma transformação radical. É fácil compreender a origem desta concepção errada. A criança aprende muito precocemente uma grande quantidade de palavras que significam a mesma coisa para ela e para o adulto. A compreensão mútua entre o adulto e a criança cria a ilusão de que o ponto final do desenvolvimento do significado das palavras coincide com o seu ponto de chegada, de que o pensamento é fornecido já acabado à criança desde início e de que não se dá nenhum desenvolvimento.
A aquisição pela criança da linguagem dos adultos explica de fato a consonância entre os complexos da primeira e os conceitos da segunda — por outras palavras, a emergência de conceitos complexos ou pseudo-conceitos. As nossas experiências, em que o pensamento das crianças não é entaramelado pelo significado das palavras demonstra que, se não existissem os pseudo-conceitos, os complexos da criança seguiriam uma evolução diferente dos conceitos dos adultos e a comunicação verbal entre as crianças e os adultos seria impossível.
O pseudo-conceito serve como elo de ligação entre o pensamento por complexos e o pensamento por conceitos. É dual por natureza, pois um complexo já traz em si a semente em germinação de um conceito. O intercâmbio verbal com os adultos torna-se assim um poderoso fator de desenvolvimento dos conceitos infantis. A transição entre o pensamento por complexos e o pensamento por conceitos passa despercebida à criança, porque os seus pseudo-conceitos já coincidem no seu conteúdo com os conceitos dos adultos.
Assim, a criança começa a operar com conceitos, a praticar o pensamento conceptual antes de se aperceber ter plena consciência da natureza destas operações. Esta situação genética muito peculiar, não se limita ao processo de acessão aos conceitos; é a regra mais do que a exceção no desenvolvimento intelectual das crianças.
XI
Vimos já com clareza que só a análise experimental nos pode dar os vários estádios e formas do pensamento por complexos Esta análise permite-nos pôr a nu, duma forma esquemática, a verdadeira essência do processo genético de formação dos conceitos e dá-nos assim a chave para compreender o processo tal como se desenrola na vida real. Mas um processo de formação dos conceitos experimentalmente induzidos nunca refletem perfeitamente o desenvolvimento genético exatamente como ocorre na vida real. As formas fundamentais do pensamento concreto que enumeramos aparecem na realidade em estados mistos e a análise morfológica até agora exposta terá que ser seguida por uma análise funcional e genética. Devemos tentar correlacionar as formas de pensamento complexo descobertas na experiência com as formas de pensamento que encontramos no desenvolvimento real da criança e verificar as duas séries de observações uma com a outra.
A partir das nossas experiências concluímos que, no estádio do pensamento complexo, os significados das palavras tal como as crianças os percebem referem-se aos mesmos objetos que o adulto tem no espírito, o que assegura a compreensão entre a criança e o adulto, mas que a criança pensa a mesma coisa de maneira diferente, por meio de operações mentais diferentes. Tentaremos verificar esta proposição comparando as nossas observações com os dados sobre as peculiaridades do pensamento infantil e o pensamento primitivo em geral coligidos pela ciência psicológica.
Se observarmos que grupos de objetos a criança relaciona entre si ao transferir o significado das primeiras palavras e como procede, descobrimos uma mistura das duas formas a que nas nossas experiências chamamos complexo associativo e imagem sincrética.
Tomemos de Idelberger um exemplo, que é citado por Werner (55)(55, p.206). No 251o. dia de vida, uma criança emprega a palavra au-au a uma figura de porcelana chinesa que representa uma rapariga e com que a criança gosta de brincar No 307o. dia, chama au-au a um cão que ladra no pátio, aos retratos dos avós, a um cão de brinquedo e a um relógio. No 331o. dia aplica o mesmo nome a um pedaço de pele com uma cabeça de animal notando particularmente os olhos de vidro e a outra pele sem cabeça. No 334o.aplica-o a uma boneca de borracha que chia quando é comprimida e no 396o. dia aplica-o aos botões de punho do pai. No 443o. dia profere a mesma palavra mal vê uns botões de pérola dum vestido e um termômetro de banho.
Werner analisou este exemplo e concluiu que se podia catalogar da seguinte forma todas as coisas a que a criança chamava au-au: em primeiro lugar, os cães e os cães de brinquedo e pequenos objetos oblongos que se assemelhassem à boneca de porcelana (por exemplo, a boneca de borracha e o termômetro); em segundo lugar, os botões de punho, os botões de pérola e outros pequenos objetos semelhantes. O atributo que servia de critério eram as superfícies oblongas ou as superfícies brilhantes parecidas com olhos.
É evidente que a criança unia estes objetos concretos segundo os princípios dos complexos. Estas formações espontâneas de complexos preenchem completamente todo o primeiro capítulo da história do desenvolvimento das palavras infantis.
Há um exemplo bem conhecido e freqüentemente citado deste tipo de derivas: a utilização pelas crianças da palavra quá-quá para designar primeiro um pato nadando na água dum lago e depois toda a espécie de líquidos, incluindo o leite engarrafado; quando acontece a criança observar uma moeda com uma águia desenhada, a moeda passa a ser um quá-quá sendo depois a designação transferida para todos os objetos redondos com o aspecto de moedas. Eis um complexo em cadeia típico: cada novo objeto incluído na cadeia tem algum atributo comum com outro elemento, mas os atributos de ligação estão constantemente a variar.
A formação de complexos é responsável pelo fenômeno peculiar de uma palavra poder, em diferentes situações, ter significados diferentes ou até opostos, desde que haja qualquer nexo associativo entre esses significados. Assim, uma criança pode dizer antes, quer para antes e depois, ou amanhã para amanhã e ontem, indiferentemente. Temos aqui uma perfeita analogia com algumas línguas antigas — o Hebreu, o Grego e o Latim — nas quais uma mesma palavra indica por vezes também o seu contrário. Os Romanos, por exemplo, tinham uma mesma palavra para alto e baixo. Tal casamento de significados opostos só é possível em resultado do pensamento por complexos.
O pensamento primitivo tem outro traço muito interessante que nos mostra o pensamento por complexos em ação e indica a diferença entre os pseudo-conceitos e os conceitos. Este traço, que Levy-Bruhl foi o primeiro a reconhecer nos povos primitivos, Storch nos doentes mentais e Piaget nas crianças — é designado correntemente por contaminação. Aplica-se o termo à relação de identidade parcial ou estreita interdependência estabelecida pelo pensamento primitivo entre dois objetos ou fenômenos que na realidade não apresentam qualquer continuidade nem nenhuma outra conexão reconhecível.
Levy-Bruhl (26) cita von den Steinen a propósito de um flagrante caso de participação observado nos Bororo do Brasil que se orgulham de serem papagaios vermelhos. Von den Steinen a princípio não sabia como interpretar uma afirmação tão categórica, mas acabou por achar que os índios queriam significar precisamente isso. Não se tratava apenas de uma palavra de que se tivessem apropriado, ou duma relação familiar sobre que insistissem: o que queriam significar era uma identidade de essências.
Parece-nos que o fenômeno da contaminação não teve nenhuma explicação psicológica suficientemente convincente e isto por duas razões: em primeiro lugar, as investigações tenderam a centrar-se sobre o conteúdo do fenômeno e a descurar as operações mentais nele envolvidas, isto é, a estudar o produto em vez do processo; em segundo lugar, não se efetuaram quaisquer tentativas adequadas para ver o fenômeno no contexto de outras conexões e relações formadas pelo cérebro primitivo. Acontece demasiadas vezes que aquilo que atrai a atenção das investigações é o fantástico, o extremo, como por exemplo, o fato de os Bororo se considerarem como papagaios vermelhos a expensas de fenômenos menos espetaculares. No entanto, uma análise mais aturada mostra que até as conexões que não se chocam abertamente com a nossa lógica são formadas pelos povos primitivos com base nos princípios do pensamento por complexos.
Como as crianças de certa idade pensam por pseudo-conceitos, como, para elas, as palavras designam complexos de coisas concretas, o seu pensamento terá necessariamente como resultado a contaminação, isto é, conexões que não são aceitáveis pela lógica dos adultos. Determinada coisa pode ser incluída em diferentes complexos por força dos seus diferentes atributos concretos e. consequentemente, pode ter vários nomes. A utilização de um ou de outro depende do complexo que é ativado em determinado momento. Nas nossas experiências observamos freqüentemente casos deste tipo de contaminação em que um objeto era incluído simultaneamente em dois ou mais complexos. A contaminação não é uma exceção no pensamento por complexos, muito pelo contrário, é a regra.
Os povos primitivos também pensam por complexos e, consequentemente, nas suas línguas a palavra não funciona como uma entidade portadora de um conceito, mas como um “nome de família” para grupos de objetos concretos congregados não logicamente, mas factualmente. Storch mostrou que este mesmo tipo de raciocínio é característico dos esquizofrênicos que regridem do pensamento conceptual para um tipo mais primitivo de intelecção, rico em imagens e símbolos. Ele considera que o uso das imagens concretas em lugar dos pensamentos abstratos é um dos mais característicos traços do pensamento primitivo. Assim, a criança, o homem primitivo, e o alienado, por muito que os seus processos mentais difiram no respeitante a outros aspectos importantes, manifestam todos fenômenos de contaminação — sintoma do pensamento primitivo por complexos e da função das palavras como nomes de família.
Estamos portanto em crer que a forma como Levy-Bruhl interpreta a contaminação é incorreta. Este autor aborda o fato de os Bororo afirmarem serem papagaios vermelhos do ponto de vista da nossa lógica, presumindo que também para o homem primitivo tal asserção significa uma identidade de essências. Mas como, para os Bororo, as palavras designam grupos de objetos e não conceitos, a sua asserção tem diferente significado. A palavra que designa papagaio é uma palavra que designa um complexo de que eles fazem parte conjuntamente com os papagaios. Não implica identidade, tal como o fato de duas pessoas compartilharem o mesmo nome de família não implica que sejam uma e a mesma pessoa.
XII
A história da linguagem mostra claramente que o pensamento por complexos com todas as suas peculiaridades é o próprio fundamento do desenvolvimento lingüístico.
A lingüística moderna estabelece a distinção entre o significado de uma palavra, ou expressão, e o referente, isto é, o objeto que designa. Pode haver um só significado e vários referentes, ou diferentes significados e um só referente. Quer digamos “o vencedor de Jena” ou o “derrotado de Waterloo”, estamos a referir-nos à mesma pessoa e, no entanto, o significado das duas expressões é diferente. Só há uma categoria de palavras que têm por única função a função de referência: são os nomes próprios. Usando esta terminologia, podíamos dizer que as palavras das crianças e dos adultos coincidem, pelos seus referentes mas não pelos seus significados.
Também na História das línguas encontramos exemplos de identidades de referentes combinadas com divergências de significados. Esta tese é confirmada por uma grande quantidade de fatos. Os sinônimos existentes em cada língua são um bom exemplo disto. A língua russa tem duas palavras para designar a Lua, a que se chegou através de diferentes processos de pensamento claramente refletidos pela etimologia Um termo deriva da palavra latina que conota “capricho, fantasia, inconstância” e tinha por intenção óbvia sublinhar a volubilidade de formas que distingue a Lua de todos os outros corpos celestes. A palavra que está na origem do segundo termo, que significa “mediador”, foi sem dúvida impregnada pelo fato de o tempo poder ser medido pelas fases da Lua. Entre as línguas o mesmo acontece. Por exemplo, em Russo, a palavra que significa alfaiate deriva de uma velha palavra que designa uma peça de pano; em Francês, Inglês e Alemão significa “o que talha”.
Se seguirmos a evolução de uma palavra em qualquer linguagem e por mais surpreendente que tal possa parecer à primeira vista, veremos que o seu significado se transforma exatamente da mesma forma que o pensamento das crianças. No exemplo que citamos, a palavra au-au aplicava-se a uma série de objetos totalmente distintos do ponto de vista dos adultos. No desenvolvimento da linguagem semelhantes transferências de significado não constituem exceção, antes pelo contrário, são regra. O russo tem uma palavra para dia-e-noite, a palavra sutki. A principio. significava costura, junção de duas peças de roupa, algo entretecido, passou depois a ser utilizada para designar todo e qualquer tipo de junção, por exemplo, a junção de duas paredes de uma casa e, portanto, um canto ou esquina; começou a ser utilizada metaforicamente para designar “crepúsculo”, a altura “em que o dia e a noite se casam, se encontram”; passou depois a designar o intervalo entre um crepúsculo e o seguinte, o atual sutkí de 24 horas. Palavras tão diversas como costura, canto, crepúsculo e 24 horas são englobadas num só complexo no decurso do desenvolvimento de uma palavra da mesma forma que uma criança incorpora diferentes coisas num grupo com base na imagética concreta.
Quais são as leis que regem a formação das famílias de palavras? O mais freqüente é os novos objetos serem designados em função de atributos que não são essenciais, de forma que a palavra não exprime verdadeiramente a natureza da coisa nomeada. Como um nome nunca é um conceito quando aparece pela primeira vez, é simultaneamente demasiado limitado e demasiado vasto. Por exemplo, a palavra russa que designa rato significava primeiramente “ladrão”. Mas uma vaca não é nem de longe apenas um animal com cornos, nem um rato se limita a roubar; assim, os seus nomes são demasiado limitativos. Por outro lado, são demasiado latos, na medida em que esses epítetos podem ser aplicados — e realmente são-no em certas línguas — a um certo número de outras criaturas. O resultado disto é uma luta incessante, no seio da língua em desenvolvimento, entre o pensamento conceptual e a herança, o legado, do primitivo pensamento por meio de complexos. O substantivo criado por um complexo, o nome baseado num, entra em conflito com o conceito que passou a representar. Na luta entre o conceito e a idéia que deu origem ao nome, a imagem perde gradualmente terreno; desvanece-se da consciência e da memória e o significado original da palavra acaba por ficar obliterado. Há alguns anos toda a tinta de escrever era negra e a palavra russa que designa tinta refere-se à sua cor negra. Mas isso não nos impede de falarmos hoje de “negrura” vermelha, verde ou azul sem notarmos a incongruência da combinação. As transferências dos nomes para novos objetos ocorrem por contiguidade ou semelhança, isto é, com base em ligações concretas típicas do pensamento por complexos. As palavras que estão sendo elaboradas na nossa época apresentam-nos muitos exemplos do processo como coisas heterogêneas se misturam num mesmo agrupamento. Quando falamos da “perna da mesa”, do “cotovelo da rua”, da “boca na botija”, estamos a agrupar objetos duma forma semelhante aos complexos. Nestes casos, as semelhanças visuais e funcionais que servem de mediadores no processo são bastante claras. A transferência pode ser determinada, no entanto, pelas associações mais variadas, e quando se trata de uma transferência que ocorreu há muito tempo, é impossível reconstruir as conexões existentes com conhecimento perfeito do pano de fundo histórico do acontecimento
A palavra primitiva não é um símbolo direto de um conceito mas antes uma imagem, um retrato, um esboço mental, uma curta história sobre esse conceito quer dizer, uma autêntica obra de arte em ponto pequeno. Ao nomearmos um objeto por meio de um conceito pictórico desse gênero, vinculamo-lo a um grupo em que figura uma certa quantidade de outros objetos. A esse respeito, o processo de criação da linguagem é análogo ao processo de formação dos complexos no desenvolvimento intelectual das crianças.
XIII
Na linguagem das crianças surdas-mudas podemos aprender muitas coisas acerca do pensamento por complexos, pois a estas crianças falta o principal estímulo para a formação de conceitos. Privados de intercâmbio social com os adultos e deixados a si próprios para determinarem que objetos devem agrupar sob a égide de um mesmo nome, formam os seus complexos livremente e as características especiais do pensamento por complexos aparecem na sua forma pura e nítida.
Na linguagem por sinais dos surdos-mudos, o ato de tocar um dente pode ter três significados diferentes: “branco”, “pedra” e “dente”. Os três significados pertencem a um mesmo complexo que, para melhor elucidação, exige um gesto suplementar de apontar ou imitativo, de forma a precisar-se que objeto se quer significar em cada caso concreto. As duas funções da palavra encontram-se, por assim dizer, separadas. Um surdo-mudo toca o dente e a seguir, apontando para a sua superfície ou fazendo um gesto de arremesso, diz-nos a que objetos se refere em cada caso.
Para comprovarmos e complementarmos os nossos resultados experimentais fomos buscar alguns exemplos de gênese de complexos do desenvolvimento lingüístico das crianças, do pensamento dos povos primitivos e do desenvolvimento da linguagem enquanto tal. Dever-se-á notar no entanto que até o adulto normal, que é capaz de formar e utilizar conceitos, não opera sistematicamente com conceitos ao pensar. Para lá dos processos primitivos de pensamento dos sonhos, o adulto desvia-se constantemente do pensamento conceptual para o pensamento concreto do tipo dos complexos. A forma transitória do pensamento, o pseudo-conceito, não se limita ao pensamento das crianças; também nós recorremos a ela muito freqüentemente na nossa vida de todos os dias.
XIV
A nossa investigação levou-nos a dividir o processo de gênese dos conceitos em três fases principais. Descrevemos duas dessas fases, marcadas pela predominância da imagem sincrética e do complexo, respectivamente, e chegamos agora à terceira fase. Tal como na segunda, pode ser subdividida em vários estádios.
Na realidade, as novas formações não aparecem necessariamente apenas após o pensamento por complexos ter completado a sua trajetória de desenvolvimento. Duma forma rudimentar podem ser observadas muito antes de a criança começar a pensar em termos de pseudo-conceitos. Essencialmente, no entanto, as formas que vamos começar a descrever têm uma segunda raiz, uma raiz independente. Possuem uma função genética diferente da dos complexos no desenvolvimento mental da criança.
A principal função dos complexos consiste em estabelecer ligações e relações. O pensamento por complexos dá início à unificação das impressões dispersas; ao organizar elementos discretos da experiência em grupos cria uma base para futuras generalizações.
Mas o conceito desenvolvido pressupõe algo mais do que a unificação Para formar esse conceito é também necessário abstrair, isolar elementos e ver os elementos abstraídos da totalidade da experiência concreta em que se encontram mergulhados. Na genuína gênese dos conceitos é tão importante unificar como separar: a síntese tem que combinar-se com a análise. O pensamento por complexos não pode efetuar ambas as operações. A superabundância, a superprodução de conexões e a debilidade da abstração constituem a essência mesma do pensamento por complexos. A função do processo que amadurece durante a terceira fase do desenvolvimento da gênese dos conceitos é constituída pela satisfação do segundo requisito, embora os seus primeiros passos radiquem num período muito anterior.
Na nossa experiência, o primeiro passo em direção à abstração dava-se quando a criança começava a agrupar o máximo número possível de objetos, por exemplo, objetos que eram pequenos e redondos ou vermelhos e chatos. Como o material experimental não contém objetos idênticos, até os que apresentam o maior número de semelhanças são diferentes sob certos aspectos. Daqui se segue que, ao colher assim os que melhor “se casavam”, a criança tem que prestar mais atenção a certos traços de um objeto do que aos outros — dando-lhe um tratamento preferencial, por assim dizer. Os atributos, ao somarem-se, fazem com que o objeto que apresenta o máximo de semelhanças com a amostra se torne o centro de atenção, abstraindo-se assim, em certo sentido, dos atributos a que a criança presta menos atenção. A primeira tentativa de abstração não é obvia enquanto tal, porque a criança abstrai todo um grupo de traços, sem os distinguir claramente uns dos outros; amiúde, a abstração de um tal grupo de atributos baseia-se apenas numa impressão vaga e geral de semelhança dos objetos.
No entanto, o caráter global da percepção da criança abriu brechas. Os atributos de um objeto foram divididos em duas partes a que não se deu a mesma importância — e isto é um começo de abstração positiva e negativa. Um objeto não entra já no complexo in toto, com todos os seus atributos — alguns vêem vedada a sua entrada; se, com isso, o objeto é empobrecido, os atributos que provocaram a sua inclusão no complexo adquirem um relevo mais vincado no pensamento da criança.
XV
Durante o estádio seguinte do desenvolvimento da abstração, o agrupamento de objetos com base no máximo de semelhança possível é superado pelo agrupamento com base num único atributo, por exemplo, o agrupamento exclusivo dos objetos redondos, ou dos objetos chatos. Embora o produto não se possa distinguir do produto de um conceito, estas formações, tal como os pseudo-conceitos, são meras percursoras dos autênticos conceitos. Segundo o uso introduzido por Gross(14), podemos chamar a estas formações conceitos potenciais.
Os conceitos potenciais resultam de uma espécie de abstração isolante de natureza tão primitiva que se encontra presente em certo grau não só nas crianças de muito tenra idade como também nos animais. Pode treinar-se as galinhas a responderem a um atributo distinto em diferentes objetos, como por exemplo, a cor ou a forma, se esse atributo for sinal de comida acessível; os chimpanzés de Koehler, tendo aprendido a utilizar um pau como instrumento, utilizavam outros objetos compridos quando precisavam de um pau e não o tinham.
Mesmo nos bebês muito pequenos, os objetos ou as figuras que apresentam certos traços comuns evocam respostas semelhantes. No mais precoce estádio pré-verbal as crianças esperam nitidamente que situações semelhantes conduzam a desfechos semelhantes. A partir do momento em que uma criança associou uma palavra com um objeto, facilmente se aplica a um novo objeto que a impressiona por, em certos aspectos, ser semelhante ao primeiro. Os conceitos potenciais, portanto, podem ser formados, tanto na esfera do pensamento perceptual, como na esfera do pensamento prático, virado para a ação — com base na semelhança de significados funcionais, no segundo. Estes últimos são uma importante fonte de conceitos potenciais. É do conhecimento geral que os significados funcionais desempenham um papel muito importante no pensamento da criança infantil. Quando Se lhe pede que explique uma palavra, uma criança dir-nos-á aquilo que o objeto designado pela palavra em questão faz, ou — o que é mais freqüente — o que se pode fazer com esse objeto. Até os conceitos abstratos são muitas vezes traduzidos na linguagem da ação concreta: “Razoável quer dizer quando estou a suar e não me deixo estar numa corrente de ar”.
Os conceitos potenciais já desempenham um certo papel no pensamento por complexos. Por exemplo, os complexos associativos pressupõem a existência de que se “abstrai” um traço comum de diferentes unidades. Mas enquanto o pensamento por complexos predominar, o traço abstraído é instável, não tem posição privilegiada e facilmente cede a sua dominância temporária a outros traços. Nos conceitos potenciais propriamente ditos, um traço que alguma vez tenha sido abstraído não se volta a perder facilmente no meio de outros traços. A totalidade concreta de traços foi destruída pela sua abstração e abre-se a possibilidade de unificar os traços numa base diferente. Só o domínio da abstração, combinado com o pensamento por complexos desenvolvido permite à criança avançar para a formação dos conceitos genuínos. Um conceito só surge quando os traços abstraídos são novamente sintetizados e a abstração sintetizada daí resultante se torna o principal instrumento de pensamento. Como ficou provado pelas nossas experiências, é a palavra que desempenha o papel decisivo neste processo; a palavra é utilizada deliberadamente para orientar todos os processos parciais do estádio superior da gênese dos conceitos (iv).
XVI
No nosso estudo experimental dos processos intelectuais dos adolescentes observamos como as formas primitivas de pensamento, quer as sincréticas quer as que se baseiam nos complexos, vão desaparecendo gradualmente, como os conceitos potenciais vão sendo usados cada vez menos e os verdadeiros conceitos começam a formar-se — raramente a princípio e depois com crescente freqüência. Mesmo após o adolescente ter aprendido a produzir conceitos, não abandona as formas mais elementares; estas continuam a operar durante um certo período, continuando até a predominar em muitas áreas do seu pensamento. A adolescência é menos um período de consumação do desenvolvimento do que de transição e crise.
O caráter transitório do pensamento do adolescente torna-se particularmente evidente quando observamos o funcionamento real dos conceitos acabados de adquirir. Certas experiências especialmente projetadas para estudar as operações que os adolescentes levam a cabo com os conceitos põem em evidência acima de tudo uma flagrante discrepância entre a sua capacidade para formar conceitos e a sua capacidade para os definir.
O adolescente formará e utilizará muito corretamente um conceito numa situação concreta, mas sentirá uma estranha dificuldade em exprimir esse conceito por palavras e a definição verbal, em muitos casos, será muito mais restritiva do que seria de esperar pela forma como o adolescente utilizou o conceito. A mesma discrepância ocorre no pensamento dos adultos, mesmo em níveis de desenvolvimento muito avançados. Isto está de acordo com o pressuposto de que os conceitos evoluem de forma muito diferente da elaboração deliberada e consciente da experiência em termos de lógica. A análise da realidade com a ajuda dos conceitos precede a análise dos próprios conceitos.
O adolescente defronta-se com outros obstáculos quando tenta aplicar um conceito que formou numa situação específica a um novo conjunto de objetos e circunstâncias em que os atributos sintetizados no conceito aparecem em configurações que diferem da original (exemplo disto seria a aplicação a objetos quotidianos do novo conceito “pequeno e alto” desenvolvido no teste dos blocos). No entanto, o adolescente corretamente é capaz de realizar essa transferência num estádio relativamente precoce do desenvolvimento.
Muito mais difícil do que a transferência em si é a tarefa de definir um conceito quando já não tem quaisquer raízes na situação original e tem que ser formulado num plano puramente abstrato, sem referência a nenhuma situação ou impressão concretas Nas nossas experiências, há crianças ou adolescentes que resolvem corretamente o problema da formação do conceito, mas descem a um nível muito mais primitivo de pensamento quando se trata de definir verbalmente o conceito e começam muito pura e simplesmente a enumerar os vários objetos a que aquele se pode aplicar na configuração particular em que se encontra. Neste caso operam com a palavra como um conceito mas definem-no como complexo — forma de pensamento esta que vacila entre o conceito e o complexo e que é característica e típica desta idade de transição.
A maior de todas as dificuldades é a aplicação de um conceito que o adolescente conseguiu finalmente apreender e formular a um nível abstrato a novas situações que têm que ser encaradas nos mesmos termos abstratos — um tipo de transferência que habitualmente só é dominado pelo fim do período de adolescência A transição do abstrato para o concreto vem a verificar-se tão árdua para o jovem, como a primitiva transição do concreto para o abstrato. As nossas experiências não deixam quaisquer dúvidas que neste ponto, de qualquer forma, a descrição da gênese dos conceitos dada pela psicologia tradicional, a qual se limita a reproduzir o esquema da lógica formal, não tem qualquer relação com a realidade.
Segundo a escola clássica, a formação dos conceitos é realizada pelo mesmo processo do retrato de família nas fotografias compósitas de Galton. Estas são realizadas tirando fotografias de vários membros de uma mesma família sobre mesma chapa, de forma que os traços de família comuns a várias pessoas surgem com extraordinária vivacidade, enquanto os traços pessoais variáveis de cada um se esfumam com a sobreposição. Presume-se que na formação de conceitos se dá uma intensificação de traços semelhantes; segundo a teoria tradicional a soma destes traços é o conceito. Na realidade, como alguns psicólogos há muito notaram, e as nossas experiências demonstram, o caminho pelo qual os adolescentes atingem a formação dos conceitos nunca se conforma com este esquema lógico. Quando se vê em toda a sua complexidade o processo de gênese dos conceitos, este surge-nos como um movimento de pensamento dentro da pirâmide dos conceitos, que oscila constantemente entre duas direções, do particular para o geral e do geral para o particular.
As nossas investigações mostraram que um conceito se forma não através do jogo mútuo das associações, mas através de uma operação intelectual em que todas as funções mentais elementares participam numa combinação específica. Esta operação é orientada pela utilização das palavras como meios para centrar ativamente a atenção, para abstrair certos traços, sintetizá-los e representá-los por meio de símbolos.
Os processos que conduzem à formação dos conceitos desenvolvem-se segundo duas trajetórias principais. A primeira é a formação dos complexos: a criança une diversos objetos em grupos sob a égide de um “nome de família” comum; este processo passa por vários estádios. A segunda linha de desenvolvimento é a formação de “conceitos potenciais”, baseados no isolamento de certos atributos comuns. Em ambos os processos o emprego da palavra é parte integrante dos processos genéticos e a palavra mantém a sua função orientadora na formação dos conceitos genuínos a que o processo conduz.

7. Pensamento e linguagem

Esqueci a palavra que pretendia
dizer e o meu pensamento,
desencarnado, volta ao reino das sombras

(de um poema de Mandelstham)

I

Começamos o nosso estudo com uma tentativa de pôr a nu a relação existente entre o pensamento e a linguagem nos estádios iniciais do desenvolvimento filogenético e ontogenético. Não encontramos nenhuma interdependência específica entre as raízes genéticas do pensamento e da palavra. Tornou-se patente que a relação interna que buscávamos não era um requisito prévio do desenvolvimento histórico da consciência humana, antes era um seu produto.
Nos animais, mesmo naqueles antropóides cuja fala é foneticamente como a fala humana e cujo intelecto se aparenta com o do homem, a linguagem e o pensamento não se encontram interrelacionados. É indubitável que, no desenvolvimento da criança, existe também um período pré-linguístico do pensamento e um período pré-intelectual a fala: o pensamento e a palavra não se encontram relacionados por uma relação primária. No decurso da evolução do pensamento e da fala gera-se uma conexão entre um e outra que se modifica e desenvolve.
Seria errado no entanto encarar o pensamento e a fala como dois processos não relacionados entre si, seja como dois processos paralelos, seja como dois processos que se entrecruzassem em certos momentos e se influenciassem mutuamente duma forma mecânica.
A ausência de uma relação primária não quer dizer que a conexão entre eles só possa formar-se de uma forma mecânica.
A futilidade da maior parte das investigações primitivas devia-se em grande parte ao fato de se pressupor que o pensamento e a palavra eram elementos independentes e isolados e que o pensamento verbal era fruto da sua união externa.
O método de análise baseado nesta concepção estava votado ao fracasso. Buscava explicar as propriedades do pensamento verbal cindindo-o nos elementos que o compunham — a palavra e o pensamento — nenhum dos quais tomado em separado possuiria as propriedades do todo.
Este método não é uma verdadeira análise que nos seja útil para resolver problemas concretos, antes conduz à generalização.
Comparamo-lo à análise da água em hidrogênio e oxigênio — que só pode dar resultado em descobertas aplicáveis a toda a água existente na natureza, desde o Oceano Pacífico até uma gota de água da chuva.
Semelhantemente, a afirmação segundo a qual o pensamento verbal se compõe de processos intelectuais e funções de discurso propriamente ditas aplica-se a todo o pensamento verbal e não explica nenhum dos problemas específicos com que se defronta o estudioso do pensamento verbal.
Tentamos uma nova abordagem do problema e substituímos a análise em elementos pela análise em unidades, cada uma das quais retém, sob uma forma simples, todas as propriedades do todo. Encontramos esta unidade do pensamento verbal no significado da palavra.
O significado duma palavra representa uma amálgama tão estreita de pensamento e linguagem que é difícil dizer se se trata de um fenômeno de pensamento, ou se se trata de um fenômeno de linguagem. Uma palavra sem significado é um som vazio; portanto, o significado é um critério da palavra e um seu componente indispensável. Pareceria portanto que poderia ser encarado como um fenômeno lingüístico. Mas do ponto de vista da psicologia, o significado de cada palavra é uma generalização, um conceito. E, como as generalizações e os conceitos são inegavelmente atos de pensamento, podemos encarar o significado como um fenômeno do pensar. No entanto, daqui não se segue que o pensamento pertença a duas esferas diferentes da vida psíquica.
O significado das palavras só é um fenômeno de pensamento na medida em que é encarnado pela fala e só é um fenômeno lingüístico na medida em que se encontra ligado com o pensamento e por este é iluminado. É um fenômeno do pensamento verbal ou da fala significante — uma união do pensamento e da linguagem.
As nossas investigações experimentais confirmam integralmente esta tese fundamental. Não só provaram que o estudo concreto da gênese do pensamento verbal se tornou possível pelo estudo do significado das palavras como unidade analítica, como levaram também a outra tese que consideramos ser o mais importante resultado do nosso estudo e que decorre imediatamente da primeira: a tese segundo a qual o significado das palavras evolui. Este ponto de vista deve substituir o postulado da imutabilidade dos significados das palavras.
Do ponto de vista das velhas escolas da psicologia, a relação entre a palavra e o significado é uma relação associativa estabelecida através da repetição da percepção simultânea de um certo som e de um certo objeto. Uma palavra solicita no espírito o seu conteúdo, tal como o sobretudo dum amigo nos recorda esse mesmo amigo ou uma casa, os seus habitantes. A associação entre a palavra e o seu significado pode desenvolver-se mais forte ou mais debilmente, pode ser enriquecida pela relacionarão com outros objetos de tipo semelhante, difundir-se por sobre um vasto domínio, Ou tornar-se mais limitada, isto é, pode sofrer transformações quantitativas e externas, mas não pode modificar a sua natureza psicológica. Para que tal acontecesse teria que deixar de ser uma associação.
Desse ponto de vista, qualquer evolução do significado de uma palavra é impossível e inexplicável — conseqüência esta que constitui um handicap tanto para os lingüistas como para os psicólogos. A partir da altura em que se comprometeu com a teoria da associação, a semântica persistiu em considerar o significado da palavra como uma associação entre o som e o conteúdo. Todas as palavras, desde as mais concretas às mais abstratas, surgiam como sendo formadas da mesma maneira, relativamente ao seu significado, parecendo não conter nenhum elemento característico da fala enquanto tal; uma palavra fazia-nos recordar o seu significado tal como um objeto nos recordava outro objeto.
Pouco surpreenderá portanto que a semântica nem sequer pusesse a questão mais ampla da evolução do significado das palavras. Reduzia-se essa evolução às variações nas conexões associativas entre as palavras isoladas e os objetos isolados: uma palavra poderia em determinada altura denotar um objeto passando depois a associar-se com outro, como um sobretudo que, por mudar de proprietário, nos recordasse primeiro uma pessoa e, logo depois, outra.
A lingüística não compreendia que na evolução histórica da linguagem, a própria estrutura do significado e a sua natureza psicológica se transformam também.
Das generalizações primitivas, o pensamento verbal vai-se elevando ao nível de conceitos mais abstratos. Não é apenas o conteúdo de uma palavra que se altera, mas a forma como a realidade é generalizada e refletida numa palavra.
A teoria associativa também não se adequa à explicação do desenvolvimento dos significados das palavras na infância. Também neste aspecto, só pode explicar as alterações externas, puramente quantitativas, das conexões que ligam a palavra e o seu significado, o seu fortalecimento e o seu enriquecimento, mas não as transformações psicológicas e estruturais fundamentais que podem ocorrer e ocorrem no desenvolvimento da linguagem infantil.
Infelizmente, o fato de o associacionismo em geral ter sido abandonado durante um certo lapso de tempo não parece ter afetado a interpretação da palavra e do significado. A escola de Wuerzburg, cujo propósito principal era o de provar a impossibilidade de reduzir o pensamento a um simples jogo de associações e demonstrar a existência de leis específicas que regem a corrente de pensamento, não reviu a teoria associativa da palavra e do significado, nem reconheceu sequer a necessidade de uma tal revisão. Esta escola emancipou o pensamento dos grilhões da sensação e da imagem e das leis da associação e transformou-o num ato puramente espiritual. Mas ao fazê-lo, regrediu para os conceitos pré-científicos de Santo Agostinho e Descartes, acabando por chegar a um idealismo subjetivo extremo. A psicologia do pensamento encaminhava-se para as idéias de Platão, e, ao mesmo tempo, deixava-se a linguagem à mercê da associação. Mesmo após a obra realizada pela escola de Wuerzburg, continuou a considerar-se que a conexão entre a palavra e o seu significado era uma simples relação associativa. Encarava-se a palavra como correlativo externo do pensamento, como seu simples adereço, que não tinha qualquer influência na sua vida interna. O pensamento e a palavra nunca estiveram tão separados como durante o período de Wuerzburg. Na realidade, a destruição da teoria associativa no domínio do pensamento incrementou o seu poderio no domínio da linguagem.
A obra de outros psicólogos veio reforçar ainda mais esta tendência. Selz continuou a investigar o pensamento sem tomar em consideração a relação entre este e a linguagem e chegou à conclusão de que o pensamento produtivo do homem e do chimpanzé eram de natureza idêntica a tal ponto este investigador ignorava a influência das palavras sobre o pensamento.
Até Ach, que levou a cabo um estudo especial do significado das palavras e que tentou superar o associativismo na sua teoria dos conceitos se limitou a pressupor a existência de “tendências determinantes” que entrariam em ação conjuntamente com as associações na formação dos conceitos. Por conseguinte, as conclusões a que chegou não vieram alterar a anterior compreensão do significado das palavras. Ao identificar o conceito com o significado, impedia que se explicasse os desenvolvimentos e as transformações dos conceitos. Uma vez estabelecido, o significado de uma palavra ficava estabelecido para sempre; o seu desenvolvimento encontrava-se completo. Estes eram os mesmos princípios que os psicólogos atacados por Ach defendiam. Para ambos os lados, o ponto de partida da evolução dos conceitos constituía também o seu termo; só havia desacordo no tocante à forma como se iniciava o desenvolvimento da formação da palavra.
Na psicologia gestaltista (Psicologia da Forma), a situação não era muito diferente. Esta escola era ainda mais consistente do que as outras na tentativa de superar o princípio geral do associativismo. Não satisfeita com uma solução parcial do problema, tentou libertar o pensamento e a fala da lei da associação e colocá-los a ambos sob o domínio da lei da gênese de estruturas. Surpreendentemente, nem esta escola — que é a mais progressiva de todas as modernas escolas de psicologia — realizou quaisquer progressos na teoria da linguagem e do pensamento.
Por um lado, manteve a separação completa entre estas duas junções. A luz da teoria gestaltista, a relação entre o pensamento e a palavra aparece como uma simples analogia, uma redução de ambos a um denominador estrutural comum. Encara-se a formação das primeiras palavras com significado por parte das crianças como algo semelhante às operações intelectuais dos chimpanzés nas experiências de Koehler. As palavras entram na estrutura das coisas e adquirem um certo significado funcional, duma forma bastante semelhante àquela como, para o chimpanzé, o pau se torna parte da estrutura de obtenção do fruto e adquire o significado funcional de instrumento. Já não se encara a conexão entre palavra e significado como uma questão de simples associação, mas como uma questão de estrutura. Parece ser um passo em frente, mas se examinarmos mais de perto a nova abordagem, é fácil ver que o passo em frente é um passo em falso, ilusório, e que não saímos ainda do mesmo sítio. Aplica-se o princípio da estrutura a todas as relações entre as coisas, da mesma forma avassaladora como anteriormente se aplicava o princípio da associação. Continua a ser impossível explicar as relações específicas entre palavra e significado, pois à partida continua a considerar-se que em princípio são idênticas a todas as outras relações entre coisas. Os gatos continuam a ser tão pardos na poeira da psicologia gestaltista como nos primitivos nevoeiros do associacionismo universal.
Enquanto Ach procurava superar o associonismo com a “tendência determinante”, a teoria psicológica gestaltista combateu-o com o princípio da estrutura — mantendo no entanto os dois erros fundamentais da velha teoria: o pressuposto da identidade de natureza de todas as conexões e o pressuposto de que os significados das palavras não se alteram. Tanto a antiga como a nova teoria psicológica partem ambas da hipótese de que a evolução do significado de uma palavra termina mal esta emerge. As novas tendências da psicologia produziram progressos em todos os ramos, exceto no estudo do pensamento e da palavra. Neste domínio, os novos princípios parecem-se com os antigos como dois gêmeos.
Se a psicologia gestaltista estagnou no campo da linguagem, deu um grande passo à retaguarda no campo do pensamento. A escola de Wuerzburg, pelo menos, considerava que o pensamento tinha leis próprias, ao passo que a escola gestaltista nega a existência de tais leis. Reduzindo a um denominador estrutural comum as percepções dos animais domésticos, as operações mentais de um chimpanzé, as primeiras palavras significativas das crianças e o pensamento conceptual dos adultos, oblitera toda e qualquer distinção entre a percepção mais elementar e as mais elevadas formas de pensamento.
Esta recensão crítica pode ser resumida como se segue: todas as escolas e tendências psicológicas descuram um ponto fundamental: todo e qualquer pensamento é uma generalização. Assim, estudam a palavra e o significado sem fazerem qualquer referência à evolução. Enquanto estas duas condições persistirem em tendências sucessivas nas tendências posteriores, estas muito pouca relevância terão para o tratamento do problema.

II

A descoberta de que o significado das palavras evolui tira o estudo do pensamento e da linguagem de um beco sem saída. Os significados das palavras passam a ser formações dinâmicas e não já estatísticas, transformam-se à medida que as crianças se desenvolvem e alteram-se também com as várias formas como o pensamento funciona.
Se os significados das palavras se alteram na sua natureza interna, então a relação entre o pensamento e a palavra também se modifica. Para compreender a dinâmica dessa relação, teremos que complementar a abordagem genética do nosso estudo principal com a análise funcional e examinar o papel do significado da palavra no processo de pensamento.
Consideremos o processo seguido pelo pensamento verbal desde o primitivo e difuso surgir dum pensamento até à sua formulação Neste momento pretendemos mostrar não a forma como os significados evoluem ao longo de dilatados intervalos de tempo, mas o modo como funcionam no processo vivo do pensamento verbal. A partir dessa análise funcional, poderemos mostrar também que, em cada fase do desenvolvimento do significado das palavras há uma relação particular entre o pensamento e a linguagem. Como a forma mais fácil de resolver os problemas funcionais consiste em examinar a forma mais elevada de determinada atividade poremos por um momento de parte o problema do desenvolvimento e consideraremos as relações entre o pensamento e a palavra no cérebro que já atingiu a maturidade.
A idéia diretriz da discussão que se segue pode ser reduzida à seguinte fórmula: a relação entre o pensamento e a palavra não é uma coisa mas um processo, um movimento contínuo de vaivém entre a palavra e o pensamento; nesse processo a relação entre o pensamento e a palavra sofre alterações que, também elas, podem ser consideradas como um desenvolvimento no sentido funcional. As palavras não se limitam a exprimir o pensamento: é por elas que este acede à existência. Todos os pensamentos tendem a relacionar determinada coisa com outra, todos os pensamentos tendem a estabelecer uma relação entre coisas, todos os pensamentos se movem, amadurecem, se desenvolvem, preenchem uma função, resolvem um problema. Esta corrente do pensamento flui como um movimento interno através de uma série de planos. Qualquer análise da interação entre o pensamento e a palavra terá de principiar por investigar os diferentes planos e fases que um pensamento percorre antes de se encarnar nas palavras.
A primeira coisa que qualquer estudo revela é a necessidade de estabelecer a distinção entre dois planos de discurso. Ambos os aspectos da linguagem, tanto o interno, significante, semântico, como o aspecto externo, fonético, têm as suas leis de movimento específicas, embora formem uma verdadeira unidade, mas que é uma unidade complexa e não homogênea. Alguns fatos do desenvolvimento lingüístico da criança indicam a existência de movimentos independentes nas esferas fonética e semântica. Apontaremos dois dos mais importantes.
Quando começa a dominar a fala exterior, a criança principia por uma palavra, passando depois a ligar dois ou três termos entre si; um pouco depois, progride das frases simples para outras mais complicadas, chegando por fim ao discurso coerente composto por uma série de frases dessas; por outras palavras, progride da parte para o todo. Relativamente ao significado em contrapartida, a primeira palavra da criança é uma frase completa. Semanticamente, a criança parte do todo, de um complexo significante e só mais tarde começa a dominar as unidades semânticas separadas, os significados das palavras e a subdividir o seu pensamento primitivamente indiferenciado nessas unidades. O seu aspecto externo e o aspecto semântico da linguagem desenvolvem-se em direções opostas — o primeiro do particular para o geral, da palavra para a frase e o outro do todo para o particular, da frase para a palavra.
Isto, em si, basta para mostrar como é importante distinguir o aspecto fonético do discurso do seu aspecto semântico. Como se movem em sentidos opostos, o seu desenvolvimento não é coincidente, mas isso não quer dizer que sejam independentes um do outro. Pelo contrário, a sua diferença é o primeiro estádio de uma estreita união.
De fato, o nosso exemplo revela a sua conexão interna tão claramente como a sua diferença. O pensamento das crianças, precisamente porque surge como um conjunto amorfo e indistinto, tem que encontrar a sua expressão numa palavra isolada; à medida que o seu pensamento se vai tornando mais diferenciado, a criança vai perdendo a possibilidade de se exprimir por meio de palavras isoladas e tem que construir um todo compósito. Inversamente, a progressão da linguagem em direção ao todo diferenciado numa frase, ajuda o pensamento da criança a progredir de conjuntos homogêneos para partes bem definidas. O pensamento e a palavra não são talhados no mesmo modelo: em certo sentido há mais diferenças do que semelhanças entre eles. A estrutura da linguagem não se limita a refletir como num espelho a estrutura do pensamento; é por isso que não se pode vestir o pensamento com palavras, como se de um ornamento se tratasse. O pensamento sofre muitas alterações ao transformar-se em fala. Não se limita a encontrar expressão na fala; encontra nela a sua realidade e a sua forma. Os processos evolutivos da fonética e da semântica são essencialmente idênticos, precisamente devido a seguirem sentidos inversos.
O segundo fato, que é tão importante como o primeiro, surge num período de desenvolvimento posterior. Piaget demonstrou que a criança utiliza orações subordinadas em que figuram porque, embora, etc., muito antes de compreender as estruturas significantes correspondentes a estas formas semânticas. A gramática precede a lógica. Também aqui, tal como nos nossos exemplos anteriores, a discrepância não exclui a unidade, antes lhe é necessária.
Nos adultos, a divergência entre o aspecto semântico e o aspecto fonético do discurso é ainda mais flagrante. A lingüística moderna que se guia pela psicologia, encontra-se familiarizada com este fenômeno, especialmente no que toca ao sujeito e ao predicado gramaticais e psicológicos. Por exemplo, na frase “o relógio caiu”, a ênfase e o significado podem variar com as situações. Suponhamos que noto que o relógio parou e pergunto, porque terá isto acontecido. A resposta é: “o relógio caiu”. O sujeito gramatical e psicológico coincidem: “o relógio” é a primeira idéia que existe na minha consciência; “caiu” é o que se diz do relógio. Mas se ouvir um barulho no quarto ao lado e indagar o que aconteceu, e receber a mesma resposta, o sujeito e o predicado psicológicos inverter-se-ão. Eu sabia que alguma coisa tinha caído — era disso que estávamos a falar. “O relógio” vem completar a idéia. Poder-se-ia trocar a frase por esta: “o que caiu foi o relógio”. Então o sujeito gramatical e o sujeito psicológico coincidiriam. No prólogo da sua peça O Duque Ernst von Schwaben, Uhland diz: “cenas sinistras desenrolar-se-ão perante os vossos olhares”. Psicologicamente, o sujeito é “desenrolar-se-ão”: o espectador sabe que vai ver o desenrolar de certos acontecimentos. A idéia adicional, o predicado, é “cenas sinistras”. Uhland queria dizer: “Aquilo que se desenrolará perante os vossos olhares é uma tragédia”. Qualquer parte de uma frase pode tornar-se o sujeito psicológico, a parte portadora da ênfase fundamental; por outro lado, por detrás de uma estrutura gramatical podem ocultar-se significados totalmente diferentes. O acordo entre o sujeito gramatical e o sujeito psicológico não é tão predominante como tendemos a presumir -- antes pelo contrário, é um requisito raramente satisfeito. Não são só o sujeito e o predicado que têm os seus duplos psicológicos, pois também o gênero, o número, o caso, o tempo, o modo, o grau gramaticais o possuem. Uma exclamação espontânea, que do ponto de vista gramatical é errada, pode ter encanto e valor estético. A correção absoluta só se consegue para lá da linguagem natural, na matemática. A nossa linguagem quotidiana oscila constantemente entre os ideais da harmonia matemática e os da harmonia imaginativa.
Vamos ilustrar a interdependência dos aspectos semânticos e gramaticais da linguagem citando dois exemplos que nos mostram que as variações da estrutura formal podem arrastar consigo alterações do significado de grande alcance.
Na tradução que fez da fábula “La Cigale et la Fourmi” (vi) de La Fontaine, Krylov substituiu a cigarra de La Fontaine por uma libelinha. Em francês, cigarra é uma palavra feminina, sendo portanto, adequada para simbolizar uma atitude leviana e despreocupada. A nuance perder-se-ia numa tradução literal, pois cigarra em russo, é masculino, Ao decidir-se por libelinha, que em russo é feminino, Krylov menosprezou a tradução literal em favor da forma gramatical necessária para dar o pensamento de La Fontaine (vii)
Tjutchev fez o mesmo na sua tradução do poema de Heine sobre um abeto e uma palmeira. Em alemão, abeto é uma palavra masculina e palmeira é uma palavra feminina, e o poema sugere o amor de um homem por uma mulher, mas em russo ambas árvores são femininas. Para manter a implicação, Tjutchev substituiu o abeto por um cedro, masculino. Lermontov, na sua tradução mais literal do mesmo poema, destituiu-o destes matizes poéticos e deu-lhe um significado essencialmente diferente, mais abstrato e mais generalizado. Um pormenor gramatical pode, em certas circunstâncias, modificar todo o propósito do que se diz.
Por detrás das palavras, há a gramática independente do pensamento, a sintaxe dos significados das palavras. A mais simples exclamação, não reflete uma correspondência rígida e constante entre som e significado, é, na realidade, muito pelo contrário, um processo. As expressões verbais não podem nascer completamente formadas, têm que se desenvolver gradualmente. Este complexo processo de transição do significado para o som tem também que se desenvolver e aperfeiçoar. A criança tem que aprender a distinguir entre a semântica e a fonética e a compreender a natureza da diferença entre uma e outra coisa. A princípio, começa por utilizar o pensamento e as formas verbais e os significados sem ter consciência deles como coisas distintas. Para a criança, a palavra é parte integrante do objeto que denota. Tal concepção parece ser característica da consciência lingüística primitiva. Todos conhecemos a velha história do rústico que afirmava que não lhe surpreendia que os sábios, com todos os instrumentos que possuíam, pudessem calcular o tamanho das estrelas e as suas trajetórias — o que lhe fazia espécie era como eles conseguiam saber o nome das estrelas. Algumas experiências simples mostram que as crianças em idade pré-escolar “explicam” o nome dos objetos pelos seus atributos. Segundo elas, um animal chama-se “vaca” porque tem cornos, bezerro, quando os seus cornos ainda são pequenos, cão”, porque é pequeno e não tem cornos; chama-se “carro” a determinado objeto porque não é animal. Quando se lhes pergunta se poderia trocar os nomes das coisas, chamando por exemplo, “tinta” a uma vaca e “vaca” à tinta, respondem que não, “porque a tinta é para escrever e a vaca dá leite”. Trocar os nomes significaria trocar as características específicas de cada objeto, tão inseparável é a conexão de ambos no espírito da criança. Numa experiência disse-se às crianças que em determinado jogo se chamaria “vaca” a um cão. Eis a seguir um exemplo típico de perguntas e respostas que ocorreram:
— Mas as vacas têm cornos?
— Têm.
— Mas então não te lembras que os cães é que são vacas? Ora vê bem: os cães têm cornos?
— Pois claro. Se são vacas, se lhes chamamos vacas, têm que ter cornos. Têm que ser uma espécie de vacas com corninhos.
Podemos ver pois como, para as crianças, é difícil separar o nome de um objeto dos seus atributos, que aderem ao nome mesmo quando este é transferido, como as coisas possuídas seguindo o seu dono.
A fusão dos dois planos da imagem, o plano semântico e o plano vocal, começa a desarticular-se à medida que a criança cresce e a distância entre um e outro vai aumentando gradualmente. Cada estádio no desenvolvimento das palavras implica uma inter-relação específica entre os dois planos. A capacidade da criança para comunicar através da linguagem encontra-se diretamente relacionada com a diferenciação dos significados das palavras no seu discurso e na sua consciência.
Para compreendermos isto teremos que recordar uma característica fundamental da estrutura dos significados das palavras. Na estrutura semântica de uma palavra estabelecemos a distinção entre referente e significado: correspondentemente, distinguimos o nominativo de uma palavra da sua função significante. Quando comparamos estas relações funcionais e estruturais nos diversos estádios de desenvolvimento, isto é, no estádio primitivo, no estádio intermédio e no estádio mais desenvolvido, deparamos com esta regularidade genética: a princípio só existe a função nominativa; e, semanticamente, só existe a referência objetiva; a independência entre a significação e a nomeação, assim como a independência entre o significado e a referência só surgem posteriormente e desenvolvem-se segundo as trajetórias que tentamos detectar e descrever.
Só quando este desenvolvimento se encontra completo é que a criança se torna totalmente capaz de formular o seu pensamento e compreender o pensamento dos outros. Até essa altura, a utilização que dá às palavras coincide com a que lhes dão os adultos na sua referência objetiva, mas não no seu significado.

III

Temos que levar a nossa investigação a planos mais profundos e explorar o plano do discurso interno que se encontra por detrás do plano semântico. Examinaremos aqui alguns dos dados que obtivemos em experiências especialmente dedicadas ao assunto. Não poderemos compreender integralmente a relação entre o pensamento e a palavra em toda a sua complexidade se não tivermos uma compreensão clara da natureza psicológica do discurso interno. No entanto, de todos os problemas relacionados com o pensamento e a linguagem, este é talvez o mais complicado, sobrecarregado como se encontra de toda a espécie de mal entendidos terminológicos e doutro gênero.
Tem-se aplicado a expressão discurso interior ou endofasia a vários fenômenos, e autores há que discutem entre si acerca de coisas diferentes e têm-se travado muitas discussões entre autores que chamam o mesmo nome a coisas distintas. Originalmente, parece que se chamava discurso interior à memória verbal: exemplo disto, seria a recitação silenciosa de um poema sabido de cor. Nesse caso, o discurso interno difere do externo apenas da mesma maneira que a imagem ou idéia de um objeto difere do objeto real. Era neste sentido que entendiam o discurso interior os autores franceses que tentaram descobrir como as palavras são reproduzidas pela memória — como imagens auditivas, visuais, motoras ou sintéticas. Veremos que a memória das palavras, a memória verbal é realmente uma das componentes, um dos elementos constituintes do discurso interior, mas não o único.
Numa segunda interpretação, vê-se o discurso interior como um discurso externo truncado — como “linguagem sem som” (Mueller) ou “discurso sub-vocal” (Watson). Bekhterev definiu-o como um reflexo do discurso inibido da sua parte motora. Tal explicação não é suficiente. A “locução” silenciosa das palavras não é equivalente ao processo integral do discurso interior.
A terceira definição, pelo contrário é demasiado ampla. Para Goldstein (12)(13)(12, 13), a expressão recobre tudo que precede o ato motor da fala, incluindo os “motivos do discurso” de Wundt e a indefinível experiência discursiva não motora, não sensível — isto é, todo o aspecto interior do discurso, de qualquer atividade discursiva. É difícil aceitar a identificação do discurso interior com uma experiência interior não articulada, na qual os planos estruturais separáveis e identificáveis desapareceriam sem deixar traços. Esta experiência central é comum a toda e qualquer atividade lingüistica e só por esta razão, a interpretação de Goldstein não é adequada a essa função específica, única e exclusiva que merece o nome de discurso interior.
Levada até ás suas últimas conseqüências lógicas, o ponto de vista de Goldstein conduzir-nos-ia à tese segundo a qual o discurso interior não é de maneira nenhuma linguagem, mas antes uma atividade intelectual e volitiva-afetiva, pois engloba os motivos do discurso e o pensamento que se exprime por palavras.
Para obtermos uma descrição adequada do discurso interior, temos de partir do pressuposto de que se trata de uma formação específica que tem as suas leis próprias e mantém relações complexas com as outras formas de atividade lingüística. Antes de podermos estudar a relação entre o discurso interior e o pensamento, por um lado, e a linguagem, por outro lado, teremos que determinar as características e as funções que lhe são próprias.
O discurso interior é um discurso para o próprio locutor; o discurso externo é um discurso para os outros. Seria na verdade surpreendente que uma diferença de funcionamento tão radical não afetasse as estruturas de ambos os tipos de discurso. A ausência de vocalização, por si só, não é mais do que uma conseqüência da natureza específica do discurso interior e não é, nem um antecedente do discurso exterior, nem a sua reprodução na memória, antes é em certo sentido, o contrário do discurso exterior. Este último consiste em verter os pensamentos em palavras, consiste na sua materialização e na sua objetivização. Com o discurso interior, pelo contrário, o processo é invertido: o discurso volta-se para dentro, para o pensamento. Por conseqüência as suas estruturas têm que ser diferentes uma da outra.
O domínio do discurso interior é um dos mais difíceis de investigar. Manteve-se praticamente inacessível até se terem encontrado formas de aplicar os métodos genéticos de experimentação. Piaget foi o primeiro investigador a preocupar-se com o discurso egocêntrico das crianças e a ver a sua importância teórica, mas continuou cego à característica mais importante do discurso egocêntrico — a sua relação genética com o discurso interior — e isto veio distorcer a sua interpretação das suas funções e estrutura. Fizemos dessa relação problema central do nosso estudo, e isso permitiu-nos investigar a natureza do discurso interior com invulgar exaustão. Um certo número de observações e considerações levou-nos a concluir que o discurso egocêntrico é um estádio de desenvolvimento que precede o discurso interior. Ambos preenchem funções intelectuais; as suas estruturas são semelhantes; o discurso egocêntrico desaparece por alturas da idade escolar, quando o discurso interior começa a desenvolver-se. De tudo isto inferimos que se transformam um no outro.
Se esta transformação se dá, então o discurso egocêntrico fornece-nos a chave para compreendermos o discurso interior. Uma das vantagens que advêm de se utilizar o discurso egocêntrico para abordar o discurso interior é a de que aquele é acessível à observação e à experimentação. É ainda um discurso vocalizado, audível, isto é, um discurso externo no seu modo de expressão, mas é ao mesmo tempo um discurso interno na sua função e na sua estrutura. Para estudarmos um processo interno temos que exteriorizá-lo experimentalmente, relacionando-o com outra qualquer atividade; só então será possível a análise funcional objetiva. Na realidade, o discurso egocêntrico é uma experiência natural deste tipo.
Este método tem ainda uma outra grande vantagem: como o discurso egocêntrico pode ser estudado no momento em que algumas das suas características se estão desvanecendo enquanto outras novas se vão formando, estamos em condições de avaliar que traços são essenciais para o discurso interior e que traços são apenas temporários, determinando assim o objetivo deste movimento que progride do discurso egocêntrico para o discurso interior — isto é, a natureza do discurso interior.
.Antes de passarmos aos resultados obtidos por este método, examinaremos rapidamente a natureza do discurso egocêntrico, sublinhando as diferenças entre o nosso método e o de Piaget. Piaget defende que o discurso egocêntrico da criança é uma expressão direta do egocentrismo do seu pensamento, o qual, por seu turno, é um compromisso entre o autismo primário do seu pensamento e a sua socialização gradual. À medida que a criança cresce, o autismo definha e a socialização desenvolve-se, levando a um desvanecimento do egocentrismo no seu pensamento e no seu discurso.
Segundo a concepção de Piaget, a criança, pelo seu discurso egocêntrico, não se adapta ao pensamento dos adultos. O seu pensamento mantém-se integralmente egocêntrico; isto torna a sua conversa totalmente incompreensível para os outros. O discurso egocêntrico não tem qualquer função no pensamento ou na atividade realística da criança — limita-se a acompanhá-los. E, como é uma expressão do pensamento egocêntrico da criança, desaparece simultaneamente com o seu egocentrismo. Do seu auge de desenvolvimento no começo do desenvolvimento infantil, o discurso egocêntrico cai a zero no limiar da idade escolar. A sua história caracteriza-se mais pela involução do que pela evolução. Não tem futuro.
Na nossa concepção, o discurso egocêntrico é um fenômeno de transição entre o funcionamento inter-físico e o funcionamento intra-físico, quer dizer, da atividade social e coletiva da criança para a sua atividade mais individualizada — modelo de desenvolvimento este que é comum a todas as funções psicológicas mais elevadas.
O discurso de si para si tem origem na diferenciação do discurso para os outros. Na medida em que a trajetória principal do desenvolvimento psicológico da criança é uma trajetória de progressiva individualização, esta tendência reflete-se na função e na estrutura do seu discurso.
Os nossos estudos experimentais indicam que a função do discurso egocêntrico é a mesma da do discurso interior: não se limita a acompanhar a atividade da criança: está ao serviço da orientação mental, da compreensão consciente; ajuda-a a vencer as dificuldades; é discurso de si para si, que se encontra íntima e utilitariamente relacionada com o pensamento da criança: o seu destino é muito diferente daquele que lhe consigna Piaget. O discurso egocêntrico desenvolve-se segundo uma curva ascendente e não segundo uma curva descendente: segue uma evolução não uma involução. No termo dessa evolução transforma-se em discurso interior.
A nossa hipótese tem várias vantagens sobre a de Piaget: ela explica a função e o desenvolvimento do discurso interior e, em particular, o seu súbito incremento, quando a criança se defronta com dificuldades que exigem consciência e reflexão — fato que as nossas experiências puseram a nu e que a teoria de Piaget não pode explicar. Mas a maior vantagem da nossa teoria consiste no fato de nos proporcionar uma resposta satisfatória a uma situação paradoxal descrita pelo próprio Piaget. Para Piaget, a diminuição quantitativa do discurso egocêntrico à medida que a criança vai crescendo significa o desaparecimento dessa mesma forma de discurso. Se assim fosse, seria de esperar que as suas peculiaridades estruturais declinassem também: é difícil acreditar que o processo só afetasse a sua quantidade e não a sua estrutura interna. O discurso da criança torna-se infinitamente menos egocêntrico entre os três e os sete anos. Se as caraterísticas do discurso egocêntrico que o tornam incompreensível para os outros têm realmente as suas raízes no egocentrismo, deveriam tornar-se menos patentes à medida que esta forma de discurso se vai tornando menos freqüente; o discurso egocêntrico deveria ir-se assemelhando ao discurso social, tornando-se progressivamente mais inteligível. Mas o que é que acontece? Será a fala de uma criança de três anos mais difícil de seguir do que a de uma criança de sete anos? Pelas nossas investigações chegamos à conclusão de que os traços do discurso egocêntrico, responsáveis pela sua ininteligibilidade se encontram no seu ponto de desenvolvimento mais baixo aos três anos, atingindo o seu maior desenvolvimento aos sete anos. Desenvolve-se em sentido inverso ao discurso egocêntrico. Enquanto este último vai diminuindo e atinge uma incidência nula por alturas da idade escolar, as características estruturais tornam-se progressivamente mais e mais pronunciadas
Este fato lança uma nova luz sobre a diminuição quantitativa do discurso egocêntrico, que é a pedra de toque da teoria de Piaget.
Que significa esta diminuição7 As características peculiares do discurso de si para si e a sua diferenciação relativamente ao discurso exterior aumentam com a idade. Que diminuirá então? Apenas um dos seus aspectos: a vocalização. Quer isto dizer que o discurso egocêntrico como um todo se encontra em vias de desaparecer'? Estamos em crer que tal não se passe, porque, nesse caso, como poderíamos explicar o desenvolvimento das características funcionais e estruturais do discurso egocêntrico? Por outro lado, tal desenvolvimento é perfeitamente compatível com a diminuição da vocalização — na verdade, clarifica até o seu significado. O seu rápido declínio e o rápido desenvolvimento das outras características só na aparência são contraditórios.
Para explicarmos isto vamos partir de um fato inegável, experimentalmente demonstrado. As qualidades funcionais e estruturais do discurso egocêntrico tornam-se mais marcadas à medida que a criança se desenvolve. Aos três anos a diferença entre o discurso social e o discurso egocêntrico da criança é nula. Aos sete anos, temos um discurso que pela sua estrutura e pela sua função é totalmente diferente do discurso social. Deu-se uma diferenciação dos dois discursos. Isto é um fato — e sabe-se bem que os fatos são de difícil refutação.
Uma vez isto aceite, tudo o resto daqui decorre automaticamente. Se as peculiaridades funcionais e estruturais do discurso egocêntrico o vão isolando progressivamente do discurso exterior, então o seu aspecto vocal deverá desvanecer-se; e é isto, precisamente, o que acontece entre os três e os sete anos de idade. Com o progressivo isolamento do discurso de si para si a sua vocalização torna-se desnecessária e perde significado e, dado que as suas peculiaridades estruturais se vão desenvolvendo, também impossível. O discurso de si para si não pode achar expressão no discurso externo. Quanto mais independente e autônomo o discurso egocêntrico se torna, mais debilmente se desenvolve nas suas manifestações externas. No termo do processo, separa-se integralmente do discurso para os outros, deixa de ser vocalizado e parece nessa altura que está a morrer.
Mas isso é uma ilusão. Interpretar o coeficiente de profundidade do discurso egocêntrico como um sinal de que este tipo de discurso está a morrer é como dizer que a criança deixa de contar quando cessa de utilizar os dedos para passar a calcular mentalmente. Na realidade., para lá dos sintomas de dissolução, oculta-se um desenvolvimento progressivo, o nascimento de uma nova forma de discurso.
O declínio da vocalização do discurso egocêntrico é sinal de que a criança se vai progressivamente abstraindo do som, e vai adquirindo uma nova capacidade, a faculdade de “pensar as palavras” em vez de as pronunciar. Tal é o significado positivo do grau de aprofundamento do discurso egocêntrico. A curva descendente significa uma evolução em direção do discurso interior.
Podemos ver que todos os fatos conhecidos relativamente às características funcionais, genéticas e estruturais do discurso egocêntrico apontam para uma e mesma coisa: tal discurso evolui para o discurso interior. A história do seu desenvolvimento só pode ser compreendida como um progressivo desabrochar das características do discurso interior.
Estamos em crer que tal fato corrobora a nossa hipótese acerca da origem e da natureza do discurso egocêntrico. Para convertermos a nossa hipótese numa certeza, temos que idealizar uma experiência suscetível de nos mostrar qual das duas interpretações é a correta. Quais são os dados de que dispomos para esta experiência crítica?
Formulemos de novo as teorias sobre as quais temos de tomar uma decisão. Piaget crê que o discurso egocêntrico é gerado pela insuficiente socialização do discurso e que só se pode desenvolver de uma maneira: diminuindo e acabando por morrer. O seu ponto culminante fica para trás, no passado. O discurso interior é algo de novo, importado do exterior paralelamente à socialização. O seu ponto culminante está por vir. Evolui para o discurso interior.
Para obtermos provas a favor ou contra um ou outro dos dois pontos de vista, temos que colocar a criança alternadamente em situações experimentais que encorajem o discurso social e em situações que o desencorajem, observando como as alterações afetam o discurso egocêntrico. Consideramos esta experiência um experimentum crucis pelas seguintes razões.
Se a fala egocêntrica da criança resulta do seu pensamento egocêntrico e da insuficiência de socialização, então qualquer debilitamento dos elementos sociais no quadro experimental, qualquer fator que aumente o isolamento da criança relativamente ao grupo conduzirá necessariamente a um súbito aumento do discurso egocêntrico. Mas se este último resulta de uma insuficiente diferenciação entre o discurso para si próprio e o discurso para os outros, então as mesmas alterações conduzirão ao seu declínio.
Tomamos como ponto de partida para a nossa experiência três observações do próprio Piaget: 1) o discurso egocêntrico só surge na presença de outras crianças implicadas na mesma atividade, e não quando a criança está sozinha; isto é, num monólogo coletivo. 2) a criança tem a ilusão de que este discurso egocêntrico que não é dirigido para ninguém, é compreendido pelos que a cercam. 3) o discurso egocêntrico tem o caráter de discurso exterior. Não é inaudível nem murmurado. Estas características não são com certeza fruto do acaso. Do ponto de vista da própria criança, o discurso egocêntrico ainda não se diferencia do discurso social. Ocorre nas condições objetivas e subjetivas do discurso social e pode ser considerado como um equivalente de insuficiente isolamento entre a consciência individual da criança e o todo social.
Na nossa primeira série de experiências (46)(47)(46, 47), tentamos destruir a ilusão da criança de que era compreendida. Após termos medido o grau de egocentricidade do discurso numa situação semelhante à das experiências de Piaget, pusemos a criança numa situação diferente e nova: com crianças surdas-mudas ou com crianças que falavam uma língua estrangeira. O quadro experimental mantinha-se inalterado relativamente a todas as outras condições. O coeficiente de discurso egocêntrico tornou-se nulo na maioria dos casos e nos restantes, desceu em média para um número que era um oitavo do primitivo. Isto prova que a ilusão da compreensão não é um simples epifenômeno do discurso egocêntrico, antes se encontra funcionalmente correlacionado com aquele. Os nossos resultados devem parecer paradoxais do ponto de vista das teorias de Piaget: quanto mais débil é o contato entre a criança e o grupo (quer dizer, quanto menos a situação social a força a ajustar os seus pensamentos aos outros e a fazer uso do discurso social) mais livremente deverá manifestar-se o egocentrismo do seu discurso e do seu pensamento. Mas, do ponto de vista da nossa hipótese, o significado destas descobertas é claro: o discurso egocêntrico, que resulta do insuficiente grau de diferenciação entre o discurso para si próprio e do discurso para os outros, desaparece quando o sentimento de ser compreendido, que é essencial para o discurso social, se encontra ausente.
Na segunda série de experiências, o fator variável era a possibilidade do monólogo coletivo. Após termos medido o coeficiente de discurso egocêntrico de cada criança em situações que permitiriam o monólogo coletivo, colocamo-las numa situação que o tornava impossível — num grupo de crianças que lhe são estranhas ou então numa mesa separada num canto da sala; noutros casos deixava-se a criança trabalhar completamente só, fazendo-se com que o próprio experimentador abandonasse a sala. Os resultados desta série estão em concordância com os primeiros resultados. A impossibilidade do monólogo coletivo teve por conseqüência uma queda do coeficiente de egocentricidade e do discurso, embora não de forma tão flagrante como no primeiro caso — raramente se tornou nulo e em média baixou para um sexto do número inicial. Os diferentes métodos de impossibilitar o monólogo coletivo não tiveram a mesma eficácia no respeitante à redução do coeficiente de discurso egocêntrico. No entanto, a tendência para a redução desse coeficiente era patente em todas as variantes da experiência. A exclusão do fator coletivo não libertou completamente o discurso egocêntrico pelo contrário, inibiu-o. A nossa hipótese foi mais uma vez confirmada.
Na terceira série de experiências, o fato variável era a qualidade vocal do discurso egocêntrico. Do lado de fora da sala onde a experiência se desenrolava, encontrava-se instalada uma orquestra que tocava tão alto ou fazia-se tanto barulho, que não só todas as outras vozes, mas também a da própria criança ficavam afogadas numa variante de experiência, proibia-se expressamente à criança falar alto, permitindo-se-lhe apenas que murmurasse. Mais uma vez o coeficiente de discurso egocêntrico baixou, sendo a relação entre o seu número e o número primitivo de 5:1. Também neste caso os diferentes métodos não tinham a mesma eficácia, mas a tendência de base encontrava-se invariavelmente presente.
O propósito de todas estas séries de experiências era eliminar as características do discurso egocêntrico que se assemelham com o discurso social. Chegamos à conclusão que tal levava invariavelmente a um abrandamento do discurso egocêntrico. É portanto lógico pressupor que o discurso egocêntrico é uma forma que se desenvolve a partir do discurso social e que ainda não se encontra separada desta nas suas manifestações, embora já seja distinta nas suas funções e estrutura.
A discordância existente entre nós e Piaget no tocante a esta questão tornar-se-á clara com o seguinte exemplo: estou sentado na minha secretária e falo para uma pessoa que se encontra colocada por detrás de mim, não me sendo possível vê-la; se essa pessoa sair da sala sem eu dar por ela, continuo a falar, julgando que ela continua a ouvir-me e a compreender-me. Externamente, estou a falar de mim para mim, mas psicologicamente o meu discurso continua a ser social. Do ponto de vista de Piaget passa-se o contrário com a criança: o seu discurso egocêntrico é um discurso de si para si; apenas tem a aparência de um discurso social, tal como o meu discurso dava a impressão de ser egocêntrico. Do nosso ponto de vista, a situação é muito mais complicada: subjetivamente, o discurso egocêntrico da criança já possui a sua função específica — nessa medida é independente do discurso social; no entanto, a sua independência não é completa, porque não é sentido como um discurso interior e a criança não o distingue do discurso para os outros. Também objetivamente é diferente do discurso social, mas também neste caso tal não se verifica completamente, pois o discurso só funciona em situações sociais. Mas tanto subjetiva como objetivamente, o discurso egocêntrico representa uma transição entre o discurso para os outros e o discurso de si para si. Já tem a função do discurso interior, mas, pela sua expressão, continua a ser semelhante ao discurso social.
A investigação do discurso egocêntrico preparou o terreno para a compreensão do discurso interior, que passaremos a analisar seguidamente.

IV

As nossas experiências convenceram-nos de que se deve encarar o discurso interior, não como um discurso sem som, mas como uma função discursiva totalmente diferente. O seu traço principal é a sua sintaxe muito particular. Em comparação com o discurso exterior, o discurso interior parece desconexo e incompleto.
Esta observação não é nova. Todos os que estudaram o discurso interior, mesmo os que o abordaram dum ponto de vista behaviourista notaram esta característica. O método de análise genética permite-nos ir além de uma simples descrição dessa característica. Aplicamos este método e verificamos que, à medida que o discurso interior se desenvolve, evidencia uma tendência para a forma de abreviação totalmente específica: nomeadamente, a omissão do sujeito de uma frase e de todas as palavras com ele relacionadas, embora preservando o predicado. Esta tendência para a predicação surge em todas as nossas experiências com tal regularidade que somos forçados a admitir que se trata da forma sintática fundamental do discurso interior.
Para compreendermos esta tendência poderá ser-nos útil recordarmos certas situações em que o discurso exterior apresenta uma estrutura semelhante. A predicação pura ocorre no discurso exterior em duas circunstâncias: quando se trata de uma resposta ou quando o sujeito da oração já é conhecido de antemão de todos os participantes da conversa. A resposta à pergunta: “Quer uma chávena de chá?” não é nunca: “Não, não quero uma chávena de chá”, mas um simples “Não”. Obviamente, tal sentença só é possível porque o sujeito já é conhecido de ambas as partes. À pergunta: “O teu irmão leu este livro?” ninguém responde “Sim, o meu irmão leu este livro”. A resposta é um curto “Leu”, ou “Sim, leu”. Imaginemos agora que um grupo de pessoas está à espera do autocarro: ninguém dirá, ao ver que o autocarro se aproxima: “O autocarro de que estamos à espera aproxima-se”. O mais provável é a frase consistir num abreviado: “Vem aí”, ou qualquer expressão do gênero, pois o sujeito é evidente, dada a situação. Muito freqüentemente, as frases abreviadas são causa de confusão. O ouvinte pode relacionar a frase com um sujeito que lhe ocupa o espírito duma forma predominante e não com um sujeito que o emissor quer significar. Se os pensamentos das duas pessoas coincidirem, pode-se conseguir um perfeito entendimento pelo uso dos simples predicados, mas se estiverem a pensar em coisas diferentes, o mais certo é haver um mal-entendido entre eles.
Nos romances de Tolstoy encontramos exemplos muito bons de condensação do discurso exterior e sua redução a predicados: tais exemplos freqüentemente incidem sobre a psicologia do conhecimento: “Ninguém ouviu claramente o que ele disse, mas Kitty compreendeu-o. Compreendeu-o porque o seu espírito estava constantemente a observar as suas necessidades” (Anna Karenina, Parte V, Cap. 18). Poderíamos dizer que os seus pensamentos ao seguirem os pensamentos do moribundo, continham o sujeito a que a sua palavra se referia e que ninguém mais compreendeu. Mas talvez o exemplo mais flagrante seja a declaração de amor entre Kitty e Levin por intermédio das letras iniciais:
“Há muito que desejava perguntar-lhe uma coisa.
— Faça favor.
— É o seguinte — disse ele, escrevendo as iniciais Q r: n p s, q d n m o n?. Estas letras queriam dizer: “Quando respondeu: não pode ser, queria dizer naquele momento, ou nunca?” Parecia impossível que ela pudesse compreender a complicada frase.
— Compreendo — disse ela.
— Que palavra é esta? — perguntou ele, apontando para o n que significava “nunca”.
— A palavra é “nunca” — disse ela, — mas não é verdade. Levin apagou rapidamente o que tinha escrito, estendeu-lhe o giz e levantou-se. Ela escreveu: N m, n p t r d m.
A sua face resplandeceu: tinha compreendido. A frase significava: “Naquele momento, não poderia ter respondido doutra maneira”.
Kitty escreveu as iniciais seguintes: p q p e e p o q s t p. Isto queria dizer: para que pudesses esquecer e perdoar o que se tinha passado.
Ele tomou o giz com mãos tensas e trêmulas, quebrou-o e escreveu as iniciais do seguinte: “Não tenho nada a esquecer e a perdoar. Nunca deixei de te amar”.
— Compreendo — sussurrou ela.
O rapaz sentou-se e escreveu uma longa frase. Ela compreendeu-a integralmente sem lhe perguntar se estava a ir bem, pegou no giz e respondeu-lhe imediatamente. Ele esteve um longo intervalo sem compreender o que tinha sido escrito e manteve olhar fixo no dela O seu espírito encontrava-se tonto de felicidade. Sentia-se completamente incapaz de deduzir as palavras que ela indicava; mas nos olhos radiantes e felizes da rapariga leu tudo o que precisava de saber. E escreveu três letras. Não tinha ainda acabado de escrever e já Kitty estava lendo por sob a sua mão e escrevia a resposta: “Sim”. Tinham dito tudo na conversação que tinham mantido: que ela o amava e que diria ao pai e à mãe que ele haveria de dirigir-se-lhes na manhã seguinte”. (Anna Karenina, Parte V, Cap. 13).
Este exemplo tem um interesse psicológico extraordinário, porque. tal como todo o episódio entre Kitty e Levin, Tolstoy o extraiu da sua própria vida. Foi precisamente desta maneira que Tolstoy comunicou a sua mulher o seu amor por ela. Estes exemplos mostram claramente que quando os pensamentos dos interlocutores são os mesmos, o papel da fala se reduz ao mínimo. Noutro ponto, Tolstoy assinala que entre pessoas que vivem num estreito contato psicológico, tal comunicação por meio do discurso abreviado se torna a regra, e deixa de ser a exceção.
“Agora, Levin habituara-se a exprimir o seu pensamento integralmente sem qualquer problema sem se preocupar em vertê-lo nas palavras exatas. Ele sabia que a sua mulher, nos momentos plenos de amor como este, compreenderia o que ele queria dizer, bastando-lhe um indício; e ela compreendia, de fato” (Anna Karenina, parte VI, Cap. 3).
A tendência para a predicação que surge no discurso interior quando os dois interlocutores sabem do que se trata é caracterizada por uma sintaxe simplificada, pela condensação e por um número de palavras extremamente reduzido. As confusões plenas de comicidade que se dão quando os pensamentos das pessoas seguem direções diferentes estão em completo contraste com este tipo de compreensão. A confusão a que isto pode levar é bem dada por este pequeno poema:
Dois surdos são julgados por um surdo juiz.
“Este roubou-me a minha vaca”, um deles diz,
“Alto aí, essa terra”, o segundo replica,
“Sempre foi do meu pai e comigo é que fica!”
E o juiz: “Mas que vergonha, tanta briga!
“A culpa não é vossa, é da rapariga”.
A conversação de Kitty com Levin e o julgamento do surdo são casos extremos, quer dizer, são na realidade os dois pólos extremos do discurso exterior. Um deles exemplifica a compreensão mútua que se pode conseguir através de um discurso completamente abreviado quando o sujeito que ocupa os dois espíritos é o mesmo; o outro, exemplifica a incompreensão total, mesmo com um discurso completo, quando os pensamentos das pessoas vagueiam em diferentes direções. Não são apenas os surdos que não conseguem compreender-se; tal acontece também com quaisquer duas pessoas que dão um significado diferente à mesma palavra ou que defendem pontos de vista diferentes. Como Tolstoy notou, aqueles que estão acostumados ao pensamento solitário e independente não apreendem facilmente os pensamentos de outrem e são muito parciais relativamente aos seus próprios: mas as pessoas que mantêm um contato estreito apreendem os significados complicados que transmitem mutuamente por meio de uma comunicação “lógica e clara” levada a cabo com o menor número de palavras.
Depois de termos examinado as abreviaturas no discurso exterior, podemos agora, enriquecidos, debruçar-nos sobre o mesmo fenômeno no discurso interior, em que não é a exceção, mas a regra. Será instrutivo comparar as abreviaturas nos discursos orais, interiores e escritos. A comunicação por escrito repousa sobre o significado formal das palavras e, para transmitir a mesma idéia, exige uma quantidade de palavras muito maior do que a comunicação oral. Dirige-se a um interlocutor ausente que raramente tem presente no espírito o mesmo sujeito que quem escreve. Por conseguinte, terá que ser um discurso completamente desenvolvido; a diferenciação sintática atinge a sua máxima expressão e utilizam-se expressões que soariam como não naturais na conversação oral. A expressão de Griboedov “ele fala como escreve” refere-se ao efeito estranho provocado pelas construções elaboradas quando utilizadas na linguagem na fala do dia a dia.
A natureza multifuncional da linguagem, que tem atraído a atenção aturada dos lingüistas, já tinha sido assinalada por Humboldt no tocante à poesia e à prosa — duas formas muito diferentes pela sua função e também pelos meios que mobilizam. Segundo Humboldt, a poesia é inseparável da música, ao passo que a prosa depende inteiramente da linguagem e é dominada pelo pensamento. Consequentemente, cada uma destas formas tem a sua própria dicção, a sua própria gramática, a sua própria sintaxe. Esta concepção é de primeiríssima importância, embora nem Humboldt, nem os que desenvolveram o seu pensamento tenham compreendido completamente todas as suas implicações. Limitavam-se a estabelecer a distinção entre poesia e prosa e, nesta última, entre a troca de idéias e a conversação vulgar, isto é, a simples troca de informações ou a cavaqueira convencional. Há outras importantes distinções funcionais no discurso. Uma delas e a distinção entre monólogo e diálogo. O discurso interior e o discurso escrito representam o monólogo; o discurso oral, na maioria dos casos, representa o diálogo.
O diálogo pressupõe sempre, da parte dos interlocutores, um conhecimento do assunto suficiente para permitir o discurso abreviado e, em certas condições, as frases puramente predicativas. Também pressupõe que todas as pessoas estão em condições se ver os seus interlocutores, as suas expressões faciais e os gestos que fazem e de ouvir o tom de voz. Já discutimos as abreviaturas e passaremos a considerar neste ponto apenas o aspecto auditivo, utilizando um exemplo clássico, extraído do “Diário de um Escritor”, de Dostoyevski, para mostrar o quanto a entoação ajuda a compreender as diferenciações sutis dos significados das palavras.
Dostoyevski relata uma conversação de bêbados inteiramente constituída por uma palavra irreproduzível por escrito:
Uma noite de domingo aconteceu ter-me abeirado de um grupo de seis jovens trabalhadores bêbados, tendo ficado a uns quinze passos deles. Subitamente apercebi-me de que conseguiam exprimir todos os seus pensamentos, sentimentos e até todo um encadeado de raciocínios por meio dessa única palavra, que, ainda por cima, é extremamente breve. Um dos jovens disse-a de uma forma rude e enérgica para exprimir o seu completo desacordo com algo de que todos tinham estado a falar. Outro responde com o mesmo nome, mas num tom e num sentido totalmente diferentes — exprimindo as suas dúvidas sobre os fundamentos da atitude negativa do primeiro. Eis senão quando um terceiro se exalta contra o primeiro, irrompendo abruptamente na conversação e gritando excitadamente a mesma palavra, mas desta vez como se fora uma praga ou uma obscenidade. Aqui o segundo parceiro voltou a interferir, zangado com o terceiro, o agressor, retendo-o, como querendo dizer: “Tens alguma coisa que te pôr às marradas? Estávamos a discutir os assuntos calmamente e logo vens tu, metes-te, e começas logo a praguejar!” E disse todo este pensamento numa só palavra, a mesma venerável palavra; só que desta vez também levantou a mão, pondo-a sobre o ombro do companheiro. Subitamente, um quarto, o mais novo do grupo, que até àquele momento se tinha mantido silencioso, como provavelmente tivesse encontrado repentinamente uma solução para a dificuldade inicial donde partira a discussão, levantou a mão num transporte de alegria e gritou ... Eureka, será isto? Terei encontrado a solução? Não, nem “Eureka”, nem “encontrei a solução”, repetiu a mesma palavra irreproduzível, uma palavra, uma simples palavra, mas com êxtase, numa explosão de comprazimento — manifestação essa provavelmente um pouco exagerada, porque o sexto membro do grupo, o mais velho deles, sujeito de aparência soturna, não gostou da coisa e cortou cerce a alegria infantil do outro, dirigindo-se-lhe num tom de baixo solene e exortativo e repetindo ... sim, repetindo exatamente a mesma palavra, a mesma palavra proibida em presença de senhoras mas que naquele momento queria dizer claramente “Para que são esses berros sem sentido?”. Assim, sem terem proferido mais nenhuma palavra, nem uma sequer, repetiram aquela elocução querida seis vezes de enfiada, seis vezes sucessivas e entenderam-se perfeitamente. (Diário de Um Escritor, ano de 1873).
A inflexão revela o contexto psicológico em que se deve compreender determinada palavra. Na história de Dostoyevsky, tratava-se de uma negação de desafio, num dos casos, de uma dúvida, noutro, de ira, no terceiro. Quando o contexto é tão claro como neste exemplo, torna-se realmente possível transmitir todos os pensamentos, todos os sentimentos e até toda uma cadeia de raciocínios com uma só palavra.
No discurso escrito, como o tom de voz e o conhecimento do assunto não são possíveis, somos obrigados a utilizar muitas palavras e a utilizarmos essas palavras mais exatamente. O discurso escrito é a forma de discurso mais elaborada. Alguns lingüistas consideram que o diálogo é a forma natural do discurso ora!, a forma em que a linguagem patenteia completamente toda a sua natureza, e que o monólogo é em grande medida artificial. A investigação psicológica não nos deixa grandes dúvidas de que, na realidade, o monólogo é a forma mais elevada, mais complexa, a forma que historicamente se desenvolve mais tarde. No momento presente, contudo, só nos interessa estabelecer qualquer comparação no tocante à tendência para a elipse.
A velocidade do discurso oral não se propicia a um processo complicado de formulação — e não deixa tempo para deliberações e opções. O diálogo implica a expressão imediata não pré-determinada. É constituído por respostas e réplicas: é uma cadeia de reações. Em comparação com isto, o monólogo é uma formação complexa dando ao seu autor tempo e vagar para uma cuidada e consciente elaboração lingüística.
No discurso escrito, ao qual faltam os apoios situacionais, tem que se conseguir a comunicação por recurso exclusivo às palavras e suas combinações. Isto exige que a atividade discursiva assuma formas complicadas — e daí o emprego dos rascunhos. A evolução dos rascunhos para a versão final reproduz o nosso processo mental. O planeamento tem uma função importante no discurso escrito, mesmo quando não nos socorremos dum verdadeiro rascunho. Habitualmente, dizemos a nós próprios o que vamos escrever; trata-se também de um rascunho, embora apenas em pensamento. Como tentamos mostrar no capítulo precedente, este rascunho mental é um discurso interior. Como o discurso interior funciona como rascunho não só para o discurso escrito mas também para o discurso oral, passaremos agora a comparar ambas estas formas com o discurso interior, no tocante à tendência para a elipse e para a predicação.
Esta tendência, que não existe no discurso escrito e só muito raramente surge no discurso oral, aparece sempre no discurso interior. A predicação é a forma usual do discurso interior; psicologicamente, este é exclusivamente constituído por predicados. A omissão dos sujeitos é uma lei do discurso interior, exatamente na mesma medida em que a obrigatoriedade da presença do sujeito e do predicado constitui uma lei do discurso escrito.
Este fato experimentalmente estabelecido tem uma explicação: é que os fatores que facilitam a pura predicação encontram-se invariável e obrigatoriamente presentes no discurso interior. Sabemos aquilo em que estamos a pensar — isto é, sabemos já sempre quais são o sujeito e a situação. Psicologicamente, o contato entre os interlocutores numa conversação pode estabelecer uma percepção mútua que conduz à compreensão do discurso elíptico. No discurso interior, a percepção “mútua” está sempre presente, numa forma absoluta; por conseguinte, dá-se, regra geral, uma comunicação praticamente sem palavras mesmo quando se trata dos pensamentos mais complicados.
A predominância da predicação é um produto do desenvolvimento. De início, o discurso egocêntrico é, pela sua estrutura, idêntico ao discurso social, mas no seu processo de transformação em discurso interior vai-se tornando menos completo e coerente, à medida a que passa a ser regido por uma sintaxe totalmente predicativa. As experiências mostram-nos claramente como e porque razão a sintaxe predicativa vai começando a dominar As crianças falam das coisas que vêem, ouvem ou fazem em determinado momento. Em resultado disto, tendem a deixar de lado o sujeito e todas as palavras que com ele se relacionam, condensando progressivamente o seu discurso até que só ficam os predicados. Quanto mais diferenciada se torna a função específica do discurso egocêntrico, mais pronunciadas se tornam as suas peculiaridades sintáticas — a simplificação e a predicação. A vocalização corre a par com esta modificação. Quando conversamos de nós para nós precisamos ainda de menos palavras do que Kitty e Levin. O discurso interior é um discurso quase sem palavras.
Reduzida a sintaxe e o som ao mínimo, o significado passa a ocupar um lugar mais do que nunca proeminente. O discurso interior opera com a semântica e não com a fonética. A estrutura semântica específica do discurso interior também contribui para a elipse. A sintaxe dos significados no discurso interior não é menos original do que a sua sintaxe gramatical. A nossa investigação estabeleceu três peculiaridades semânticas do discurso interior.
A primeira, que é essencial, é a preponderância do sentido das palavras sobre o seu significado — distinção que devemos a Paulhan. Segundo este autor, o sentido de uma palavra é a soma de todos os acontecimentos psicológicos que essa palavra desperta na nossa consciência. É um todo complexo, fluido, dinâmico que tem várias zonas de estabilidade desigual. O significado mais não é do que uma das zonas do sentido, a zona mais estável e precisa. Uma palavra extrai o seu sentido do contexto em que surge; quando o contexto muda o seu sentido muda também. O significado mantém-se estável através de todas as mudanças de sentido. O significado de uma palavra tal como surge no dicionário não passa de uma pedra do edifício do sentido, não é mais do que uma potencialidade que tem diversas realizações no discurso.
As últimas palavras da já mencionada fábula de Krylov “A Cigarra e a Formiga” constituem uma boa ilustração da diferença entre sentido e significado. As palavras: “Pois agora dança'” têm um significado fixo e definido, mas no contexto da fábula adquirem um sentido intelectual e afetivo mais vasto. Passam a significar simultaneamente: “Diverte-te” e “Perece!”. Este enriquecimento das palavras pelo sentido que adquirem nos diferentes contextos é a lei fundamental da dinâmica dos significados das palavras. Num determinado contexto, uma palavra significa simultaneamente mais ou menos do que a mesma palavra tomada isoladamente; significa mais, porque adquire um novo contexto; significa menos, porque o seu significado é limitado e estreitado pelo mesmo contexto. O sentido de uma palavra, diz Paulhan, é um fenômeno complexo, móvel, protéico; modifica-se com as situações e consoante os espíritos e é praticamente ilimitado. As palavras extraem o seu sentido da frase em que estão inseridas, e esta, por seu turno, colhe o seu sentido do parágrafo, o qual, por sua vez, o colhe do livro e este das obras todas do autor.
Paulhan prestou ainda outro serviço à psicologia, analisando a relação entre a palavra e o sentido e mostrando que a independência entre um e outra é muito maior do que a que existe entre a palavra e o significado. Há muito já se sabe que as palavras podem mudar de sentido. Recentemente, houve quem assinalasse que o sentido pode modificar as palavras, ou melhor, que as idéias por vezes mudam de nome. Tal como o sentido duma palavra se encontra relacionada com o conjunto da palavra na sua totalidade, e não apenas com os seus sons isolados, também o sentido duma frase se relaciona com a globalidade da frase e não com as suas palavras tomadas isoladamente. Por conseguinte, uma palavra pode muitas vezes ser substituída por outra sem se dar nenhuma modificação do sentido. As palavras e os seus sentidos são relativamente independentes uns dos outros.
No discurso interior, a predominância do sentido sobre o significado, da frase sobre a palavra e do contexto sobre a frase constitui a regra.
Isto conduz-nos a outras peculiaridades do discurso interior. Ambas dizem respeito à combinação das palavras entre si. Um desses tipos de combinação será antes como que uma aglutinação — uma forma de combinar as palavras bastante freqüente em muitas línguas e relativamente rara noutras. A língua alemã forma freqüentemente um substantivo a partir de diversas palavras ou de frases. Em certas línguas primitivas, tal edição de palavras constitui regra geral. Quando diversas palavras se fundem numa única, a nova palavra não se limita a exprimir uma idéia bastante complexa, designa também todos os elementos separados contidos nessa idéia. Como a tônica recai sempre no radical ou na idéia principal, tais línguas são de fácil compreensão. O discurso egocêntrico da criança patenteia um fenômeno semelhante. À medida que o discurso egocêntrico se vai aproximando da forma do discurso interior, a criança começa a utilizar a aglutinação cada vez mais como modo de formar palavras compostas que exprimem idéias complexas.
A terceira peculiaridade semântica fundamental do discurso interior é a forma como os sentidos das palavras se combinam e congregam — processo que é regido por leis diferentes das que regem as combinações de significados. Na altura em que observamos esta forma singular de unir palavras no discurso egocêntrico, chamamos-lhe “influxo de sentido”. Os sentidos de diferentes palavras confluem numa outra — “influenciam-se” literalmente - de forma que as primeiras estão contidas nas últimas e as influenciam. Da mesma forma, uma palavra que continuamente se repete num livro ou num poema absorve por vezes todas as variantes de sentido neles contidas e se torna de certa maneira equivalente à própria obra. O título de uma obra literária exprime o seu conteúdo e completa o seu sentido num grau muito mais elevado do que o título de um quadro ou de uma peça de música. Títulos como Dom Quixote, Hamlet ou Anna Karenina ilustram isto com toda a clareza; todo o sentido da obra se encontra contido numa palavra, num nome. Outro excelente exemplo é a obra Almas Mortas, de Gogol. Originalmente, o título referia-se aos servos mortos cujo nome não fora removido das listas oficiais e que podiam continuar a ser comprados e vendidos como se estivessem vivos. É neste sentido que as palavras são utilizadas durante todo o livro, que é construído em torno deste tráfico com os mortos. Mas, pela sua íntima relação com o conjunto da obra, estas duas palavras adquirem uma nova significação e um sentido infinitamente mais vasto. Quando chegamos ao fim do livro, a expressão “Almas mortas” significa para nós não só os servos defuntos, mas também todos os personagens da história que estão fisicamente vivos, mas espiritualmente mortos.
No discurso interior, o fenômeno atinge a sua máxima incidência. Cada palavra isolada encontra-se tão saturada de sentido, que, para a explicar no discurso exterior seriam necessárias muitas palavras. Não é pois de surpreender que o discurso egocêntrico seja incompreensível para os outros. Watson diz que o discurso interior seria incompreensível, mesmo que fosse possível gravá-lo. A sua opacidade acentua-se devido a um fenômeno que, diga-se de passagem, Tolstoy notou no discurso exterior: no seu livro, Infância, Adolescência e Juventude, descreve como, em pessoas que se encontram em contato psicológico muito íntimo, as palavras adquirem significados especiais que só são entendidos pelos iniciados. No discurso interior, desenvolve-se o mesmo tipo de idioma — o tipo de idioma que é difícil de traduzir para a fala oral.
Com isto, concluímos o nosso relance sobre as peculiaridades do discurso interior, com que nos defrontamos pela primeira vez ao investigarmos o discurso egocêntrico. Quando fomos procurar comparações no discurso externo, descobrimos que este último já contém, pelo menos potencialmente, os traços característicos do discurso interno: a predicação, o declínio da oralidade, a predominância do sentido sobre o significado, a aglutinação, etc., aparecem também em certas condições já no discurso externo. Estamos em crer que isto é a melhor confirmação da nossa hipótese, segundo a qual o discurso interior tem origem na diferenciação do primitivo discurso das crianças.
Todas as nossas observações indicam que o discurso interior é uma função autônoma da linguagem. Podemos confiantemente encará-lo como um plano distinto do pensamento verbal. É evidente que a transição do discurso interior para o discurso externo não é uma simples tradução duma linguagem para outra. Não pode ser conseguida apenas pela simples oralização do discurso silencioso. É um processo complexo, dinâmico que envolve a transformação da estrutura predicativa, idiomática do discurso interior em discurso sintaticamente articulado, inteligível para os outros.

V

Podemos agora voltar a debruçar-nos sobre a definição do discurso interior que propusemos antes de iniciarmos a nossa análise. O discurso interior não é o aspecto interior do discurso externo — é uma função em si próprio. Continua a ser discurso, isto é, pensamento ligado por palavras. Mas enquanto o pensamento externo se encontra encarnado em palavras, no discurso interior é, em grande medida, um pensamento feito de significados puros. É uma coisa dinâmica, instável, e derivante, que flutua entre a palavra e o pensamento, os dois componentes mais ou menos estáveis, mais ou menos solidamente delineados do pensamento verbal. Só se pode compreender a sua verdadeira natureza e o seu verdadeiro lugar, após se ter examinado o plano seguinte do pensamento verbal, o plano ainda mais profundo do que o discurso interior.
Esse plano é o próprio pensamento. Como dissemos, todos os pensamentos criam uma conexão, preenchem uma função, resolvem um problema. A corrente de pensamento não é acompanhada por um desabrochar simultâneo do discurso. Os dois processos não são idênticos e não há correspondência rígida entre as unidades de pensamento e de discurso. Isto é particularmente verdade quando um pensamento aborta — quando como Dostoyevski diz, um “pensamento não entra nas palavras”. O pensamento tem a sua própria estrutura e a transição entre ele e a linguagem não é coisa fácil. O teatro defrontou-se, antes da psicologia, com o problema dos pensamentos ocultos por detrás das palavras. Ao ensinar o seu sistema de representação, Stanislawsky exigia dos autores que descobrissem o “subtexto” das suas réplicas na peça. Na comédia de Griboedov “O Espírito traz a Infelicidade”, à heroína que afirma nunca o ter esquecido, o herói, Chatsky, diz: “Três vezes abençoado quem tal acreditar. A fé aquece o coração”. Stanislawsky interpretou esta passagem como querendo dizer: “Acabemos com esta conversa”, mas poderia também ser interpretada como querendo dizer: “Não acredito em si. Diz isso para me reconfortar”, ou: “Não vê que me está a atormentar? Eu bem queria acreditar em si. Seria uma benção...”. Todas estas frases que proferimos na vida real possuem uma espécie de sub-texto, um pensamento oculto por detrás delas. Nos exemplos que atrás demos da ausência de concordância entre o sujeito e o predicado, não levamos a nossa análise até ao fim. Tal como uma frase pode exprimir muitos pensamentos, um mesmo pensamento pode ser expresso por meio de diferentes frases. Por exemplo, a frase “O relógio caiu”, como resposta à pergunta: “Porque é que o relógio parou?” poderia significar: “Não tive culpa de o relógio se ter estragado; caiu”. O mesmo pensamento, que é uma auto-justificação, poderia assumir a forma seguinte: “Não é meu hábito mexer nas coisas das outras pessoas. Só estava a limpar o pó aqui”, ou muitas outras frases.
Ao contrário do discurso, o pensamento não é constituído por unidades separadas. Quando desejo comunicar o pensamento de que hoje vi um rapaz descalço de camisa azul a correr pela rua abaixo, não vejo cada elemento em separado: o rapaz, a camisa, a cor desta última, a corrida do rapaz, a ausência de sapatos. Concebo tudo isto num só pensamento, mas exprimo o pensamento em palavras separadas. Um interlocutor leva por vezes vários minutos a expor um só pensamento. No seu espírito o pensamento encontra-se presente na sua globalidade num só momento, mas no discurso tem que ser desenvolvido por fases sucessivas. Podemos comparar um pensamento com uma nuvem que faz cair uma chuva de palavras. Como, precisamente, um pensamento não tem correspondência imediata em palavras, a transição entre o pensamento e as palavras passa pelo significado Na nossa fala, há sempre o pensamento oculto, há sempre o sub-texto. Houve sempre lamentos acerca da inexpressibilidade do pensamento devido ao fato de ser impossível uma transição direta do pensamento para a palavra:
Como poderá o coração exprimir-se?
Como poderá outro compreendê-lo?
(F. Tjutchev)
A comunicação direta entre os espíritos é impossível, não só fisicamente mas também psicologicamente. A comunicação só é possível de uma forma indireta. O pensamento tem que passar primeiro pelos significados e depois pelas palavras.
Chegamos assim ao último passo da nossa análise do pensamento verbal. O pensamento propriamente dito é gerado pela motivação, isto é, pelos nossos desejos e necessidades, os nossos interesses e emoções. Por detrás de todos os pensamentos há uma tendência volitiva-afetiva, que detém a resposta ao derradeiro porquê da análise do pensamento. Uma verdadeira e exaustiva compreensão do pensamento de outrem só é possível quando tivermos compreendido a sua base afetiva-volitiva. Ilustraremos isto por meio de um exemplo que já tem sido utilizado: a interpretações dos papéis de uma peça. Nas suas instruções para os atores, Stanislawsky enumerava os motivos subjacentes nas palavras dos seus personagens. Por exemplo:
TEXTO DA PEÇA
MOTIVOS SUBJACENTES
Sofia:
Ah, Chatsky, como estou contente por teres vindo!
Tente ocultar a atrapalhação.
Chatsky:
Estás tão contente! Que simpático! Mas alegrias dessas não entendo bem! Pois antes me parece que ao fim e ao cabo. Ao vir por aí à chuva mais o meu cavalo. A mim me contentei e a mais ninguém.
Tenta fazê-la sentir-se culpada.
“Não tens vergonha?!”
Tenta forçá-la a ser franca!
Liza:
Senhor se aqui estivesses neste mesmo lugar. Há uns cinco minutos, não, nem há tanto, não. Vosso nome ouviríeis bem alto soar!
Ah Menina! Dizei-lhe que tenho razão!
Tenta acalmá-lo. Tenta ajudar Sofia numa situação difícil.
Sofia:
Assim é, nem mais, nem menos!
Que quanto a isso, sei que não tendes nada que me censurar!
Tenta serenar Chatsky.
Não sou culpada de nada.
Chatsky:
Pronto, aceitemos que assim é, deixai estar!
Três vezes louvado quem tiver fé!
Pois a fé o coração aquece!
Acabemos com esta conversa, etc..
Para compreendermos o discurso de outrem, não basta compreender as suas palavras — temos que compreender o seu pensamento. Mas também isto não basta — temos que conhecer também as suas motivações. Nenhuma análise psicológica de uma frase proferida se encontra completa antes de se ter atingido esse plano.
Chegamos ao fim da nossa análise; passemos os seus resultados em revista. O pensamento verbal surge-nos como uma entidade dinâmica e complexa e a relação entre o pensamento e a palavra no seu interior aparece-nos como um movimento que abarca uma série de planos. A nossa análise seguiu o processo desde o seu plano mais externo até ao seu plano mais interno. Na realidade, o desenvolvimento do pensamento verbal segue uma trajetória oposta: do motivo que gera um pensamento à modelação do pensamento, primeiro no discurso interior, depois nos significados das palavras e finalmente nas palavras. Seria no entanto errado imaginar que este é o único caminho do pensamento para a palavra. O desenvolvimento pode deter-se num ponto qualquer da sua complexa trajetória; é possível uma infinidade de movimentos progressivos e recessivos, uma grande variedade de evoluções que desconhecemos ainda. O estudo destas multifacetadas variações não cabe no âmbito da nossa tarefa presente.
A nossa investigação seguiu um percurso bastante invulgar. Desejávamos estudar a forma como internamente operam o pensamento e a linguagem, formas essas que se encontram ocultas à observação direta. O significado e todo o aspecto interior da linguagem, a sua faceta que se encontra voltada para a pessoa e não para o mundo exterior tem constituído até hoje um território desconhecido. Sejam quais forem as interpretações que lhes sejam dadas, as relações entre o pensamento e a palavra foram sempre consideradas como algo constante e imutável, estabelecido para sempre. A nossa investigação mostrou que tais relações são, pelo contrário, relações mutáveis entre processos, que surgem durante o desenvolvimento do pensamento verbal. Não queríamos nem podíamos esgotar o assunto do pensamento verbal. Tentamos apenas dar uma concepção geral da infinita complexidade desta estrutura dinâmica — concepção que parte dos fatos experimentalmente documentados.
Para a psicologia associacionista, o pensamento e a palavra encontram-se unidos por laços externos, semelhantes aos laços existentes entre duas sílabas sem sentido. A psicologia gestaltista introduziu o conceito dos nexos estruturais, mas, tal como a velha teoria, não entrou em linha de conta com as relações específicas entre o pensamento e a palavra. Quanto às outras teorias, agrupavam-se em torno de dois pólos — quer o pólo do conceito behaviourista segundo o qual o pensamento é linguagem sem o ponto de vista idealista, defendido pela escola de Wuerzburg, e Bergson, segundo o qual o pensamento poderia ser “puro”, isto é, pensamento sem qualquer relação com a linguagem, pensamento que seria distorcido pelas palavras. A frase de Tjutchev “Uma vez dito um pensamento torna-se mentira”, poderia muito bem servir de epitáfio para o último grupo. Quer se inclinem para o puro naturalismo quer se inclinem para o idealismo mais extremo, todas estas teorias comungam dum mesmo traço — o seu pendor anti-histórico. Estudam o pensamento e a palavra sem fazerem qualquer referência à sua História genética.
Só uma teoria histórica do discurso interior poderá tratar cabalmente este complexo e imenso problema. A relação entre o pensamento e a palavra é um processo vivo; o pensamento nasce através das palavras. Uma palavra vazia de pensamento é uma coisa morta, e um pensamento despido de palavras permanece uma sombra. A conexão entre ambos não é, no entanto, algo de constante e já formado: emerge no decurso do desenvolvimento e modifica-se também ela própria. À expressão bíblica “No princípio era o Verbo”, Goethe faz Fausto responder: “No princípio era a ação”. A intenção desta frase é a de diminuir o valor da palavra, mas podemos aceitar esta versão se lhe dermos outra acentuação: no princípio era a ação. A palavra não é o ponto de partida — a ação já existia antes dela; a palavra é o termo do desenvolvimento, o coroamento da ação.
Não podemos encerrar o nosso relance sem mencionarmos as perspectivas abertas pela nossa investigação. Estudamos os aspectos internos da linguagem que eram tão desconhecidos para a Ciência como o outro lado da Lua. Mostramos que as palavras têm por característica fundamental serem um reflexo generalizado do mundo. Este aspecto da palavra conduz-nos ao limiar de um tema muito mais profundo e mais vasto — o problema geral da consciência. As palavras desempenham um papel fundamental, não só no desenvolvimento do pensamento mas também no desenvolvimento histórico da consciência como um todo. Cada palavra é um microcosmos da consciência humana.

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