O
fato mais importante posto a nu pelo estudo genético do pensamento e a
linguagem é o fato de a relação entre ambas passar por muitas alterações; os
progressos no pensamento e na linguagem não seguem trajetórias paralelas: as
suas curvas de desenvolvimento cruzam-se repetidas vezes, podem aproximar-se e
correr lado a lado, podem até fundir-se por momentos, mas acabam por se afastar
de novo. Isto aplica-se tanto ao desenvolvimento filogenético como ao ontogenético.
Nos
animais, o pensamento e a linguagem têm varias raízes e desenvolvem-se segundo
diferentes trajetórias de desenvolvimento. Este fato é confirmado pelos estudos
recentes de Koehler, Yerkes e outros sobre os macacos. Koehler provou que o
surgimento de um intelecto embrionário nos animais — isto é, o aparecimento de
pensamento no sentido próprio do termo — não se encontra de maneira nenhuma
relacionado com a linguagem. As “invenções” dos macacos na execução e
utilização de instrumentos, ou no capítulo da descoberta de caminhos indiretos
para a solução de determinados problemas, embora sejam sem sombra de dúvida
pensamento embrionário, pertencem a uma fase pré-linguística do desenvolvimento
do pensamento.
Na
opinião de Koehler, as suas investigações mostram que o chimpanzé evidencia um
esboço de comportamento intelectual do mesmo gênero e do mesmo tipo que o do
homem. São a ausência de linguagem. “esse instrumento técnico auxiliar
infinitamente valioso”, e a pobreza das imagens, “esse material intelectual
extremamente importante”, que explicam a tremenda diferença existente entre os
antropóides e os homens mais primitivos “e vedam ao chimpanzé o mais pequeno
desenvolvimento cultural” (18)(18, pp
191-192).
Vigora
considerável desacordo entre os psicólogos das diferentes escolas acerca da
interpretação teórica das descobertas de Koehler. A massa de literatura crítica
a que estes estudos deram origem representa uma grande variedade de pontos de
vista o que torna tanto mais significativo o ninguém contestar os fatos ou a
dedução que mais particularmente nos interessa: a independência entre as ações
do chimpanzé e a linguagem. Isto é admitido de boa mente, mesmo pelos
psicólogos que, como Thorndyke e Borovski. nada vêem nas ações do chimpanzé
para lá dos mecanismos instintuais e da aprendizagem por “tentativas e erros”,
“nada mais, salvo o já conhecido processo de formação de hábitos” (4)(4, p. 179). e
pelos introspeccionistas que fogem a rebaixar o intelecto ao nível do
comportamento dos macacos, mesmo dos mais avançados. Buehler diz com muito
acerto que as ações dos chimpanzés não têm qualquer relação com a linguagem; e
que, no homem, o pensamento mobilizado pela utilização dos utensílios
(Werkzeugdenken) também tem uma relação muito mais tênue com a linguagem e com
os conceitos do que qualquer outra forma de pensamento.
A
questão seria bem simples se os macacos não tivessem nenhum rudimento de
linguagem, não tivessem nada que se assemelhasse à linguagem. Ora, acontece que
encontramos no chimpanzé uma linguagem relativamente bem desenvolvida, que, sob
certos aspectos — sobretudo foneticamente — não deixa de ser semelhante à
humana. Esta linguagem tem uma característica notável: a de funcionar
independentemente do intelecto. Koehler, que estudou os chimpanzés durante
muitos anos na Estação de Antropóides das Ilhas Canárias, ensina-nos que as
suas expressões fonéticas denotam apenas desejos e estados subjetivos; são
expressões de afetos e nunca um sinal de algo objetivo” (19)(19, p. 27).
Mas a fonética dos chimpanzés e a humana têm tantas coisas em comum que podemos
confiantemente presumir que a ausência de um discurso do gênero humano não se
deve a nenhuma causa periférica.
O
chimpanzé é um animal extremamente gregário e responde de forma muito intensa à
presença doutros exemplares da sua espécie. Koehler descreve formas altamente
diversificadas de “comunicação lingüística” entre chimpanzés. Em primeiro lugar
vem o seu vasto repertório de expressões afetivas: jogo facial, gestos,
vocalização; a seguir encontram-se os movimentos que exprimem as emoções sociais;
gestos de saudação, etc. Os macacos são capazes tanto de “compreender
mutuamente os seus gestos” como também de “exprimir”, por meio de gestos,
desejos que envolvem outros animais. Habitualmente, um chimpanzé executará o
início de uma ação que pretende que outro animal execute — por exemplo,
empurrá-lo-á e executará os movimentos iniciais de marcha para “convidar” o
outro a segui-lo, ou agarrará o ar quando pretende que o outro lhe dê uma
banana. Todos estes gestos são gestos relacionados diretamente com a própria
ação. Koehler menciona que o experimentador é levado a utilizar meios de
comunicação elementares essencialmente semelhantes para transmitir aos macacos
aquilo que espera deles.
Estas
observações confirmam sobejamente a opinião de Wundt segundo a qual os gestos
de apontar que constituem o primeiro estádio do desenvolvimento da linguagem
humana não aparecem ainda nos animais, mas alguns gestos dos macacos são uma
forma de transição entre o movimento de preensão e o de apontar. (56)(56, p. 219).
Consideramos que este gesto de transição é um passo muito importante da
expressão afetiva não adulterada para a linguagem objetiva.
Não
há no entanto provas factuais de que os animais tenham atingido o estádio da
representação objetiva de nenhuma das suas atividades. Os chimpanzés de Koehler
brincavam com barro colorido, começando por “pintar., com os lábios e a língua
e passando mais tarde para pincéis a sério; mas estes animais — que normalmente
transferem para as suas brincadeiras o uso dos utensílios e outros
comportamentos aprendidos em atividades “sérias” (isto é, em experiências) e,
vice-versa — nunca evidenciaram a mínima intenção de representar o quer que
fosse nos seus desenhos nem o mais leve indício de atribuírem o mais pequeno
significado aos seus produtos. Afirma Buehler:
Certos
fatos põe-nos de sobreaviso no sentido de não sobrestimarmos as ações dos
chimpanzés. Sabemos que nunca nenhum viajante confundiu um gorila ou um chimpanzé
com um homem, e que nunca ninguém observou entre eles nenhum dos utensílios ou
métodos tradicionais que, nos homens, embora variando com as tribos, indicam a
transmissão de geração em geração das descobertas já feitas, nenhuma das
arranhadelas que executam na areia ou no barro poderia ser confundida com
desenhos que representassem alguma coisa ou com decorações traçadas durante a
atividade lúdica; não há linguagem representacional, isto é, não há sons
equivalentes a nomes. Todo este conjunto de circunstâncias deve ter alguma
causa intrínseca (7)(7,
p. 20).
De
entre os observadores modernos dos macacos, Yerkes deve ser o único que explica
a sua carência de linguagem por outras razões que não sejam as “causas
intrínsecas”. A sua investigação sobre o cérebro do orangotango produziram
dados muito semelhantes aos de Koehler; mas levou as suas conclusões mais
longe, pois admite uma “inteleção mais elevada” nos orangotangos — ao nível é certo
de uma criança de três anos, pelo menos (57)(57, p. 132).
Yerkes
deduz esta intelecção com base em semelhanças superficiais entre o
comportamento dos homens e o dos antropóides: não apresenta nenhuma prova
objetiva de que os orangotangos resolvam os problemas socorrendo-se da
intelecção, isto é, de “imagens”, ou de que sigam e discirnam os estímulos. No
estudo dos animais superiores, pode-se usar a analogia com bons resultados, dentro
dos limites da objetividade, mas basear uma hipótese em analogias não será com
certeza um procedimento científico correto.
Koehler,
por outro lado, foi mais além: não se limitou a utilizar a simples analogia na
sua investigação da natureza dos processos intelectuais dos chimpanzés. Mostrou
também, por meio de uma análise experimental rigorosa, que o êxito das ações
dos animais dependia do fato de eles poderem ver todos os elementos da situação
simultaneamente — este fator era decisivo para o seu comportamento. Se o pau
que utilizavam para chegar a um fruto colocado para lá das barras fosse
ligeiramente deslocado de forma que o utensílio (o pau) e o objetivo (o fruto)
deixassem de ser visíveis num só relance, a resolução do problema tornar-se-ia
muito difícil, freqüentemente impossível até (especialmente durante as
primeiras experiências). Os macacos tinham aprendido a alongar os seus
utensílios, inserindo um pau no orifício praticado noutro pau. Se por acaso os
dois paus se cruzassem nas suas mãos formando um X, tornavam-se incapazes de
realizar a operação familiar muito praticada de alongar o utensílio. Poderiam
citar-se dúzias de exemplos destes extraídos das experiências de Koehler.
Koehler
considera que a presença real de uma situação bastante simples é condição
indispensável em qualquer investigação do intelecto dos chimpanzés, condição
sem a qual o seu intelecto não funcionará: conclui daqui que as limitações
intrínsecas da “imagética” (ou “ideação”) são uma característica fundamental do
comportamento intelectual do chimpanzé. Se aceitarmos as teses de Koehler,
então a hipótese de Yerkes parece mais do que duvidosa.
Em
conexão com estes recentes estudos experimentais e observações do intelecto e
da linguagem dos chimpanzés, Yerkes apresenta novo material sobre o seu
desenvolvimento lingüístico e uma nova e engenhosa teoria que pretende explicar
a sua carência de verdadeira linguagem. “As reações orais”, afirma ele, “são
muito freqüentes e variadas nos chimpanzés jovens, mas a linguagem no sentido
humano não existe” (58)(58,
p. 53). 0 seu aparelho vocal é tão desenvolvido e funciona tão bem como o do
homem. O que lhe falta é a tendência para imitar sons. A sua mímica está quase
totalmente dependente dos estímulos óticos; eles copiam ações, mas não sons.
São incapazes de fazer o que o papagaio faz com tanto êxito.
Se
as tendências imitativas do papagaio se combinassem com o calibre intelectual
das do chimpanzé, este último possuiria sem dúvida linguagem, já que tem um
mecanismo vocal semelhante ao do homem, assim como um intelecto de tipo e nível
que lhe permitem utilizar os sons tendo em vista o discurso oral (58)(58, p. 53).
Nas
suas experiências, Yerkes aplicou quatro métodos para ensinar os chimpanzés a
falar. Nenhum deles obteve êxito. Tais fracassos, em princípio, nunca resolvem
um problema, como é claro. Neste caso, estamos ainda para saber se é ou não
possível ensinar os chimpanzés a falar. Não é raro que a culpa caiba ao
experimentador. Koehler diz que se os anteriores estudos não conseguiram
mostrar que os chimpanzés não têm intelecto, tal não se deve ao fato de os
chimpanzés não o possuírem, mas devido à inadequação dos métodos, à ignorância
dos graus de complexidade no interior dos quais o intelecto do chimpanzé pode
manifestar-se, à ignorância da sua dependência, à ignorância do fato que tal
manifestação depende da existência de uma situação visual global. “As
investigações sobre a capacidade intelectual — troçava Koehler — “testam tanto
o investigador como o investigado” (18)(18, p. 191).
Sem
terem resolvido a questão em princípio, as experiências de Yerkes mostraram
mais uma vez que os antropóides não têm nada que se pareça com a linguagem
humana, nem sequer em embrião. Se relacionarmos isto com o que já sabemos de
outras fontes, podemos presumir que os macacos são provavelmente incapazes de
acederem a uma verdadeira linguagem.
Possuindo
eles o aparelho vocal indispensável e a gama de sons necessários porque razão
são incapazes de falar? Yerkes atribui isso à ausência da capacidade de
imitação, ou à sua debilidade. Pode ter sido esta a causa dos resultados
negativos das suas experiências, mas provavelmente ele não terá razão ao ver
nessa carência a causa fundamental da ausência de linguagem nos macacos. Embora
ele a dê como ponto assente, esta última tese é negada por tudo o que conhecemos
do intelecto do chimpanzé.
Yerkes
dispunha de um excelente meio para comprovar a sua tese, meio esse que por
qualquer razão não utilizou e que muito gostaríamos de poder aplicar se disso
tivéssemos possibilidade material: excluiríamos o fator auditivo ao adestrarmos
as qualidades lingüísticas dos animais. A linguagem não depende necessariamente
do som. Há por exemplo a linguagem de sinais dos surdos-mudos e a leitura dos
lábios, que é também interpretação de movimentos. Nas linguagens dos povos
primitivos, os gestos são utilizados em paralelo com o som e desempenham um
papel de certa importância. Em princípio, a linguagem não depende da natureza
do material que emprega. Se é verdade que os chimpanzés têm o intelecto
necessário para adquirirem algo análogo à linguagem humana, e o único problema
reside no fato de não serem capazes de imitação vocal, então deveriam ser
capazes de dominar nas experiências um qualquer tipo de gestos convencionais,
cuja função psicológica seria precisamente a mesma dos sons convencionais. Como
o próprio Yerkes conjectura, poder-se-ia treinar os chimpanzés a utilizarem
gestos de mão, por exemplo, em substituição dos sons. O meio de expressão não
está em causa; o que importa é o uso funcional dos signos, de quaisquer signos
que possam desempenhar um papel correspondente ao da linguagem humana.
Este
método ainda não foi posto à prova e não podemos ter a certeza dos resultados
que daria, mas tudo o que conhecemos do comportamento dos chimpanzés, incluindo
os dados de Yerkes. nos obriga a arredar a esperança de que pudessem aprender a
linguagem funcional. Nunca ouvimos falar de que houvesse qualquer indício de
utilização sua dos signos. A única coisa que sabemos com certeza objetiva e,
não que possuem “ideação”, mas que, em determinadas circunstâncias são capazes
de executar utensílios muito simples e recorrer a “desvios” e que estas
circunstâncias exigem uma situação global perfeitamente visível e clara. Em
todos os problemas em que não se verificava a existência de estruturas visuais imediatamente
perceptíveis, e que se centravam num outro tipo de estrutura diferente, — um
tipo de estrutura mecânica, por exemplo — os chimpanzés abandonavam o
comportamento de tipo intuitivo para adotarem muito pura e simplesmente o
método de tentativas e erros.
As
condições necessárias para o funcionamento intelectual dos macacos serão as
mesmas condições exigidas para a descoberta da linguagem, ou o uso funcional
dos signos? De maneira nenhuma. A descoberta da linguagem não pode depender em
caso nenhum de uma configuração ótica. Exige uma operação intelectual de tipo
diferente e não temos quaisquer indicações que nos digam que tal operação se
encontra ao alcance dos chimpanzés e a maior parte dos investigadores admitem a
hipótese de que eles carecem de tal capacidade: esta carência pode ser a
principal diferença entre o intelecto dos chimpanzés e o dos homens.
Koehler
introduziu o termo Einsicht (intuição) para designar as operações intelectuais
acessíveis aos chimpanzés. A escolha do termo não é acidental. Kafka assinalou
que Koehler parece significar com ele a ação de ver no sentido literal do termo
e só por extensão a “visão” genérica de relações, ou a compreensão por oposição
à ação cega (17)(17,
p 130).
Deve
dizer-se que Koehler nunca define Einsicht, nem explicita a sua teoria. Na
ausência de interpretações teóricas, o termo é algo ambíguo na sua aplicação:
por vezes, designa as características específicas da própria operação, a estrutura
das ações dos chimpanzés e por vezes o processo psicológico que precede e
prepara tais ações; como que um plano interno de operações. Koehler não avança
qualquer hipótese acerca do mecanismo de reação intelectual, mas é claro que,
funcione o intelecto como funcionar, e seja qual for a localização que lhe
atribuirmos, — nas próprias ações dos chimpanzés ou em qualquer processo
preparatório interno (cerebral ou neuro-muscular) — a tese mantém-se válida, a
tese de que esta reação não é determinada por traços de memória, mas pela
situação tal como se apresenta visualmente. O chimpanzé desperdiçará até o
melhor dos instrumentos para determinado problema se não o vir ao mesmo tempo
ou quase ao mesmo tempo que o objetivo (i). Assim, a tomada
em consideração da Einsicht não altera em nada a nossa conclusão de que o
chimpanzé, mesmo que possuísse as qualidades do papagaio, seria com certeza
sobremaneira incapaz de dominar a linguagem.
No
entanto, como dissemos, o chimpanzé possui uma linguagem própria bastante rica.
O colaborador de Yerkes, Learned, compilou um dicionário de trinta e dois
elementos de discurso, ou “palavras”, que não só se assemelham foneticamente ao
discurso humano, como possuem também certo significado, no sentido em que são
suscitadas por certas situações ou objetos relacionados com o prazer ou o
desprazer, ou que inspiram desejo, malícia ou medo (58)(58, p. 54).
Estas “palavras” foram compiladas enquanto os chimpanzés aguardavam que os
alimentassem, ou durante as refeições na presença de humanos, ou enquanto os
chimpanzés estavam sós. São reações vocais afetivas, mais ou menos
diferenciadas e, em certa medida, relacionadas, à maneira dos reflexos
condicionados, com estímulos referentes à alimentação ou a outras situações
vitais quer dizer, era uma linguagem estritamente emocional.
Relativamente
a esta descrição da linguagem dos macacos gostaríamos de realçar três pontos:
em primeiro lugar, a coincidência da produção dos sons com gestos afetivos,
particularmente perceptíveis quando os chimpanzés se encontram muito excitados,
não se limita aos antropóides — pelo contrário, é muito vulgar nos animais
dotados de voz. A linguagem humana teve certamente origem no mesmo tipo de
reações vocais.
Em
segundo lugar, os estados afetivos que suscitam abundantes reações vocais nos
chimpanzés são desfavoráveis ao funcionamento do intelecto. Koehler menciona
repetidamente que, nos chimpanzés, as reações emocionais, sobretudo as de
grande intensidade, obliteram qualquer operação intelectual simultânea.
Em
terceiro lugar, dever-se-á sublinhar de novo que nos macacos. a linguagem não
tem por função exclusiva aliviar as tensões emocionais. Tal como noutros
animais e também no homem, é também um meio de contato psicológico com os seus
semelhantes Tanto nos chimpanzés de Yerkes e Learned, como nos macacos
observados por Koehler, esta função é inconfundível. Mas não se encontra relacionada
com as reações intelectuais, isto é, com o pensamento. Tem origem na emoção e
faz claramente parte do síndroma emocional total, parte essa, porém, que
desempenha uma função específica, tanto biológica como psicologicamente. Está
muito longe de constituir uma série de tentativas conscientes e intencionais
para informar e influenciar os outros. Essencialmente é uma reação instintiva
ou algo extremamente semelhante.
Dificilmente
se porá em dúvida que, do ponto de vista biológico, esta função da linguagem é
uma das mais primitivas e que geneticamente tem algo a ver com os sinais
visuais e orais dados pelos chefes dos grupos animais. Num estudo recentemente
publicado sobre a linguagem das abelhas, K. v. Frisch descreve certas formas de
comportamento muito interessantes e teoricamente importantes, que servem para o
intercâmbio ou o contato (10) e que, sem
sombra de dúvida, têm origem no instinto. Apesar das diferenças fenotípicas,
estas manifestações comportamentais são no seu fundamental semelhantes ao
intercâmbio lingüístico dos chimpanzés. Esta similitude aponta mais uma vez
para independência entre a “comunicação” dos chimpanzés e toda e qualquer
atividade intelectual.
Empreendemos
esta análise de diversos estudos da linguagem e do intelecto dos macacos para
elucidarmos a relação entre o pensamento e a linguagem no desenvolvimento
filogenético destas funções. Podemos agora resumir as nossas conclusões, que
nos serão úteis para o prosseguimento da análise do problema:
(1)
O pensamento e a linguagem têm raízes genéticas diferentes.
(2)
As duas funções desenvolvem-se segundo trajetórias diferentes e independentes.
(3)
Não há nenhuma relação nítida e constante entre elas.
(4)
Os antropóides revelam um intelecto que, sob certos aspectos (a utilização
embrionária dos instrumentos) é semelhante ao dos homens e uma linguagem também
algo semelhante à humana, mas em aspectos totalmente diferentes (o aspecto
fonético da sua fala, a sua função de alívio emocional, os embriões de uma
função social).
(5)
A estreita correspondência entre o pensamento e a linguagem, existente no
homem, encontra-se praticamente ausente nos antropóides.
(6)
Na filogenia do pensamento e da linguagem distingue-se com muita clareza uma
fase pré-intelectual no desenvolvimento da linguagem e uma fase pré-linguística
no desenvolvimento do pensamento.
II
Ontogeneticamente,
a relação entre a gênese do pensamento e a da linguagem é muito mais intrincada
e obscura; mas também aqui poderemos distinguir duas linhas de evolução
distintas, resultantes de duas raízes genéticas diferentes.
A
existência de uma fase pré-linguística do desenvolvimento do pensamento na
infância só recentemente foi corroborada por provas objetivas. Aplicaram-se a
crianças que ainda não tinham aprendido a falar as mesmas experiências que
Koehler levou a cabo com chimpanzés. O próprio Koehler havia já realizado
ocasionalmente essas experiências com crianças com o objetivo de estabelecer
comparações e Buehler empreendeu um estudo sistemático das crianças com a mesma
orientação. Os resultados foram semelhantes para as crianças e os chimpanzés.
Sobre
as ações das crianças, diz-nos Buehler:
eram
exatamente como as dos chimpanzés, de tal forma esta fase da vida das crianças
poderia ser corretamente designada por idade chimpanzóide; na criança que
estudamos correspondia aos décimo primeiro e décimo segundo meses. É na idade
chimpanzóide que ocorrem as primeiras invenções da criança — invenções muito
primitivas, é certo, mas extremamente importantes para o seu desenvolvimento (7)(7, p. 46).
O
que sobremaneira importa do ponto de vista teórico, tanto nestas experiências,
como nas dos chimpanzés, é a descoberta da independência entre as reações
intelectuais rudimentares e a linguagem. Notando isto, Buehler comenta:
Costumava-se
dizer que a linguagem era o início da hominização (Menschwerden); talvez sim,
mas antes da linguagem, há o pensamento implicado na utilização de utensílios,
isto é, a compreensão das conexões mecânicas e a idealização de meios mecânicos
com fins mecânicos, ou, para ser ainda mais breve, antes de surgir a linguagem,
a ação torna-se subjetivamente significativa — por outras palavras, torna-se
conscientemente finalista (7)(7, p. 48).
As
raízes pré-intelectuais da linguagem no desenvolvimento da criança há muito que
são conhecidas. O papaguear das crianças, o seu choro e inclusivamente as suas
primeiras palavras são muito claramente estádios do desenvolvimento da
linguagem que nada têm a ver com o desenvolvimento do pensamento. Tem-se
encarado duma forma generalizada estas manifestações como formas de
comportamento predominantemente emocionais. Contudo, nem todas servem apenas a
função de alívio de uma tensão. Investigações recentes das primeiras formas de
comportamento das crianças e das primeiras reações das crianças à voz humana
(efetuadas por Charlotte Buehler e o seu círculo) mostraram que a função social
da linguagem já é claramente evidente durante o primeiro ano de vida, quer
dizer, no estádio pré-intelectual do desenvolvimento da linguagem de criança.
Observaram-se reações bem definidas à voz humana logo no terceiro mês de vida e
a primeira reação especificamente social à voz durante o segundo mês (5)(5, p. 124).
Estas investigações também estabeleceram que as gargalhadas, os sons
inarticulados, os movimentos etc., são meios de contato social logo durante os
primeiros meses da vida das crianças.
Assim,
as duas funções da linguagem que observamos no desenvolvimento filogenético já
existem e são evidentes nas crianças com menos de um ano de idade.
Mas
a mais importante descoberta é o fato de em determinado momento por alturas dos
dois anos de idade, as curvas de desenvolvimento do pensamento e da linguagem,
até então separadas, se tocarem e fundirem, dando início a uma nova forma de
comportamento. Foi Stern quem pela primeira vez e da melhor forma nos deu uma
descrição deste momentoso acontecimento. Ele mostrou como a vontade de dominar
a linguagem se segue à primeira compreensão difusa dos propósitos desta, quando
a criança “faz a maior descoberta da sua vida”, a de que “todas as coisas têm
um nome” (40)(40,
p. 108).
Este
momento crucial, quando a linguagem começa a servir o intelecto e os
pensamentos começam a oralizar-se, é indicado por dois sintomas objetivos que
não deixam lugar a dúvidas: (1)(1), a súbita e
ativa curiosidade da criança pelas palavras, as suas perguntas acerca de todas
as coisas novas (“o que é isto?”) e, (ii) o conseqüente
enriquecimento do vocabulário que progride por saltos e muito rapidamente.
Antes
do ponto de viragem, a criança reconhece (como alguns animais) um pequeno
número de palavras que, tal como no condicionamento, substituem objetos,
pessoas, ações, estados, desejos. Nessa idade, a criança só conhece as palavras
que lhe foram transmitidas por outras pessoas. Agora a situação altera-se: a
criança sente a necessidade das palavras e, por meio das suas perguntas, tenta
ativamente aprender os signos relacionados com os objetos Parece ter descoberto
a função simbólica das palavras. A linguagem, que no estádio anterior era
afetiva-conotativa entra agora no estádio intelectual. As trajetórias do
desenvolvimento da linguagem e do pensamento encontraram-se.
Neste
momento, os problemas do pensamento e da linguagem entrelaçam-se. Detenhamo-nos
um pouco, examinemos o que acontece exatamente quando a criança faz a sua
“grande descoberta” e vejamos se a interpretação de Stern é correta.
Buehler
e Koffka comparam ambos esta descoberta com as invenções dos chimpanzés Segundo
Koffka, uma vez descoberto pela criança, o nome entra na estrutura do objeto,
tal como o pau passa a fazer parte da situação de querer agarrar o fruto (20)(20, p. 243).
Examinaremos
a solidez desta analogia mais tarde, quando analisarmos as relações estruturais
e funcionais entre o pensamento e a linguagem. De momento, limitar-nos-emos a
notar que “a grande descoberta das crianças” só se torna possível depois de se
ter atingido um nível de desenvolvimento do pensamento e linguagem
relativamente elevado. Por outras palavras, a linguagem não pode ser
“descoberta” sem o pensamento.
Em
resumo, devemos concluir que:
(1)
No seu desenvolvimento ontogenético, o pensamento e a linguagem têm raízes
diferentes.
(2)
No desenvolvimento lingüístico da criança, podemos estabelecer com toda a
certeza uma fase pré-intelectual no desenvolvimento lingüístico da criança — e
no seu desenvolvimento intelectual podemos estabelecer uma fase
pré-lingüística.
3)
A determinada altura estas duas trajetórias encontram-se e, em conseqüência
disso, o pensamento torna-se verbal e a linguagem racional.
III
Seja
qual for a forma como abordemos o controverso problema da relação entre o
pensamento e a linguagem, teremos sempre que tratar com certa exaustão do
discurso interior. Este é tão importante para a nossa atividade pensante que
muitos psicólogos, entre os quais Watson, chegam a identificá-lo com o
pensamento — que consideram ser uma fala inibida e silenciosa. Mas a psicologia
ainda não sabe como se dá a transição do discurso aberto para o discurso
interior, nem com que idade ocorre, por que processo e por que razão se
realiza.
Watson
diz que não sabemos em que ponto do desenvolvimento da sua organização
lingüística, as crianças passam do discurso aberto para o murmúrio e depois
para o discurso interior, porque esse problema só foi estudado de forma
acidental. As nossas investigações levam-nos a crer que Watson põe o problema
de uma forma incorreta. Não há razões válidas para crer que o discurso interior
se desenvolve duma forma mecânica qualquer, por meio de uma gradual diminuição
da audibilidade da fala (murmúrio).
É
verdade que Watson menciona outra possibilidade: “talvez as três formas se
desenvolvam simultaneamente” — afirma ele (54)(54, p. 322).
Esta hipótese parece-nos tão infundada do ponto de vista genético como a
seqüência: fala em voz alta, murmúrio, discurso interior. Este “talvez” não é
escorado por nenhum dado objetivo. Contra ele testemunham as profundas
dessemelhanças entre o discurso externo e o discurso interior, reconhecidas por
todos os psicólogos, inclusive Watson. Não há qualquer fundamento para presumir
que os dois processos, tão diferentes funcionalmente (adaptação social, num
caso, e adaptação pessoal, no outro) e estruturalmente (com efeito, a economia
extrema, elíptica, do discurso interior transforma a configuração do discurso
até quase o tornar irreconhecível), possam ser geneticamente paralelos e
convergentes. Também não nos parece plausível (para voltarmos à tese principal
de Watson) que se encontrem relacionadas mutuamente pela fala murmurada, a
qual, nem pela sua estrutura nem pela sua função, pode ser considerada um
estádio intermédio entre o discurso exterior e o discurso interior. Encontra-se
a meio caminho apenas fenotipicamente e não genotipicamente.
Os
nossos estudos do murmúrio nos bebês comprovam isto completamente. Descobrimos
que, estruturalmente, quase não há diferença nenhuma entre o murmurar e a fala
em voz alta; funcionalmente, o murmúrio difere profundamente do discurso
interior e não manifesta qualquer tendência a assumir as características deste
último. Ao demais, não se desenvolve espontaneamente até à idade escolar,
embora possa ser induzido muito precocemente: com efeito, sob o efeito da
pressão social, uma criança de três anos pode baixar a voz ou murmurar, durante
curtos períodos de tempo e com grande esforço. Este é o único ponto que parece
escorar a concepção de Watson.
Embora
discordemos da tese de Watson, acreditamos que este encontrou a abordagem metodológica
correta: para resolver o problema, teremos que procurar o elo intermédio entre
o discurso aberto e o discurso interior.
Inclinamo-nos
para ver esse elo no discurso egocêntrico da criança descrito por Piaget, o
qual, para lá do seu papel de acompanhamento da atividade da criança e as suas
funções repressiva e de alívio das tensões, facilmente assume uma função
planeadora, isto é, se transforma em pensamento propriamente dito muito natural
e facilmente.
Se
a nossa hipótese se verificar correta, teremos que concluir que a fala é
interiorizada psicologicamente antes de ser interiorizada fisicamente. O
discurso egocêntrico é discurso interior pelas suas funções; é discurso em vias
de se interiorizar, intimamente associado com o ordenamento do comportamento da
criança, já parcialmente incompreensível para os outros, mas que mantém ainda
uma forma bem explícita, patente, na sua forma e que não mostra quaisquer
tendências para se transformar em murmúrio ou qualquer outra forma de discurso
semi-silencioso.
Devíamos
também ter então resposta para o problema da razão por que o discurso se
interioriza. Interioriza-se porque a sua função se altera. O seu
desenvolvimento deveria ter também três estádios: não os que Watson julgava,
mas os seguintes: discurso externo, discurso egocêntrico e discurso interior.
Passaríamos também a dispor de um método excelente para estudar o discurso
interior “ao vivo”, por assim dizer, enquanto as suas peculiaridades funcionais
e estruturais estão ainda a formar-se; seria um método objetivo, pois que estas
peculiaridades surgem quando o discurso é ainda audível, isto é, acessível à
observação e à mediação.
As
nossas investigações demonstram que o desenvolvimento da linguagem segue o
mesmo curso e obedece às mesmas leis que o desenvolvimento de todas as outras
operações mentais que envolvem a utilização de signos, como sejam, a atividade
de contagem e a memorização mnemônica. Verificamos que estas operações se
desenvolvem geralmente em quatro estádios. O primeiro é o estádio primitivo ou
natural, que corresponde ao discurso pré-intelectual e ao pensamento
pré-verbal, altura em que estas operações aparecem na sua forma original, tal
como se desenvolveram no estádio primitivo do comportamento.
Vem
a seguir o estádio que poderíamos chamar “da psicologia ingênua”, por analogia
com aquilo que se designa por “física ingênua” — a experiência que a criança
tem das propriedades físicas do seu próprio corpo e dos objetos que a cercam e
a aplicação desta experiência ao uso dos instrumentos: o primeiro exercício da
inteligência prática infantil que desabrocha.
Esta
fase é muito claramente definida no desenvolvimento lingüístico da criança.
Manifesta-se pela utilização correta das formas e estruturas gramaticais antes
de a criança ter compreendido as operações lógicas que representam. A criança
pode operar com proposições subordinadas, com palavras como, porque, se, quando
e mas, muito antes de dominar realmente as relações causais, condicionais ou
temporais. Domina a sintaxe da linguagem antes de dominar a sintaxe do
pensamento. Os estudos de Piaget provaram que a gramática se desenvolve antes
da lógica e que a criança aprende relativamente tarde as operações mentais que
correspondem à forma verbal que já utiliza há muito.
Com
a gradual acumulação da experiência psicológica ingênua, a criança entra numa
terceira fase, que se distingue por sinais externos por operações externas que
são utilizadas como auxiliares para a solução dos problemas internos. É a fase
em que a criança conta pelos dedos, recorre a auxiliares mnemônicos, etc. No
desenvolvimento lingüístico caracteriza-se pelo discurso egocêntrico.
Chamamos
ao quarto estádio, estádio de “crescimento interno”. As operações externas
interiorizam-se e sofrem uma profunda transformação durante esse processo. A
criança começa a contar de cabeça, a utilizar a “memória lógica”, quer dizer, a
operar com as relações intrínsecas e a utilizar signos. No desenvolvimento
lingüístico é o último estádio do discurso interior, silencioso. Continua a
haver uma interação constante entre as operações externas e internas e cada uma
das formas converte-se incansável e incessantemente na outra e vice-versa. Pela
sua forma, o discurso interior pode aproximar-se muito do discurso externo ou
tornar-se até exatamente igual a este último, quando serve de preparação para o
discurso externo — por exemplo, quando se está a pensar uma conferência que se
vai proferir. Não existe qualquer divisão nítida entre o comportamento interno
e o comportamento externo e cada um deles influencia o outro.
Ao
considerarmos a função do discurso interior nos adultos após se ter completado
o desenvolvimento, temos de perguntar a nós próprios se, no seu caso, os
processos lingüísticos e intelectivos têm uma relação necessária, se podemos
passar um traço de igual entre ambos. Também aqui, como no caso dos animais, a
resposta é negativa.
Esquematicamente,
podemos imaginar o pensamento e a linguagem como dois círculos que se
intersectam Nas regiões sobrepostas, o pensamento e a linguagem coincidem, produzindo
assim o que se chama pensamento verbal. O pensamento verbal, porém, não engloba
de maneira nenhuma todas as formas de pensamento ou todas as formas de
linguagem. Há uma vasta área de pensamento que não apresenta nenhuma relação
direta com a linguagem. O pensamento manifestado na utilização de utensílios
encontra-se incluído nesta área, tal como acontece com o pensamento prático em
geral. Além disso, as investigações levadas a cabo pelos psicólogos da escola
de Wuerzburg demonstraram que o pensamento pode funcionar sem quaisquer imagens
verbais ou movimentos lingüísticos detectáveis por auto-observação. As
experiências mais recentes mostram também que não há correspondência direta
entre o discurso interior e a língua ou os movimentos da laringe do indivíduo
sujeito à observação.
Não
há também quaisquer razões psicológicas para fazer decorrer todas as formas de
atividade lingüística do pensamento. Nenhum processo de pensamento estará com
certeza a ser mobilizado quando um indivíduo recita em silêncio um poema
aprendido de cor ou quando repete mentalmente uma, frase que lhe foi fornecida
com propósitos experimentais — apesar do que possa pensar Watson. Por último,
há a linguagem lírica suscitada pela emoção. Embora tenha todas as marcas
auditivas da fala, dificilmente poderá ser classificada como atividade
intelectual no sentido próprio do termo.
Somos
portanto forçados a concluir que a fusão entre o pensamento e a linguagem,
tanto nos adultos como nas crianças é um fenômeno limitado a uma área circunscrita.
O pensamento não verbal e a linguagem não intelectual não participam desta
fusão e só indiretamente são afetados pelos processos do pensamento verbal.
IV
Podemos
agora resumir os resultados da nossa análise. Começamos por tentar seguir a
genealogia do pensamento e da linguagem até às suas raízes, utilizando os dados
da psicologia comparativa. Estes dados são insuficientes para detectarmos as
trajetórias de desenvolvimento do pensamento e da linguagem pré-humanos com um
grau mínimo de certeza. A questão fundamental, a de saber-se se os antropóides
possuem ou não o mesmo tipo de intelecto do que o homem, é ainda controversa.
Koehler responde afirmativamente, outros respondem pela negativa. Mas seja qual
for a solução que as futuras investigações derem a este problema, uma coisa é
já clara: no mundo animal, o percurso para um intelecto de tipo humano não é
igual à trajetória para uma linguagem de tipo humano; o pensamento e a
linguagem não brotam da mesma raiz.
Nem
aqueles que negariam a existência de um intelecto nos chimpanzés podem negar
que os macacos possuem algo que se aproxima do intelecto, que o tipo mais
elevado de formação de hábitos neles patente é um intelecto embrionário. A
utilização de utensílios prefigura o comportamento humano. Para os marxistas,
as descobertas de Koehler não constituem surpresa Marx afirmou há muito (27) que a
utilização e a criação de instrumentos de trabalho embora estejam presentes nos
animais de forma embrionária, são características específicas do processo de
trabalho humano A tese de que as raízes do intelecto humano se estendem ao
reino animal e tem origem nele foi há muito admitida pelo marxismo vemo-la ser
elaborada por Plekhanov (34)(34, p. 138).
Engels
escreveu que os homens e os animais compartilham todas as formas de atividade
intelectual; só o seu nível de desenvolvimento difere (9): os animais são
capazes de raciocinar a um nível elementar, de analisar (o partir de uma noz é
um inicio de análise) e de fazer experiências, quando confrontados com
determinados problemas, ou quando se lhes depara uma situação difícil. Alguns,
como o papagaio, por exemplo, não só são capazes de aprender a falar, como
podem até aplicar palavras com sentido, duma forma restrita: para pedir alguma
coisa, usará palavras pelas quais receberá uma recompensa; quando é irritado
deixará escapar as mais seletas invectivas do seu vocabulário.
Escusado
será dizer que Engels não acredita os animais com a capacidade de pensarem ou
de falarem ao nível do homem, mas, neste momento, não precisamos de aprofundar
muito o significado exato da sua afirmação. Por agora, apenas desejamos
confirmar que não há boas razões para negar a existência, nos animais, de uma
inteligência e uma linguagem embrionárias do mesmo tipo da dos homens que, se
desenvolvem, também como nos homens, segundo trajetórias separadas. A
capacidade de expressão oral dos animais não nos dá nenhuma indicação sobre o
seu desenvolvimento mental.
Vamos
agora resumir os dados pertinentes fornecidos por estudos recentes sobre as
crianças. Vemos que nas crianças também, as raízes e curso seguido pelo
desenvolvimento do intelecto diferem dos da linguagem — e que, inicialmente, o
pensamento é não-verbal e a linguagem é não-intelectual. Stern afirma que, em
determinado ponto, as duas linhas de desenvolvimento se cruzam, tornando-se a
linguagem racional e o pensamento verbal. A criança “descobre” que “cada coisa
tem o seu nome e começa a perguntar como se chamam todos os objetos.
Alguns
psicólogos (8)
não estão de acordo com Stern, discordando que esta primeira fase de perguntas
tenha ocorrência universal e que seja necessariamente sintoma de qualquer
descoberta momentosa. Koffka adota uma posição intermédia entre Stern e os seus
opositores. Como Buehler, ele realça a analogia entre a invenção de utensílios
pelos chimpanzés e a descoberta pela criança da função nominativa da linguagem
mas, segundo ele, esta descoberta não é de tão vasto alcance como Stern
supunha. Segundo o ponto de vista de Koffka, a palavra passa a fazer parte da
estrutura do objeto no mesmo pé que todas as outras partes suas constituintes.
Durante um certo período de vida da criança, a palavra para esta não é um
signo, mas apenas uma das propriedades do objeto que tem de ser fornecida para
que a estrutura fique completa. Como Buehler apontou, cada novo objeto
apresenta uma nova situação problemática para a criança e esta resolve o
problema uniformemente nomeando o objeto. Quando lhe falta a palavra para o
novo objeto pergunta-a aos adultos (7)(7, p. 54).
Julgamos
que esta concepção se encontra mais próxima da verdade Os dados existentes
sobre a linguagem das crianças (escorados pelos dados antropológicos)
sugerem-nos com grande força que durante um longo período de tempo a palavra é
para a criança uma propriedade, mais do que o símbolo do objeto, que a criança
apreende a estrutura-palavra-objeto mais cedo do que a estrutura simbólica
interna. Escolhemos esta hipótese intermédia entre as várias que se nos
oferecem porque, tendo em conta a lei das probabilidades, achamos difícil de
acreditar que uma criança entre os dezoito meses e os dois anos de idade seja
capaz de descobrir a função simbólica da linguagem. Tal descoberta surge mais
tarde e não duma forma repentina, mas através de uma série de transformações
“moleculares”. A hipótese que preferimos está em conformidade com a
configuração geral da trajetória da dominação dos sons que nas anteriores
seções descrevemos. Mesmo nas crianças em idade escolar o uso funcional de um
novo signo é precedido por um período de aprendizagem durante o qual a criança
vai dominando progressivamente a estrutura externa do signo. De forma
correspondente, só ao operar com as palavras, que começou por conceber como uma
propriedade dos objetos, a criança descobre e consolida a sua função como
signo.
Deste
modo, a tese de Stern da “descoberta” sofre limitações e carece de uma
reavaliação. Contudo, o seu princípio básico permanece válido: é evidente que,
sob o ponto de vista ontogenético, o pensamento e o discurso se desenvolvem ao
longo de linhas separadas e que num certo ponto essas linhas se encontram. Este
importante fato está hoje definitivamente provado, sem detrimento de
clarificação, através de estudos posteriores, dos detalhes em que os psicólogos
ainda estão em desacordo: se esse encontro se dá num só ponto ou em vários
pontos, como uma súbita descoberta ou após longa preparação através do uso
prático e da lenta troca funcional, e se ocorre aos dois anos de idade ou na
idade escolar.
Podemos
agora sumariar a nossa investigação do discurso interior. Também aqui
consideramos várias hipóteses e chegamos à conclusão que o discurso interior se
desenvolve através de uma lenta acumulação de mudanças funcionais e estruturais,
que se desliga do discurso externo da criança simultaneamente com a
diferenciação das funções social e egocêntrica do discurso, e finalmente que as
estruturas do discurso dominadas pela criança se transformam nas estruturas
básicas do seu pensamento.
Isto
conduz-nos a um outro incontestável fato de grande importância: o
desenvolvimento do pensamento é determinado pela linguagem, ou seja, pelos
instrumentos lingüísticos do pensamento e pela experiência sociocultural da
criança. Fundamentalmente, o desenvolvimento da lógica na criança, como o
demonstraram os estudos de Piaget, é função direta do seu discurso socializado.
O crescimento intelectual da criança depende do seu domínio dos meios sociais
de pensamento, ou seja, da linguagem.
Podemos
agora formular as principais conclusões a retirar das nossas análises. Se
compararmos o desenvolvimento primitivo do discurso e do intelecto — que, como
vimos, se desenvolvem ao longo de linhas separadas quer nos animais quer nas
crianças de tenra idade — com o desenvolvimento do discurso interior e do
pensamento verbal, temos de concluir que o último estádio não é uma simples
continuação do primeiro. A natureza do próprio desenvolvimento transforma-se,
do biológico no sócio-histórico. O pensamento verbal não é uma forma natural de
comportamento, inata, mas é determinado pelo processo histórico-cultural e tem
propriedades e leis específicas que não podem ser encontradas nas formas
naturais do pensamento e do discurso. Desde que, admitamos o caráter histórico
do pensamento verbal, teremos que o considerar sujeito a todas as premissas do
materialismo histórico, que são válidas para qualquer fenômeno histórico na
sociedade humana. Só pode concluir-se que a este nível o desenvolvimento do
comportamento será essencialmente governado pelas leis gerais do
desenvolvimento histórico da sociedade humana.
O
problema do pensamento e linguagem estende-se, portanto, para além dos limites
da ciência natural e torna-se no problema focal da psicologia humana histórica,
ou seja, da psicologia social. Consequentemente, ele deve ser colocado de um
modo diferente. Este segundo problema exposto pelo estudo do pensamento do
discurso será objeto de investigação separada.
I
Até
muito recentemente, o estudioso da gênese dos conceitos encontrava-se
inferiorizado pela carência de um método experimental que lhe permitisse
observar a dinâmica interna do processo.
Os
métodos tradicionais de estudo dos conceitos subdividem-se em dois grupos. O
chamado método da definição, com as suas variantes, é típico do primeiro grupo
de métodos. É usado para investigar os conceitos já formados na criança através
da definição verbal dos seus conteúdos. No entanto, este método tem dois
importantes inconvenientes que o tornam inadequado para investigar o processo
em profundidade. Em primeiro lugar, é um método que se exerce sobre o produto
acabado da gênese dos conceitos, descurando a dinâmica e o desenvolvimento do
próprio processo. Em vez de registar o pensamento da criança, limita-se
freqüentemente a suscitar uma reprodução verbal do conhecimento verbal, de
definições acabadas fornecidas a partir do exterior. Pode ser um teste do
conhecimento e da experiência da criança ou do seu desenvolvimento lingüístico,
mais do que estudo de um processo intelectual no verdadeiro sentido da palavra.
Em segundo lugar, este método, ao centrar-se na palavra, não consegue entrar em
linha de conta com a percepção e a elaboração do material sensorial que dão
origem aos conceitos. O material sensorial e a palavra são materiais
indispensáveis na formação do conceito O estudo separado da palavra coloca o
processo num plano puramente verbal que não é característico do pensamento da
criança. A relação entre o conceito e a realidade permanece por explicar; o
significado de uma determinada palavra é abordada através de outra palavra e
esta operação, por muito que nos permita descobrir, nunca nos dará um quadro
dos conceitos da criança mas sim um registo das relações existentes no seu
cérebro entre famílias de palavras previamente formadas.
O
segundo grupo engloba os métodos utilizados no estudo da abstração. Estes
métodos incidem sobre os processos psíquicos que conduzem à formação dos
conceitos. Exige-se da criança que descubra um certo número de traços comuns
numa série de impressões discretas, abstraindo esses traços comuns de todos os
outros traços com que se encontram fundidos na percepção. Os métodos deste tipo
descuram o papel desempenhado pelo símbolo (a palavra) na gênese do conceito:
um quadro parcial substitui a estrutura complexa do processo total por um
processo parcial.
Assim,
ambos os métodos parciais tradicionais separam a palavra do material da
percepção e operam com uma, quer com o outro, tomados em separado. A criação de
um novo método que permite a combinação de ambas as partes foi um grande passo
em frente. O novo método introduz no quadro experimental palavras sem sentido
que a princípio não significam nada para a criança sujeita à experiência.
Introduz também conceitos artificiais relacionando cada palavra sem sentido com
uma combinação particular dos atributos dos objetos para a qual não exista
nenhum conceito nem palavra. Por exemplo, nas experiências de Ach (1), a palavra
gatsun vai a pouco e pouco significando “grande e pesado”; a palavra fal,
pequeno e leve; Este método pode ser utilizado tanto com crianças como com
adultos, visto que para resolver o problema o indivíduo observado não precisa
ter já qualquer experiência ou conhecimento prévio. O método também entra em
linha de conta com o fato de um conceito não ser uma formação isolada,
ossificada, imutável mas parte ativa de um processo intelectual, constantemente
mobilizada ao serviço da comunicação, do conhecimento e da resolução de
problemas. O novo método centra a investigação sobre as condições funcionais da
gênese dos conceitos.
Rimat
levou a cabo um estudo cuidadosamente preparado com adolescentes, utilizando
uma variante deste método. A conclusão principal a que chegou foi a de que a
verdadeira gênese dos conceitos excede a capacidade dos pré-adolescentes e só
começa com o dealbar da puberdade. Escreve este autor:
Estabelecemos
terminantemente que só ao findar o décimo segundo ano da vida das crianças se
manifesta um acentuado e súbito aumento da capacidade de formar sem ajuda,
conceitos objetivos generalizados... O pensamento através dos conceitos,
emancipado da percepção, traz à criança exigências que excedem as suas
possibilidades mentais para as idades inferiores a doze anos (35)(35, p. 112)
As
investigações de Ach e Rimat provam a falsidade da concepção segundo a qual a
gênese dos conceitos se baseia nas conexões associativas. Ach demonstrou que a
existência de associações entre os símbolos verbais e os objetos, por mais
numerosas que sejam, não é, em princípio, por si própria suficiente para a
formação dos conceitos. As suas descobertas experimentais não confirmam a velha
idéia que pretende que um conceito se desenvolve pelo máximo fortalecimento das
conexões associativas envolvendo os atributos comuns a todos — um grupo de
objetos e o enfraquecimento das associações — estabelecidas entre os atributos
em que esses mesmos objetos diferem.
As
experiências de Ach demonstraram que a gênese dos conceitos é um processo
criativo e não mecânico e passivo; que um conceito surge e toma forma no
decurso de uma complexa operação orientada para a resolução do mesmo problema,
e que a simples presença das condições externas que favorecem uma relacionação
mecânica entre a palavra e o objeto não basta para produzir um conceito.
Segundo este ponto de vista, o fator decisivo para a gênese dos conceitos é a
chamada tendência determinante
Antes
de Ach, a psicologia postulava a existência de duas tendências básicas que
regeriam o fluxo das nossas idéias: a reprodução através das associações e a
persistência. A primeira tendência, traz-nos à memória as imagens que em
experiências passadas se encontravam ligadas à imagem que, em determinada
altura, nos ocupa o espírito. A segunda é a tendência de cada imagem para
regressar e voltar a penetrar no fluxo de imagens. Nas suas primeiras
investigações, Ach demonstrou que estas duas tendências não conseguiam explicar
os atos de pensamento que possuem uma finalidade conscientemente orientada. O
estudo dos conceitos por parte de Ach mostrou que nenhum conceito novo se
formava sem o efeito regulador da tendência determinante gerada pela tarefa experimental.
Segundo
o esquema de Ach, a gênese dos conceitos não segue o modelo de uma cadeia
associativa em que um elo solicita o segundo: é um processo orientado para um
objetivo, uma série de operações que servem como passos intermédios em direção
a um objetivo final. A memorização das palavras e a sua relacionação com
determinados objetos, por si só, não conduz à formação do conceito: para que o
processo comece terá de surgir um problema que não possa ser resolvido doutra
forma, a não ser pela formação de novos conceitos.
Esta
caracterização do processo de formação de novos conceitos é no entanto
insuficiente. A criança pode compreender e empreender a tarefa experimental
muito antes de atingir os doze anos de idade, e no entanto ser incapaz de
formar novos conceitos até ter atingido essa idade. O estudo do próprio Ach
demonstrou que as crianças não diferem dos adolescentes e dos adultos pela
forma como compreendem os objetivos, mas pela forma como o seu espírito opera
para atingir esses objetivos. O pormenorizado estudo experimental de D. Usnadze
sobre a gênese dos conceitos em idade pré-escolar (44)(44, 45,)
também demonstrou que, nessa idade, as crianças abordam os problemas exatamente
da mesma maneira que um adulto quando opera com conceitos, mas que o caminho
que seguem para os resolver é inteiramente diferente. Só podemos concluir que
os fatores responsáveis pela diferença essencial entre o pensamento conceptual
do adulto e as formas de pensamento características da criança de tenra idade
não são nem a tendência determinante, nem o objetivo prosseguido, mas outros
fatores que os investigadores não inquiriram.
Usnadze
assinala que, embora os conceitos completamente formados só surjam relativamente
tarde, as crianças começam a utilizar palavras socorrendo-se delas para
estabelecerem um terreno de compreensão mútua com os adultos e entre si Com
base nisto, conclui que as palavras se apoderam da função dos conceitos e podem
servir como meios de comunicação, muito antes de atingirem o nível dos
conceitos característico do pensamento completamente desenvolvido.
Vêmo-nos
confrontados, portanto, com o seguinte estado de coisas: uma criança é capaz de
apreender um problema e visualizar o objetivo que tal problema levanta, num
estádio muito precoce do seu desenvolvimento. Como as tarefas levantadas pela
compreensão e a comunicação são essencialmente semelhantes para a criança e o
adulto, a criança desenvolve equivalentes funcionais dos conceitos numa idade
extremamente precoce. mas as formas de pensamento que utiliza ao defrontar-se
com estas tarefas diferem profundamente das que o adulto emprega pela sua
composição, pela sua estrutura e pelo seu modo de operação. O principal
problema suscitado pelo processo de formação do conceito — ou por qualquer
atividade finalista — é o problema dos meios pelos quais tal operação é levada
a cabo, por exemplo, não se consegue explicar cabalmente o trabalho, se se
disser que este é suscitado pelas necessidades humanas. Temos que entrar também
em linha de conta com os instrumentos utilizados e a mobilização dos meios
adequados e necessários para o realizar. Para explicar as formas mais elevadas
do comportamento humano, temos que pôr a nu os meios através dos quais o homem
aprende a organizar e dirigir o seu comportamento. Todas as funções psíquicas
de grau mais elevado são processos mediados e os signos são os meios
fundamentais utilizados para os dominar e orientar. O signo mediador é
incorporado na sua estrutura como parte indispensável a bem dizer fulcral do
processo total. Na gênese do conceito, esse signo é a palavra, que a princípio
desempenha o papel de meio de formação de um conceito, transformando-se mais
tarde em símbolo. Nas experiências de Ach não se dá a esta função da palavra a
atenção suficiente. O seu estudo, embora tenha o mérito de desacreditar, de uma
vez por todas, o ponto de vista mecanicista sobre a formação dos conceitos, não
pôs a nu a verdadeira natureza do processo — nem geneticamente, nem funcionalmente,
nem estruturalmente. Enveredou por uma direção errada com a sua interpretação
puramente teleológica, que eqüivale a afirmar que é o próprio objetivo que cria
a atividade apropriada através da tendência determinante — isto é, de que o
problema traz consigo a sua resolução.
II
Para
estudar o processo de gênese do conceito nas suas diferentes fases de
desenvolvimento, utilizamos o método elaborado por um dos nossos colaboradores,
L. S. Sakharov (36).
Poderíamos descrevê-lo como o método do duplo estímulo: apresentam-se ao
indivíduo observado duas séries de estímulos, uma das quais como objeto da sua
atividade e a outra como signos que servem para organizar esta última. (2)
Sob
muitos e importantes aspectos, este modo de proceder inverte as experiências de
Ach sobre a formação dos conceitos. Ach começa por dar ao indivíduo observado
um período de aprendizagem ou de prática; pode manipular os objetos e ler as
palavras sem sentido neles escritas antes de se lhe dizer qual a tarefa que se
lhe pede. Nas nossas experiências, põe-se o problema ao indivíduo sujeito a
observação logo de início; o problema não se altera durante toda a experiência
mas as chaves para a sua resolução são introduzidas pouco a pouco, de cada vez
que a criança volta um bloco. Decidimo-nos por esta seqüência porque julgamos
que, para que o processo se desencadeie, é necessário pôr a criança perante o
problema. A introdução gradual dos meios necessários à resolução do problema
permite-nos estudar o processo total da formação dos conceitos em todas as suas
fases dinâmicas. A formação do conceito é seguida pela sua transferência para
outros objetos; o indivíduo observado e induzido a utilizar os novos termos
para falar dos objetos diferentes dos blocos experimentais e a definir o seu
significado duma forma generalizada.
III
Na
série de investigações sobre o processo de gênese dos conceitos iniciados no
nosso laboratório por Sakharov e completados por nós e pelos nossos
colaboradores Kotelova e Pachlovskaia (48)(49)(48, 49, p. 70)
estudaram-se mais de cem indivíduos — crianças, adolescentes e adultos,
incluindo alguns com perturbações das atividades lingüísticas e intelectuais.
Os
principais resultados do nosso estudo podem ser resumidos como se segue: o
desenvolvimento dos processos que acabam por gerar a formação dos conceitos
começam durante as fases mais precoces da infância, mas as funções intelectuais
que, em determinadas combinações formam a base psicológica da formação dos
conceitos amadurecem, tomam forma e desenvolvem-se apenas durante a puberdade.
Antes dessa idade encontramos certas formações intelectuais que desempenham
funções semelhantes aos dos conceitos genuínos que mais tarde aparecem.
Relativamente à sua composição, estrutura e funcionamento estes equivalentes
funcionais dos conceitos têm uma relação com os verdadeiros conceitos que é
semelhante à relação entre o embrião e o organismo completamente desenvolvido.
Identificar ambos seria ignorar o lento processo de desenvolvimento entre a
fase inicial e a fase final.
A
formação dos conceitos é resultado de uma complexa atividade em que todas as
funções intelectuais fundamentais participam. No entanto, este processo não
pode ser reduzido à associação, à tendência, à imagética, à inferência ou às
tendências determinantes. Todas estas funções são indispensáveis, mas não são
suficientes se não se empregar o signo ou a palavra, como meios pelos quais
dirigimos as nossas operações mentais, controlamos o seu curso e o canalizamos
para a solução do problema com que nos defrontamos.
A
presença de um problema que exige a formação de conceitos não pode por si só
ser considerada como causa do processo, embora as tarefas que a sociedade
coloca aos jovens quando estes entram no mundo cultural, profissional e cívico
dos adultos sejam um importante fator para a emergência do pensamento
conceptual. Se o meio ambiente não coloca os adolescentes perante tais tarefas,
se não lhes fizer novas exigências e não estimular o seu intelecto,
obrigando-os a defrontarem-se com uma seqüência de novos objetivos, o seu
pensamento não conseguirá atingir os estádios de desenvolvimento mais elevados,
ou atingi-lo-á apenas com grande atraso.
A
tarefa cultura, por si só, porém, não explicas o mecanismo de desenvolvimento
que tem por resultado a formação do conceito. O investigador deve intentar
compreender as relações intrínsecas entre as tarefas externas e a dinâmica do
desenvolvimento e considerar a gênese dos conceitos como função do crescimento
cultural e social global da criança, que não afeta apenas o conteúdo mas também
o seu modo de pensar A nova utilização significativa, o seu emprego como meio
para a formação dos conceitos é a causa psicológica imediata da transformação
radical no processo intelectual que ocorre no limiar da adolescência.
Nesta
idade não aparece nenhuma função elementar nova que seja essencialmente
diferente das que já existem: todas as funções existentes passam a ser
incorporadas numa nova estrutura, formam uma nova síntese, passam a fazer parte
de um novo todo complexo; as leis que regem este todo determinam também o
destino de cada sua parcela individual. O recurso às palavras para aprender a
orientar os processos mentais pessoais e parte integrante do processo de
formação dos conceitos. A capacidade para regular as nossas ações pessoais
utilizando meios auxiliares só atinge o seu completo desenvolvimento na
adolescência.
IV
Da
nossa investigação resultou que a acessão à formação dos conceitos se opera em
três fases distintas, cada uma das quais se subdivide em vários estádios. Nesta
seção e nas seis que se seguem, descreveremos estas fases e as suas subdivisões
à medida que aparecem quando as estudamos pelo método do “duplo estímulo”.
Os
bebês dão o primeiro passo para a formação dos conceitos quando congregam um
certo número de objetos num acervo desorganizado ou “monte” para resolverem um
problema que nós adultos resolveríamos geralmente formando um novo conceito. O
“monte”, constituído por um conjunto de objetos dessemelhantes reunidos sem
qualquer base. revela um alargamento difuso não orientado, do significado do
signo (palavra artificial) a objetos aparentemente não relacionados uns com os
outros, ligados entre si ocasionalmente na percepção da criança.
Neste
estádio, o significado das palavras para a criança não denota mais do que uma
conglomeração sincrética e vaga dos objetos individuais que duma forma ou
doutra coalesceram numa imagem no seu espírito. Dada a sua origem sincrética,
essa imagem é altamente instável.
Na
percepção, no pensamento e na ação, a criança tende a fundir os elementos mais
diversos numa só imagem não articuladas sob a influência mais intensa de uma
impressão ocasional. Claparède deu o nome de sincretismo a esta conhecida
característica do pensamento infantil; Blonski chamou-lhe “coerência
incoerente” do pensamento infantil. Descrevemos noutra ocasião o fenômeno como
resultado de uma tendência para compensar a pobreza das relações objetivas bem
apreendidas por meio de uma super-abundância de relacionações subjetivas e para
confundir estas reações subjetivas com as ligações objetivas entre as coisas.
Estas relações sincréticas e os “montes” de objetos: congregados em torno do
significado de uma palavra, refletem também os laços objetivos, na medida em
que estes últimos coincidirem com as relações existentes entre as percepções ou
impressões da criança. Por conseguinte, muitas palavras têm parcialmente o
mesmo significado para o adulto e a criança, especialmente as palavras que se
referem a objetos concretos que fazem parte do meio ambiente habitual da
criança. Os significados que os adultos e as crianças atribuem a determinada
palavra como que “coincidem” muitas vezes no mesmo objeto concreto e isto basta
para assegurar a compreensão mútua.
A
primeira fase da formação dos conceitos que acabamos de descrever subsume três
estádios distintos. Foi-nos possível observá-los pormenorizadamente no quadro
do estudo experimental.
O
primeiro estádio na formação dos conjuntos sincréticos que representam para a
criança o significado de determinada palavra artificial é a manifestação do
estádio das aproximações sucessivas (de “tentativas e erros”) no
desenvolvimento do pensamento. O grupo é criado ao acaso e a adjunção de cada
objeto não é mais do que uma simples tentativa ou hipótese, o objeto é imediatamente
substituído por outro, mal se verifica que a hipótese é errada, isto é, quando
o experimentador volta o objeto e mostra que este tem um nome diferente,
Durante
o estádio que se segue, a composição do grupo é grandemente determinada pela
posição espacial dos objetos experimentados, isto é, por uma organização
puramente sincrética do campo visual da criança. A imagem ou grupo sincréticos
formam-se como resultado da contiguidade no espaço ou no tempo dos elementos
isolados ou pelo fato de a percepção imediata da criança os levar a uma relação
mais complexa.
Durante
o terceiro estádio da primeira fase da formação dos conceitos a imagem
sincrética repousa numa base mais complexa: é composta de elementos retirados
de diferentes grupos ou “montes” já anteriormente formados pela criança da
forma que acima se descreveu. Estes elementos sujeitos a uma nova combinação
não têm qualquer relação intrínseca entre si, de forma que a nova formação
possui a mesma “coerência incoerente” que os primeiros conjuntos. A única
diferença reside no fato de que ao tentar dar significado a um novo nome a
criança já consegue seguir uma operação a dois tempos, mas esta operação mais
elaborada permanece sincrética e não produz uma ordem mais elevada do que a
simples reunião de “montes”.
V
A
segunda fase importante na via da gênese do conceito engloba muitas variações
de um tipo de pensamento que designaremos por “pensamento por complexos”. Num
complexo, os objetos individuais isolados encontram-se reunidos no cérebro da
criança não só pelas suas impressões subjetivas, mas também por relações
realmente existentes entre esses objetos. Isto é um novo passo em frente, uma
progressão para um nível muito superior.
Quando
atinge esse nível a criança já superou parcialmente o seu egocentrismo. Já não
confunde as relações entre as suas impressões com relações entre coisas — passo
decisivo para abandonar o sincretismo e se aproximar do pensamento objetivo. O
pensamento por meio de complexos já é um pensamento coerente e objetivo, embora
não reflita as relações objetivas da mesma forma que o pensamento conceptual.
No
pensamento dos adultos persistem certos resíduos do pensamento por meio de
complexos. Os nomes de família são talvez o melhor exemplo disto. Todo o nome
de família, (“Petrov”, por exemplo) subsume o indivíduo duma maneira que se
assemelha estreitamente ao modo de funcionamento dos complexos infantis. A
criança que atingiu esse estádio de desenvolvimento como que pensa em termos de
nomes de família; quando começa a organizar o universo dos objetos isolados,
fá-lo agrupando-os em famílias separadas, mutuamente relacionadas.
Num
complexo, as ligações entre os seus componentes são mais concretas e factuais
do que abstratas e lógicas; do mesmo modo, também não classificamos uma pessoa na
família Petrov por haver qualquer relação lógica entre essa pessoa e os outros
membros portadores do nome. São os fatos que ditam a resposta.
As
ligações factuais que subjazem aos complexos são descobertas através da
experiência. Por conseguinte, um complexo é, acima de tudo, e principalmente,
um agrupamento concreto de objetos ligados por nexos factuais. Como um complexo
não é formado no plano do pensamento lógico abstrato, os nexos que o geram, bem
assim como os nexos que ajuda a criar, carecem de unidade lógica; podem ser de
muitos e diferentes tipos. Todo e qualquer nexo existente pode levar à criação
de um complexo. É essa a principal diferença entre um complexo e um conceito.
Enquanto os conceitos agrupam os objetos em função de um atributo, as ligações
que unem os elementos de um complexo com o todo e entre si podem ser tão
diversas quanto os contatos e as relações existentes na realidade entre os
elementos.
Na
nossa investigação observamos cinco tipos fundamentais de complexos que se
sucediam uns aos outros durante este estádio de desenvolvimento.
Chamamos
ao primeiro tipo de complexo o tipo associativo. Pode basear-se em todo e
qualquer nexo que a criança note entre os objetos da amostra e os objetos de
alguns outros blocos. Na nossa experiência o objeto-amostra, o que fora dado em
primeiro lugar à criança com o nome à vista, forma o núcleo do grupo a ser
construído. Na construção de um complexo associativo, a criança pode
acrescentar um bloco ao objeto de partida por ter a mesma cor que este, juntando
a seguir outro porque é semelhante ao núcleo pela sua forma e dimensão ou por
qualquer outro atributo que lhe chame a atenção. Qualquer conexão entre o
objeto do núcleo e outro qualquer objeto basta para que a criança inclua esse
objeto no grupo e o designe pelo “nome de família”. A conexão entre o núcleo e
o outro objeto não tem que ser um traço comum, como por exemplo, a mesma cor ou
forma; uma semelhança ou um contraste, ou uma proximidade no espaço podem
também servir para estabelecer a ligação.
Para
a criança dessa idade a palavra deixa de ser o nome próprio do objeto singular;
torna-se o nome de família de um grupo de objetos relacionados entre si por
muitas e variadas formas, tantas e tão variadas como as relações entre as
famílias humanas.
VI
O
pensamento por complexos do segundo tipo consiste em combinar os objetos ou as
impressões concretas que estes deixam no espírito da criança em grupos que se
assemelham muito estreitamente a coleções. Os objetos são agrupados com base em
qualquer traço por que defiram, complementando-se, assim, mutuamente.
Nas
nossas experiências, a criança tomava objetos que diferiam da amostra pela cor,
pela forma ou o tamanho, ou por outra qualquer característica. Não pegava nelas
ao acaso; escolhia-os porque contrastavam com o atributo da amostra que tomara
como base do agrupamento e complementava esse atributo. O resultado disto era
uma coleção das cores e formas presentes no material da experiência, por
exemplo, um grupo de blocos de diferentes cores.
O
que guia a criança na construção da coleção era a associação por contraste e
não a associação por semelhança. No entanto esta forma de pensar combinava-se
por vezes com a forma associativa propriamente dita, atrás descrita, produzindo
uma coleção baseada em princípios mistos. A criança não consegue manter-se fiel
durante toda a experiência ao princípio que originalmente aceitara para base da
coleção. Insensivelmente passa a considerar uma característica diferente, de
forma que o grupo que daqui resulta se torna uma coleção mista, de cores e
turmas, por exemplo.
Este
longo e persistente estádio de desenvolvimento do pensamento da criança radica
na sua experiência, na qual verifica que coleções de coisas complementares
formam por vezes um conjunto ou um todo. A experiência ensina à criança certas
formas de agrupamento funcional: a chávena, o pires e a colher; um talher
constituído por um garfo, uma faca, uma colher e um prato; o conjunto de roupas
que veste. Tudo isto são modelos de conjuntos complexos naturais. Até os adultos,
quando falam dos pratos ou das roupas, habitualmente estão a pensar em
conjuntos de objetos concretos mais do que em conceitos generalizados.
Recapitulando,
a imagem sincrética que leva à formação de “montes” baseia-se em nexos vagos e
subjetivos; o complexo associativo fundamenta-se nas semelhanças existentes ou
outras ligações necessárias entre as coisas; o conjunto complexo, baseia-se nas
relações entre os objetos observadas através da experiência prática. Poderíamos
dizer que o conjunto baseado nos complexos é um agrupamento de objetos baseado
na sua participação na mesma operação prática — da sua cooperação funcional.
VII
Após
o estádio de pensamento que opera por complexos, há que colocar necessariamente
o complexo em cadeia — uma adjunção dinâmica e seqüencial de ligações isoladas
numa única, sendo o significado transmitido de um elo para o outro. Por
exemplo, se a amostra experimental é um triângulo amarelo, a criança poderia
por exemplo, pegar em alguns blocos triangulares até a sua atenção ser atraída
por, digamos, pela cor azul do bloco que a determinada altura acabara de
acrescentar ao conjunto; passaria a selecionar blocos azuis sem atender à forma
— angulosos, circulares, semicirculares. Isto, por seu turno, basta para voltar
a alterar o critério; esquecendo-se da cor, a criança passa a escolher blocos
redondos. O atributo decisivo varia constantemente durante todo o processo. O
tipo de nexos ou a forma como cada elo da cadeia se articula com o que o
precede e o que se lhe segue não apresentam coerência nenhuma. A amostra
inicial não tem importância fulcral. Cada elo, uma vez incluído num complexo em
cadeia, é tão importante como o primeiro e pode tornar-se um ímã para uma série
de outros objetos.
A
formação de cadeias demonstra flagrantemente a natureza factual concreta e
perceptiva do pensamento por complexos. Um objeto que entrou num complexo
devido a um dos seus atributos, não entra nele como portador desse atributo,
mas como elemento isolado com todos os seus atributos. A criança não abstrai o
traço isolado do todo restante, nem lhe confere um papel especial como acontece
com os conceitos. Nos complexos a organização hierárquica está ausente: todos
os atributos são funcionalmente equivalentes. A amostra pode ser completamente
esquecida quando se forma uma ligação entre dois objetos diferentes. Estes
objetos podem não ter nada em comum com alguns dos outros elementos e, no
entanto, fazerem parte da mesma cadeia por força de compartilharem um atributo
com outro dos elementos.
Por
conseguinte, o complexo em cadeia pode ser considerado como a forma mais pura
do pensamento por meio dos complexos. Ao contrário do complexo associativo,
cujos elementos, no fim de contas, se encontram interligados por meio de um
elemento — o núcleo do complexo — o complexo em cadeia não tem núcleo, há
relações entre elementos isolados, mas nada mais.
Um
complexo não se eleva acima dos seus elementos como acontece com o conceito;
funde-se com os objetos concretos que o constituem. Esta fusão do geral com o
particular, entre o complexo e os seus elementos, esta amálgama psíquica, como
Werner lhe chamava, é a característica distintiva de todo o pensamento por
complexos — e do complexo em cadeia, muito em particular.
VIII
Como
o complexo em cadeia é factualmente inseparável do grupo de objetos concretos
que o formam, adquire amiúde uma qualidade vaga e flutuante O tipo e a natureza
das ligações podem mudar de elo para elo imperceptivelmente quase. Muitas
vezes, uma semelhança muito remota basta para criar uma ligação entre dois elos
da cadeia. Por vezes os atributos são considerados semelhantes, não devido a
uma semelhança genuína mas devido a uma vaga impressão de que têm alguma coisa
em comum. Isto leva ao quarto tipo de complexo observado nas nossas
experiências. Poderíamos designá-lo por complexo difuso.
O
complexo difuso e marcado pela fluidez do próprio atributo que une os seus
elementos individuais. Formam-se grupos de objetos ou imagens perceptualmente
concretos por meio de ligações difusas ou indeterminadas. Por exemplo, uma das
crianças das nossas experiências escolheria indiferentemente para associar a um
triângulo, trapézios ou triângulos, pois aqueles lhe faziam lembrar triângulos
com os vértices cortados. Os trapézios conduzi-la-iam aos quadrados, os quadrados
aos hexágonos, os hexágonos aos semicírculos e estes por fim aos círculos. A
cor, como base para a seleção, é igualmente flutuante e variável. Os objetos
amarelos podem ser seguidos por objetos verdes; a seguir o verde pode mudar
para azul e o azul para o preto.
Os
complexos resultantes deste tipo de pensamento são tão indefinidos que podem
não ter limites. Tal qual uma tribo bíblica que aspira a multiplicar-se até ser
mais numerosa do que as estrelas do céu ou as areias do mar, também um complexo
difuso no espírito de uma criança é uma espécie de família que tem poderes de
expansão ilimitados por adjunção sucessiva de mais e mais membros ao grupo
original.
As
generalizações da criança nas áreas não sensoriais e não práticas do seu
pensamento que não podem ser facilmente verificáveis através da percepção ou da
ação são os equivalentes na vida real dos complexos difusos observados nas
experiências. É bem sabido que a criança é capaz de transições surpreendentes,
de espantosas generalizações e associações, quando o seu pensamento se aventura
para lá das fronteiras do pequeno mundo palpável da sua experiência. Fora desse
mundo, a criança constrói freqüentemente surpreendentes complexos ilimitados
pela universalidade das ligações que abarcam.
Estes
complexos ilimitados, porém, são construídos segundo os mesmos princípios dos
complexos concretos circunscritos. Em ambos os tipos de complexos, a criança
mantém-se dentro do limite das ligações concretas entre as coisas, mas, na
medida em que o primeiro tipo de complexos compreende objetos que se encontram
fora da esfera do seu conhecimento prático, estas ligações baseiam-se
naturalmente em atributos difusos irreais e instáveis.
IX
Para
completar o quadro do pensamento por meio de complexos. temos que descrever um
outro tipo de complexos — que como que constitui a ponte entre os complexos e o
estádio final e superior do desenvolvimento da gênese dos conceitos.
Chamamos
pseudo-conceitos a este tipo de complexos, porque a generalização formada no
cérebro, embora fenotipicamente se assemelhe aos conceitos dos adultos é
psicologicamente muito diferente do conceito propriamente dito; na sua essência
é ainda um complexo.
Na
montagem experimental, uma criança produz um pseudo-conceito sempre que cerca
uma amostra com objetos que poderiam também ser congregados com base num
conceito abstrato Por exemplo, quando a amostra é constituída por um triângulo
amarelo e a criança pega em todos os triângulos do material experimental,
poderia estar a ser orientada pela idéia geral ou conceito de triângulo. No
entanto, a análise experimental mostra que na realidade a criança é orientada
pela semelhança concreta visível e se limita a formar um complexo associativo
confinado a um certo numero de ligações, um certo tipo de conexões sensoras.
Embora os resultados sejam idênticos, o processo pelo qual são atingidos não é
de maneira nenhuma o mesmo que no pensamento conceptual (iii)
Temos
de deter-nos a observar este tipo de complexos com algum pormenor. Ele
desempenha um papel predominante no pensamento da criança na vida real e é
importante como elo de transição entre o pensamento por complexos e a
verdadeira formação de conceitos.
X
Os
pseudo-conceitos predominam sobre todos os outros complexos no pensamento da
criança em idade pré-escolar, pela simples razão de que, na vida real, os
complexos que correspondem ao significado das palavras não são espontaneamente
desenvolvidos pela criança: a trajetória seguida por um complexo no seu
desenvolvimento encontra-se pré-determinada pelo significado que determinada
palavra já possui na linguagem dos adultos.
Nas
nossas experiências, a criança, liberta da influência diretriz das palavras
familiares, era capaz de desenvolver significados de palavras e de formar
complexos de acordo com as suas preferências pessoais. Só através da
experimentação poderemos avaliar o tipo e a latitude desta atividade espontânea
de domínio da linguagem dos adultos. A atividade pessoal da criança não se
encontra de maneira nenhuma esterilizada, embora se encontre geralmente oculta
da vista e canalizada para vias complexas, por influência da linguagem dos
adultos.
A
linguagem do meio ambiente, como os seus significados estáveis, permanentes,
aponta o caminho que a generalização infantil seguirá. No entanto, constrangido
como se encontra, o pensamento da criança prossegue ao longo da via
pré-determinada, segundo a forma peculiar ao seu nível de desenvolvimento
intelectual. O adulto não pode transmitir à criança o seu modo de pensar.
Apenas lhe fornece o significado já acabado de uma palavra, em torno do qual a
criança forma um complexo — com todas as peculiaridades estruturais funcionais
e genéticas do pensamento por meio de complexos, mesmo quando o produto do seu
pensamento é na realidade idêntico, pelo seu conteúdo, a uma generalização que
poderia ter sido obtida por meio do pensamento conceptual. A semelhança externa
entre o pseudo-conceito e o conceito real, que torna muito difícil pôr a nu
este tipo de complexos é um dos mais importantes obstáculos para a análise
genética do pensamento.
A
equivalência funcional entre o complexo e o conceito, a coincidência que existe
na prática entre o significado de muitas palavras para o adulto e a criança de
três anos, a possibilidade de compreensão mútua e a aparente similitude dos
seus processos intelectivos levou a presumir-se erradamente que todas as formas
de pensamento e de atividade intelectual dos adultos já se encontram presentes
em embrião no pensamento das crianças e que na puberdade não se dá nenhuma
transformação radical. É fácil compreender a origem desta concepção errada. A
criança aprende muito precocemente uma grande quantidade de palavras que
significam a mesma coisa para ela e para o adulto. A compreensão mútua entre o
adulto e a criança cria a ilusão de que o ponto final do desenvolvimento do
significado das palavras coincide com o seu ponto de chegada, de que o
pensamento é fornecido já acabado à criança desde início e de que não se dá
nenhum desenvolvimento.
A
aquisição pela criança da linguagem dos adultos explica de fato a consonância
entre os complexos da primeira e os conceitos da segunda — por outras palavras,
a emergência de conceitos complexos ou pseudo-conceitos. As nossas
experiências, em que o pensamento das crianças não é entaramelado pelo
significado das palavras demonstra que, se não existissem os pseudo-conceitos,
os complexos da criança seguiriam uma evolução diferente dos conceitos dos
adultos e a comunicação verbal entre as crianças e os adultos seria impossível.
O
pseudo-conceito serve como elo de ligação entre o pensamento por complexos e o
pensamento por conceitos. É dual por natureza, pois um complexo já traz em si a
semente em germinação de um conceito. O intercâmbio verbal com os adultos
torna-se assim um poderoso fator de desenvolvimento dos conceitos infantis. A
transição entre o pensamento por complexos e o pensamento por conceitos passa
despercebida à criança, porque os seus pseudo-conceitos já coincidem no seu
conteúdo com os conceitos dos adultos.
Assim,
a criança começa a operar com conceitos, a praticar o pensamento conceptual
antes de se aperceber ter plena consciência da natureza destas operações. Esta
situação genética muito peculiar, não se limita ao processo de acessão aos
conceitos; é a regra mais do que a exceção no desenvolvimento intelectual das
crianças.
XI
Vimos
já com clareza que só a análise experimental nos pode dar os vários estádios e
formas do pensamento por complexos Esta análise permite-nos pôr a nu, duma
forma esquemática, a verdadeira essência do processo genético de formação dos
conceitos e dá-nos assim a chave para compreender o processo tal como se
desenrola na vida real. Mas um processo de formação dos conceitos
experimentalmente induzidos nunca refletem perfeitamente o desenvolvimento
genético exatamente como ocorre na vida real. As formas fundamentais do
pensamento concreto que enumeramos aparecem na realidade em estados mistos e a
análise morfológica até agora exposta terá que ser seguida por uma análise
funcional e genética. Devemos tentar correlacionar as formas de pensamento
complexo descobertas na experiência com as formas de pensamento que encontramos
no desenvolvimento real da criança e verificar as duas séries de observações
uma com a outra.
A
partir das nossas experiências concluímos que, no estádio do pensamento
complexo, os significados das palavras tal como as crianças os percebem
referem-se aos mesmos objetos que o adulto tem no espírito, o que assegura a
compreensão entre a criança e o adulto, mas que a criança pensa a mesma coisa
de maneira diferente, por meio de operações mentais diferentes. Tentaremos
verificar esta proposição comparando as nossas observações com os dados sobre
as peculiaridades do pensamento infantil e o pensamento primitivo em geral
coligidos pela ciência psicológica.
Se
observarmos que grupos de objetos a criança relaciona entre si ao transferir o
significado das primeiras palavras e como procede, descobrimos uma mistura das
duas formas a que nas nossas experiências chamamos complexo associativo e
imagem sincrética.
Tomemos
de Idelberger um exemplo, que é citado por Werner (55)(55, p.206). No
251o. dia de vida, uma criança emprega a palavra au-au a uma figura de
porcelana chinesa que representa uma rapariga e com que a criança gosta de
brincar No 307o. dia, chama au-au a um cão que ladra no pátio, aos retratos dos
avós, a um cão de brinquedo e a um relógio. No 331o. dia aplica o mesmo nome a
um pedaço de pele com uma cabeça de animal notando particularmente os olhos de
vidro e a outra pele sem cabeça. No 334o.aplica-o a uma boneca de borracha que
chia quando é comprimida e no 396o. dia aplica-o aos botões de punho do pai. No
443o. dia profere a mesma palavra mal vê uns botões de pérola dum vestido e um
termômetro de banho.
Werner
analisou este exemplo e concluiu que se podia catalogar da seguinte forma todas
as coisas a que a criança chamava au-au: em primeiro lugar, os cães e os cães
de brinquedo e pequenos objetos oblongos que se assemelhassem à boneca de
porcelana (por exemplo, a boneca de borracha e o termômetro); em segundo lugar,
os botões de punho, os botões de pérola e outros pequenos objetos semelhantes.
O atributo que servia de critério eram as superfícies oblongas ou as
superfícies brilhantes parecidas com olhos.
É
evidente que a criança unia estes objetos concretos segundo os princípios dos
complexos. Estas formações espontâneas de complexos preenchem completamente
todo o primeiro capítulo da história do desenvolvimento das palavras infantis.
Há
um exemplo bem conhecido e freqüentemente citado deste tipo de derivas: a
utilização pelas crianças da palavra quá-quá para designar primeiro um pato
nadando na água dum lago e depois toda a espécie de líquidos, incluindo o leite
engarrafado; quando acontece a criança observar uma moeda com uma águia
desenhada, a moeda passa a ser um quá-quá sendo depois a designação transferida
para todos os objetos redondos com o aspecto de moedas. Eis um complexo em
cadeia típico: cada novo objeto incluído na cadeia tem algum atributo comum com
outro elemento, mas os atributos de ligação estão constantemente a variar.
A
formação de complexos é responsável pelo fenômeno peculiar de uma palavra
poder, em diferentes situações, ter significados diferentes ou até opostos,
desde que haja qualquer nexo associativo entre esses significados. Assim, uma
criança pode dizer antes, quer para antes e depois, ou amanhã para amanhã e
ontem, indiferentemente. Temos aqui uma perfeita analogia com algumas línguas
antigas — o Hebreu, o Grego e o Latim — nas quais uma mesma palavra indica por
vezes também o seu contrário. Os Romanos, por exemplo, tinham uma mesma palavra
para alto e baixo. Tal casamento de significados opostos só é possível em
resultado do pensamento por complexos.
O
pensamento primitivo tem outro traço muito interessante que nos mostra o
pensamento por complexos em ação e indica a diferença entre os pseudo-conceitos
e os conceitos. Este traço, que Levy-Bruhl foi o primeiro a reconhecer nos
povos primitivos, Storch nos doentes mentais e Piaget nas crianças — é
designado correntemente por contaminação. Aplica-se o termo à relação de
identidade parcial ou estreita interdependência estabelecida pelo pensamento
primitivo entre dois objetos ou fenômenos que na realidade não apresentam
qualquer continuidade nem nenhuma outra conexão reconhecível.
Levy-Bruhl
(26) cita von
den Steinen a propósito de um flagrante caso de participação observado nos
Bororo do Brasil que se orgulham de serem papagaios vermelhos. Von den Steinen
a princípio não sabia como interpretar uma afirmação tão categórica, mas acabou
por achar que os índios queriam significar precisamente isso. Não se tratava
apenas de uma palavra de que se tivessem apropriado, ou duma relação familiar
sobre que insistissem: o que queriam significar era uma identidade de
essências.
Parece-nos
que o fenômeno da contaminação não teve nenhuma explicação psicológica
suficientemente convincente e isto por duas razões: em primeiro lugar, as
investigações tenderam a centrar-se sobre o conteúdo do fenômeno e a descurar
as operações mentais nele envolvidas, isto é, a estudar o produto em vez do
processo; em segundo lugar, não se efetuaram quaisquer tentativas adequadas
para ver o fenômeno no contexto de outras conexões e relações formadas pelo
cérebro primitivo. Acontece demasiadas vezes que aquilo que atrai a atenção das
investigações é o fantástico, o extremo, como por exemplo, o fato de os Bororo
se considerarem como papagaios vermelhos a expensas de fenômenos menos
espetaculares. No entanto, uma análise mais aturada mostra que até as conexões
que não se chocam abertamente com a nossa lógica são formadas pelos povos
primitivos com base nos princípios do pensamento por complexos.
Como
as crianças de certa idade pensam por pseudo-conceitos, como, para elas, as
palavras designam complexos de coisas concretas, o seu pensamento terá
necessariamente como resultado a contaminação, isto é, conexões que não são
aceitáveis pela lógica dos adultos. Determinada coisa pode ser incluída em
diferentes complexos por força dos seus diferentes atributos concretos e.
consequentemente, pode ter vários nomes. A utilização de um ou de outro depende
do complexo que é ativado em determinado momento. Nas nossas experiências
observamos freqüentemente casos deste tipo de contaminação em que um objeto era
incluído simultaneamente em dois ou mais complexos. A contaminação não é uma
exceção no pensamento por complexos, muito pelo contrário, é a regra.
Os
povos primitivos também pensam por complexos e, consequentemente, nas suas
línguas a palavra não funciona como uma entidade portadora de um conceito, mas
como um “nome de família” para grupos de objetos concretos congregados não
logicamente, mas factualmente. Storch mostrou que este mesmo tipo de raciocínio
é característico dos esquizofrênicos que regridem do pensamento conceptual para
um tipo mais primitivo de intelecção, rico em imagens e símbolos. Ele considera
que o uso das imagens concretas em lugar dos pensamentos abstratos é um dos
mais característicos traços do pensamento primitivo. Assim, a criança, o homem
primitivo, e o alienado, por muito que os seus processos mentais difiram no respeitante
a outros aspectos importantes, manifestam todos fenômenos de contaminação —
sintoma do pensamento primitivo por complexos e da função das palavras como
nomes de família.
Estamos
portanto em crer que a forma como Levy-Bruhl interpreta a contaminação é
incorreta. Este autor aborda o fato de os Bororo afirmarem serem papagaios
vermelhos do ponto de vista da nossa lógica, presumindo que também para o homem
primitivo tal asserção significa uma identidade de essências. Mas como, para os
Bororo, as palavras designam grupos de objetos e não conceitos, a sua asserção
tem diferente significado. A palavra que designa papagaio é uma palavra que
designa um complexo de que eles fazem parte conjuntamente com os papagaios. Não
implica identidade, tal como o fato de duas pessoas compartilharem o mesmo nome
de família não implica que sejam uma e a mesma pessoa.
XII
A
história da linguagem mostra claramente que o pensamento por complexos com
todas as suas peculiaridades é o próprio fundamento do desenvolvimento lingüístico.
A
lingüística moderna estabelece a distinção entre o significado de uma palavra,
ou expressão, e o referente, isto é, o objeto que designa. Pode haver um só
significado e vários referentes, ou diferentes significados e um só referente.
Quer digamos “o vencedor de Jena” ou o “derrotado de Waterloo”, estamos a
referir-nos à mesma pessoa e, no entanto, o significado das duas expressões é
diferente. Só há uma categoria de palavras que têm por única função a função de
referência: são os nomes próprios. Usando esta terminologia, podíamos dizer que
as palavras das crianças e dos adultos coincidem, pelos seus referentes mas não
pelos seus significados.
Também
na História das línguas encontramos exemplos de identidades de referentes
combinadas com divergências de significados. Esta tese é confirmada por uma
grande quantidade de fatos. Os sinônimos existentes em cada língua são um bom
exemplo disto. A língua russa tem duas palavras para designar a Lua, a que se
chegou através de diferentes processos de pensamento claramente refletidos pela
etimologia Um termo deriva da palavra latina que conota “capricho, fantasia,
inconstância” e tinha por intenção óbvia sublinhar a volubilidade de formas que
distingue a Lua de todos os outros corpos celestes. A palavra que está na
origem do segundo termo, que significa “mediador”, foi sem dúvida impregnada
pelo fato de o tempo poder ser medido pelas fases da Lua. Entre as línguas o
mesmo acontece. Por exemplo, em Russo, a palavra que significa alfaiate deriva
de uma velha palavra que designa uma peça de pano; em Francês, Inglês e Alemão
significa “o que talha”.
Se
seguirmos a evolução de uma palavra em qualquer linguagem e por mais
surpreendente que tal possa parecer à primeira vista, veremos que o seu
significado se transforma exatamente da mesma forma que o pensamento das
crianças. No exemplo que citamos, a palavra au-au aplicava-se a uma série de
objetos totalmente distintos do ponto de vista dos adultos. No desenvolvimento
da linguagem semelhantes transferências de significado não constituem exceção,
antes pelo contrário, são regra. O russo tem uma palavra para dia-e-noite, a
palavra sutki. A principio. significava costura, junção de duas peças de roupa,
algo entretecido, passou depois a ser utilizada para designar todo e qualquer
tipo de junção, por exemplo, a junção de duas paredes de uma casa e, portanto,
um canto ou esquina; começou a ser utilizada metaforicamente para designar
“crepúsculo”, a altura “em que o dia e a noite se casam, se encontram”; passou
depois a designar o intervalo entre um crepúsculo e o seguinte, o atual sutkí
de 24 horas. Palavras tão diversas como costura, canto, crepúsculo e 24 horas
são englobadas num só complexo no decurso do desenvolvimento de uma palavra da
mesma forma que uma criança incorpora diferentes coisas num grupo com base na
imagética concreta.
Quais
são as leis que regem a formação das famílias de palavras? O mais freqüente é
os novos objetos serem designados em função de atributos que não são
essenciais, de forma que a palavra não exprime verdadeiramente a natureza da
coisa nomeada. Como um nome nunca é um conceito quando aparece pela primeira
vez, é simultaneamente demasiado limitado e demasiado vasto. Por exemplo, a
palavra russa que designa rato significava primeiramente “ladrão”. Mas uma vaca
não é nem de longe apenas um animal com cornos, nem um rato se limita a roubar;
assim, os seus nomes são demasiado limitativos. Por outro lado, são demasiado
latos, na medida em que esses epítetos podem ser aplicados — e realmente são-no
em certas línguas — a um certo número de outras criaturas. O resultado disto é
uma luta incessante, no seio da língua em desenvolvimento, entre o pensamento
conceptual e a herança, o legado, do primitivo pensamento por meio de
complexos. O substantivo criado por um complexo, o nome baseado num, entra em
conflito com o conceito que passou a representar. Na luta entre o conceito e a
idéia que deu origem ao nome, a imagem perde gradualmente terreno; desvanece-se
da consciência e da memória e o significado original da palavra acaba por ficar
obliterado. Há alguns anos toda a tinta de escrever era negra e a palavra russa
que designa tinta refere-se à sua cor negra. Mas isso não nos impede de
falarmos hoje de “negrura” vermelha, verde ou azul sem notarmos a incongruência
da combinação. As transferências dos nomes para novos objetos ocorrem por
contiguidade ou semelhança, isto é, com base em ligações concretas típicas do
pensamento por complexos. As palavras que estão sendo elaboradas na nossa época
apresentam-nos muitos exemplos do processo como coisas heterogêneas se misturam
num mesmo agrupamento. Quando falamos da “perna da mesa”, do “cotovelo da rua”,
da “boca na botija”, estamos a agrupar objetos duma forma semelhante aos
complexos. Nestes casos, as semelhanças visuais e funcionais que servem de
mediadores no processo são bastante claras. A transferência pode ser
determinada, no entanto, pelas associações mais variadas, e quando se trata de
uma transferência que ocorreu há muito tempo, é impossível reconstruir as conexões
existentes com conhecimento perfeito do pano de fundo histórico do
acontecimento
A
palavra primitiva não é um símbolo direto de um conceito mas antes uma imagem,
um retrato, um esboço mental, uma curta história sobre esse conceito quer
dizer, uma autêntica obra de arte em ponto pequeno. Ao nomearmos um objeto por
meio de um conceito pictórico desse gênero, vinculamo-lo a um grupo em que
figura uma certa quantidade de outros objetos. A esse respeito, o processo de
criação da linguagem é análogo ao processo de formação dos complexos no
desenvolvimento intelectual das crianças.
XIII
Na
linguagem das crianças surdas-mudas podemos aprender muitas coisas acerca do
pensamento por complexos, pois a estas crianças falta o principal estímulo para
a formação de conceitos. Privados de intercâmbio social com os adultos e
deixados a si próprios para determinarem que objetos devem agrupar sob a égide
de um mesmo nome, formam os seus complexos livremente e as características
especiais do pensamento por complexos aparecem na sua forma pura e nítida.
Na
linguagem por sinais dos surdos-mudos, o ato de tocar um dente pode ter três
significados diferentes: “branco”, “pedra” e “dente”. Os três significados
pertencem a um mesmo complexo que, para melhor elucidação, exige um gesto
suplementar de apontar ou imitativo, de forma a precisar-se que objeto se quer
significar em cada caso concreto. As duas funções da palavra encontram-se, por
assim dizer, separadas. Um surdo-mudo toca o dente e a seguir, apontando para a
sua superfície ou fazendo um gesto de arremesso, diz-nos a que objetos se
refere em cada caso.
Para
comprovarmos e complementarmos os nossos resultados experimentais fomos buscar
alguns exemplos de gênese de complexos do desenvolvimento lingüístico das
crianças, do pensamento dos povos primitivos e do desenvolvimento da linguagem
enquanto tal. Dever-se-á notar no entanto que até o adulto normal, que é capaz
de formar e utilizar conceitos, não opera sistematicamente com conceitos ao
pensar. Para lá dos processos primitivos de pensamento dos sonhos, o adulto
desvia-se constantemente do pensamento conceptual para o pensamento concreto do
tipo dos complexos. A forma transitória do pensamento, o pseudo-conceito, não
se limita ao pensamento das crianças; também nós recorremos a ela muito
freqüentemente na nossa vida de todos os dias.
XIV
A
nossa investigação levou-nos a dividir o processo de gênese dos conceitos em
três fases principais. Descrevemos duas dessas fases, marcadas pela
predominância da imagem sincrética e do complexo, respectivamente, e chegamos
agora à terceira fase. Tal como na segunda, pode ser subdividida em vários
estádios.
Na
realidade, as novas formações não aparecem necessariamente apenas após o
pensamento por complexos ter completado a sua trajetória de desenvolvimento.
Duma forma rudimentar podem ser observadas muito antes de a criança começar a
pensar em termos de pseudo-conceitos. Essencialmente, no entanto, as formas que
vamos começar a descrever têm uma segunda raiz, uma raiz independente. Possuem uma
função genética diferente da dos complexos no desenvolvimento mental da
criança.
A
principal função dos complexos consiste em estabelecer ligações e relações. O
pensamento por complexos dá início à unificação das impressões dispersas; ao
organizar elementos discretos da experiência em grupos cria uma base para
futuras generalizações.
Mas
o conceito desenvolvido pressupõe algo mais do que a unificação Para formar
esse conceito é também necessário abstrair, isolar elementos e ver os elementos
abstraídos da totalidade da experiência concreta em que se encontram
mergulhados. Na genuína gênese dos conceitos é tão importante unificar como
separar: a síntese tem que combinar-se com a análise. O pensamento por
complexos não pode efetuar ambas as operações. A superabundância, a
superprodução de conexões e a debilidade da abstração constituem a essência
mesma do pensamento por complexos. A função do processo que amadurece durante a
terceira fase do desenvolvimento da gênese dos conceitos é constituída pela
satisfação do segundo requisito, embora os seus primeiros passos radiquem num
período muito anterior.
Na
nossa experiência, o primeiro passo em direção à abstração dava-se quando a
criança começava a agrupar o máximo número possível de objetos, por exemplo,
objetos que eram pequenos e redondos ou vermelhos e chatos. Como o material
experimental não contém objetos idênticos, até os que apresentam o maior número
de semelhanças são diferentes sob certos aspectos. Daqui se segue que, ao
colher assim os que melhor “se casavam”, a criança tem que prestar mais atenção
a certos traços de um objeto do que aos outros — dando-lhe um tratamento
preferencial, por assim dizer. Os atributos, ao somarem-se, fazem com que o
objeto que apresenta o máximo de semelhanças com a amostra se torne o centro de
atenção, abstraindo-se assim, em certo sentido, dos atributos a que a criança
presta menos atenção. A primeira tentativa de abstração não é obvia enquanto
tal, porque a criança abstrai todo um grupo de traços, sem os distinguir claramente
uns dos outros; amiúde, a abstração de um tal grupo de atributos baseia-se
apenas numa impressão vaga e geral de semelhança dos objetos.
No
entanto, o caráter global da percepção da criança abriu brechas. Os atributos
de um objeto foram divididos em duas partes a que não se deu a mesma
importância — e isto é um começo de abstração positiva e negativa. Um objeto
não entra já no complexo in toto, com todos os seus atributos — alguns vêem
vedada a sua entrada; se, com isso, o objeto é empobrecido, os atributos que
provocaram a sua inclusão no complexo adquirem um relevo mais vincado no
pensamento da criança.
XV
Durante
o estádio seguinte do desenvolvimento da abstração, o agrupamento de objetos
com base no máximo de semelhança possível é superado pelo agrupamento com base
num único atributo, por exemplo, o agrupamento exclusivo dos objetos redondos,
ou dos objetos chatos. Embora o produto não se possa distinguir do produto de
um conceito, estas formações, tal como os pseudo-conceitos, são meras percursoras
dos autênticos conceitos. Segundo o uso introduzido por Gross(14), podemos
chamar a estas formações conceitos potenciais.
Os
conceitos potenciais resultam de uma espécie de abstração isolante de natureza
tão primitiva que se encontra presente em certo grau não só nas crianças de
muito tenra idade como também nos animais. Pode treinar-se as galinhas a
responderem a um atributo distinto em diferentes objetos, como por exemplo, a
cor ou a forma, se esse atributo for sinal de comida acessível; os chimpanzés
de Koehler, tendo aprendido a utilizar um pau como instrumento, utilizavam
outros objetos compridos quando precisavam de um pau e não o tinham.
Mesmo
nos bebês muito pequenos, os objetos ou as figuras que apresentam certos traços
comuns evocam respostas semelhantes. No mais precoce estádio pré-verbal as
crianças esperam nitidamente que situações semelhantes conduzam a desfechos
semelhantes. A partir do momento em que uma criança associou uma palavra com um
objeto, facilmente se aplica a um novo objeto que a impressiona por, em certos
aspectos, ser semelhante ao primeiro. Os conceitos potenciais, portanto, podem
ser formados, tanto na esfera do pensamento perceptual, como na esfera do pensamento
prático, virado para a ação — com base na semelhança de significados
funcionais, no segundo. Estes últimos são uma importante fonte de conceitos
potenciais. É do conhecimento geral que os significados funcionais desempenham
um papel muito importante no pensamento da criança infantil. Quando Se lhe pede
que explique uma palavra, uma criança dir-nos-á aquilo que o objeto designado
pela palavra em questão faz, ou — o que é mais freqüente — o que se pode fazer
com esse objeto. Até os conceitos abstratos são muitas vezes traduzidos na
linguagem da ação concreta: “Razoável quer dizer quando estou a suar e não me
deixo estar numa corrente de ar”.
Os
conceitos potenciais já desempenham um certo papel no pensamento por complexos.
Por exemplo, os complexos associativos pressupõem a existência de que se
“abstrai” um traço comum de diferentes unidades. Mas enquanto o pensamento por
complexos predominar, o traço abstraído é instável, não tem posição
privilegiada e facilmente cede a sua dominância temporária a outros traços. Nos
conceitos potenciais propriamente ditos, um traço que alguma vez tenha sido
abstraído não se volta a perder facilmente no meio de outros traços. A
totalidade concreta de traços foi destruída pela sua abstração e abre-se a
possibilidade de unificar os traços numa base diferente. Só o domínio da
abstração, combinado com o pensamento por complexos desenvolvido permite à
criança avançar para a formação dos conceitos genuínos. Um conceito só surge
quando os traços abstraídos são novamente sintetizados e a abstração
sintetizada daí resultante se torna o principal instrumento de pensamento. Como
ficou provado pelas nossas experiências, é a palavra que desempenha o papel
decisivo neste processo; a palavra é utilizada deliberadamente para orientar
todos os processos parciais do estádio superior da gênese dos conceitos (iv).
XVI
No
nosso estudo experimental dos processos intelectuais dos adolescentes
observamos como as formas primitivas de pensamento, quer as sincréticas quer as
que se baseiam nos complexos, vão desaparecendo gradualmente, como os conceitos
potenciais vão sendo usados cada vez menos e os verdadeiros conceitos começam a
formar-se — raramente a princípio e depois com crescente freqüência. Mesmo após
o adolescente ter aprendido a produzir conceitos, não abandona as formas mais
elementares; estas continuam a operar durante um certo período, continuando até
a predominar em muitas áreas do seu pensamento. A adolescência é menos um
período de consumação do desenvolvimento do que de transição e crise.
O
caráter transitório do pensamento do adolescente torna-se particularmente
evidente quando observamos o funcionamento real dos conceitos acabados de
adquirir. Certas experiências especialmente projetadas para estudar as
operações que os adolescentes levam a cabo com os conceitos põem em evidência
acima de tudo uma flagrante discrepância entre a sua capacidade para formar
conceitos e a sua capacidade para os definir.
O
adolescente formará e utilizará muito corretamente um conceito numa situação
concreta, mas sentirá uma estranha dificuldade em exprimir esse conceito por
palavras e a definição verbal, em muitos casos, será muito mais restritiva do
que seria de esperar pela forma como o adolescente utilizou o conceito. A mesma
discrepância ocorre no pensamento dos adultos, mesmo em níveis de
desenvolvimento muito avançados. Isto está de acordo com o pressuposto de que
os conceitos evoluem de forma muito diferente da elaboração deliberada e
consciente da experiência em termos de lógica. A análise da realidade com a
ajuda dos conceitos precede a análise dos próprios conceitos.
O
adolescente defronta-se com outros obstáculos quando tenta aplicar um conceito
que formou numa situação específica a um novo conjunto de objetos e
circunstâncias em que os atributos sintetizados no conceito aparecem em
configurações que diferem da original (exemplo disto seria a aplicação a
objetos quotidianos do novo conceito “pequeno e alto” desenvolvido no teste dos
blocos). No entanto, o adolescente corretamente é capaz de realizar essa
transferência num estádio relativamente precoce do desenvolvimento.
Muito
mais difícil do que a transferência em si é a tarefa de definir um conceito
quando já não tem quaisquer raízes na situação original e tem que ser formulado
num plano puramente abstrato, sem referência a nenhuma situação ou impressão
concretas Nas nossas experiências, há crianças ou adolescentes que resolvem
corretamente o problema da formação do conceito, mas descem a um nível muito
mais primitivo de pensamento quando se trata de definir verbalmente o conceito
e começam muito pura e simplesmente a enumerar os vários objetos a que aquele
se pode aplicar na configuração particular em que se encontra. Neste caso
operam com a palavra como um conceito mas definem-no como complexo — forma de
pensamento esta que vacila entre o conceito e o complexo e que é característica
e típica desta idade de transição.
A
maior de todas as dificuldades é a aplicação de um conceito que o adolescente
conseguiu finalmente apreender e formular a um nível abstrato a novas situações
que têm que ser encaradas nos mesmos termos abstratos — um tipo de
transferência que habitualmente só é dominado pelo fim do período de
adolescência A transição do abstrato para o concreto vem a verificar-se tão
árdua para o jovem, como a primitiva transição do concreto para o abstrato. As
nossas experiências não deixam quaisquer dúvidas que neste ponto, de qualquer
forma, a descrição da gênese dos conceitos dada pela psicologia tradicional, a
qual se limita a reproduzir o esquema da lógica formal, não tem qualquer
relação com a realidade.
Segundo
a escola clássica, a formação dos conceitos é realizada pelo mesmo processo do
retrato de família nas fotografias compósitas de Galton. Estas são realizadas
tirando fotografias de vários membros de uma mesma família sobre mesma chapa,
de forma que os traços de família comuns a várias pessoas surgem com
extraordinária vivacidade, enquanto os traços pessoais variáveis de cada um se
esfumam com a sobreposição. Presume-se que na formação de conceitos se dá uma
intensificação de traços semelhantes; segundo a teoria tradicional a soma
destes traços é o conceito. Na realidade, como alguns psicólogos há muito
notaram, e as nossas experiências demonstram, o caminho pelo qual os
adolescentes atingem a formação dos conceitos nunca se conforma com este
esquema lógico. Quando se vê em toda a sua complexidade o processo de gênese
dos conceitos, este surge-nos como um movimento de pensamento dentro da
pirâmide dos conceitos, que oscila constantemente entre duas direções, do
particular para o geral e do geral para o particular.
As
nossas investigações mostraram que um conceito se forma não através do jogo
mútuo das associações, mas através de uma operação intelectual em que todas as
funções mentais elementares participam numa combinação específica. Esta
operação é orientada pela utilização das palavras como meios para centrar
ativamente a atenção, para abstrair certos traços, sintetizá-los e
representá-los por meio de símbolos.
Os
processos que conduzem à formação dos conceitos desenvolvem-se segundo duas
trajetórias principais. A primeira é a formação dos complexos: a criança une
diversos objetos em grupos sob a égide de um “nome de família” comum; este
processo passa por vários estádios. A segunda linha de desenvolvimento é a
formação de “conceitos potenciais”, baseados no isolamento de certos atributos
comuns. Em ambos os processos o emprego da palavra é parte integrante dos
processos genéticos e a palavra mantém a sua função orientadora na formação dos
conceitos genuínos a que o processo conduz.
7. Pensamento e linguagem
Esqueci a
palavra que pretendia
dizer e o meu pensamento,
desencarnado, volta ao reino das sombras
(de um poema de Mandelstham)
dizer e o meu pensamento,
desencarnado, volta ao reino das sombras
(de um poema de Mandelstham)
I
Começamos o nosso estudo com
uma tentativa de pôr a nu a relação existente entre o pensamento e a linguagem
nos estádios iniciais do desenvolvimento filogenético e ontogenético. Não
encontramos nenhuma interdependência específica entre as raízes genéticas do
pensamento e da palavra. Tornou-se patente que a relação interna que buscávamos
não era um requisito prévio do desenvolvimento histórico da consciência humana,
antes era um seu produto.
Nos animais, mesmo naqueles
antropóides cuja fala é foneticamente como a fala humana e cujo intelecto se
aparenta com o do homem, a linguagem e o pensamento não se encontram
interrelacionados. É indubitável que, no desenvolvimento da criança, existe
também um período pré-linguístico do pensamento e um período pré-intelectual a
fala: o pensamento e a palavra não se encontram relacionados por uma relação
primária. No decurso da evolução do pensamento e da fala gera-se uma conexão
entre um e outra que se modifica e desenvolve.
Seria errado no entanto
encarar o pensamento e a fala como dois processos não relacionados entre si,
seja como dois processos paralelos, seja como dois processos que se
entrecruzassem em certos momentos e se influenciassem mutuamente duma forma
mecânica.
A ausência de uma relação
primária não quer dizer que a conexão entre eles só possa formar-se de uma
forma mecânica.
A futilidade da maior parte
das investigações primitivas devia-se em grande parte ao fato de se pressupor
que o pensamento e a palavra eram elementos independentes e isolados e que o
pensamento verbal era fruto da sua união externa.
O método de análise baseado
nesta concepção estava votado ao fracasso. Buscava explicar as propriedades do
pensamento verbal cindindo-o nos elementos que o compunham — a palavra e o
pensamento — nenhum dos quais tomado em separado possuiria as propriedades do
todo.
Este método não é uma
verdadeira análise que nos seja útil para resolver problemas concretos, antes
conduz à generalização.
Comparamo-lo à análise da
água em hidrogênio e oxigênio — que só pode dar resultado em descobertas
aplicáveis a toda a água existente na natureza, desde o Oceano Pacífico até uma
gota de água da chuva.
Semelhantemente, a afirmação
segundo a qual o pensamento verbal se compõe de processos intelectuais e funções
de discurso propriamente ditas aplica-se a todo o pensamento verbal e não
explica nenhum dos problemas específicos com que se defronta o estudioso do
pensamento verbal.
Tentamos uma nova abordagem
do problema e substituímos a análise em elementos pela análise em unidades,
cada uma das quais retém, sob uma forma simples, todas as propriedades do todo.
Encontramos esta unidade do pensamento verbal no significado da palavra.
O significado duma palavra
representa uma amálgama tão estreita de pensamento e linguagem que é difícil
dizer se se trata de um fenômeno de pensamento, ou se se trata de um fenômeno
de linguagem. Uma palavra sem significado é um som vazio; portanto, o
significado é um critério da palavra e um seu componente indispensável.
Pareceria portanto que poderia ser encarado como um fenômeno lingüístico. Mas
do ponto de vista da psicologia, o significado de cada palavra é uma
generalização, um conceito. E, como as generalizações e os conceitos são
inegavelmente atos de pensamento, podemos encarar o significado como um
fenômeno do pensar. No entanto, daqui não se segue que o pensamento pertença a
duas esferas diferentes da vida psíquica.
O significado das palavras
só é um fenômeno de pensamento na medida em que é encarnado pela fala e só é um
fenômeno lingüístico na medida em que se encontra ligado com o pensamento e por
este é iluminado. É um fenômeno do pensamento verbal ou da fala significante —
uma união do pensamento e da linguagem.
As nossas investigações
experimentais confirmam integralmente esta tese fundamental. Não só provaram
que o estudo concreto da gênese do pensamento verbal se tornou possível pelo
estudo do significado das palavras como unidade analítica, como levaram também
a outra tese que consideramos ser o mais importante resultado do nosso estudo e
que decorre imediatamente da primeira: a tese segundo a qual o significado das
palavras evolui. Este ponto de vista deve substituir o postulado da
imutabilidade dos significados das palavras.
Do ponto de vista das velhas
escolas da psicologia, a relação entre a palavra e o significado é uma relação
associativa estabelecida através da repetição da percepção simultânea de um
certo som e de um certo objeto. Uma palavra solicita no espírito o seu
conteúdo, tal como o sobretudo dum amigo nos recorda esse mesmo amigo ou uma
casa, os seus habitantes. A associação entre a palavra e o seu significado pode
desenvolver-se mais forte ou mais debilmente, pode ser enriquecida pela
relacionarão com outros objetos de tipo semelhante, difundir-se por sobre um
vasto domínio, Ou tornar-se mais limitada, isto é, pode sofrer transformações
quantitativas e externas, mas não pode modificar a sua natureza psicológica.
Para que tal acontecesse teria que deixar de ser uma associação.
Desse ponto de vista,
qualquer evolução do significado de uma palavra é impossível e inexplicável —
conseqüência esta que constitui um handicap tanto para os lingüistas como para
os psicólogos. A partir da altura em que se comprometeu com a teoria da
associação, a semântica persistiu em considerar o significado da palavra como
uma associação entre o som e o conteúdo. Todas as palavras, desde as mais
concretas às mais abstratas, surgiam como sendo formadas da mesma maneira,
relativamente ao seu significado, parecendo não conter nenhum elemento
característico da fala enquanto tal; uma palavra fazia-nos recordar o seu
significado tal como um objeto nos recordava outro objeto.
Pouco surpreenderá portanto
que a semântica nem sequer pusesse a questão mais ampla da evolução do
significado das palavras. Reduzia-se essa evolução às variações nas conexões
associativas entre as palavras isoladas e os objetos isolados: uma palavra
poderia em determinada altura denotar um objeto passando depois a associar-se
com outro, como um sobretudo que, por mudar de proprietário, nos recordasse
primeiro uma pessoa e, logo depois, outra.
A lingüística não
compreendia que na evolução histórica da linguagem, a própria estrutura do
significado e a sua natureza psicológica se transformam também.
Das generalizações primitivas,
o pensamento verbal vai-se elevando ao nível de conceitos mais abstratos. Não é
apenas o conteúdo de uma palavra que se altera, mas a forma como a realidade é
generalizada e refletida numa palavra.
A teoria associativa também
não se adequa à explicação do desenvolvimento dos significados das palavras na
infância. Também neste aspecto, só pode explicar as alterações externas,
puramente quantitativas, das conexões que ligam a palavra e o seu significado,
o seu fortalecimento e o seu enriquecimento, mas não as transformações
psicológicas e estruturais fundamentais que podem ocorrer e ocorrem no
desenvolvimento da linguagem infantil.
Infelizmente, o fato de o
associacionismo em geral ter sido abandonado durante um certo lapso de tempo
não parece ter afetado a interpretação da palavra e do significado. A escola de
Wuerzburg, cujo propósito principal era o de provar a impossibilidade de
reduzir o pensamento a um simples jogo de associações e demonstrar a existência
de leis específicas que regem a corrente de pensamento, não reviu a teoria
associativa da palavra e do significado, nem reconheceu sequer a necessidade de
uma tal revisão. Esta escola emancipou o pensamento dos grilhões da sensação e
da imagem e das leis da associação e transformou-o num ato puramente
espiritual. Mas ao fazê-lo, regrediu para os conceitos pré-científicos de Santo
Agostinho e Descartes, acabando por chegar a um idealismo subjetivo extremo. A
psicologia do pensamento encaminhava-se para as idéias de Platão, e, ao mesmo
tempo, deixava-se a linguagem à mercê da associação. Mesmo após a obra
realizada pela escola de Wuerzburg, continuou a considerar-se que a conexão
entre a palavra e o seu significado era uma simples relação associativa.
Encarava-se a palavra como correlativo externo do pensamento, como seu simples
adereço, que não tinha qualquer influência na sua vida interna. O pensamento e
a palavra nunca estiveram tão separados como durante o período de Wuerzburg. Na
realidade, a destruição da teoria associativa no domínio do pensamento
incrementou o seu poderio no domínio da linguagem.
A obra de outros psicólogos
veio reforçar ainda mais esta tendência. Selz continuou a investigar o
pensamento sem tomar em consideração a relação entre este e a linguagem e
chegou à conclusão de que o pensamento produtivo do homem e do chimpanzé eram
de natureza idêntica a tal ponto este investigador ignorava a influência das
palavras sobre o pensamento.
Até Ach, que levou a cabo um
estudo especial do significado das palavras e que tentou superar o
associativismo na sua teoria dos conceitos se limitou a pressupor a existência
de “tendências determinantes” que entrariam em ação conjuntamente com as
associações na formação dos conceitos. Por conseguinte, as conclusões a que
chegou não vieram alterar a anterior compreensão do significado das palavras.
Ao identificar o conceito com o significado, impedia que se explicasse os
desenvolvimentos e as transformações dos conceitos. Uma vez estabelecido, o
significado de uma palavra ficava estabelecido para sempre; o seu
desenvolvimento encontrava-se completo. Estes eram os mesmos princípios que os
psicólogos atacados por Ach defendiam. Para ambos os lados, o ponto de partida
da evolução dos conceitos constituía também o seu termo; só havia desacordo no
tocante à forma como se iniciava o desenvolvimento da formação da palavra.
Na psicologia gestaltista
(Psicologia da Forma), a situação não era muito diferente. Esta escola era
ainda mais consistente do que as outras na tentativa de superar o princípio
geral do associativismo. Não satisfeita com uma solução parcial do problema,
tentou libertar o pensamento e a fala da lei da associação e colocá-los a ambos
sob o domínio da lei da gênese de estruturas. Surpreendentemente, nem esta
escola — que é a mais progressiva de todas as modernas escolas de psicologia —
realizou quaisquer progressos na teoria da linguagem e do pensamento.
Por um lado, manteve a
separação completa entre estas duas junções. A luz da teoria gestaltista, a
relação entre o pensamento e a palavra aparece como uma simples analogia, uma
redução de ambos a um denominador estrutural comum. Encara-se a formação das
primeiras palavras com significado por parte das crianças como algo semelhante
às operações intelectuais dos chimpanzés nas experiências de Koehler. As
palavras entram na estrutura das coisas e adquirem um certo significado
funcional, duma forma bastante semelhante àquela como, para o chimpanzé, o pau
se torna parte da estrutura de obtenção do fruto e adquire o significado
funcional de instrumento. Já não se encara a conexão entre palavra e
significado como uma questão de simples associação, mas como uma questão de
estrutura. Parece ser um passo em frente, mas se examinarmos mais de perto a
nova abordagem, é fácil ver que o passo em frente é um passo em falso,
ilusório, e que não saímos ainda do mesmo sítio. Aplica-se o princípio da
estrutura a todas as relações entre as coisas, da mesma forma avassaladora como
anteriormente se aplicava o princípio da associação. Continua a ser impossível
explicar as relações específicas entre palavra e significado, pois à partida
continua a considerar-se que em princípio são idênticas a todas as outras
relações entre coisas. Os gatos continuam a ser tão pardos na poeira da
psicologia gestaltista como nos primitivos nevoeiros do associacionismo
universal.
Enquanto Ach procurava
superar o associonismo com a “tendência determinante”, a teoria psicológica
gestaltista combateu-o com o princípio da estrutura — mantendo no entanto os
dois erros fundamentais da velha teoria: o pressuposto da identidade de
natureza de todas as conexões e o pressuposto de que os significados das
palavras não se alteram. Tanto a antiga como a nova teoria psicológica partem
ambas da hipótese de que a evolução do significado de uma palavra termina mal
esta emerge. As novas tendências da psicologia produziram progressos em todos
os ramos, exceto no estudo do pensamento e da palavra. Neste domínio, os novos
princípios parecem-se com os antigos como dois gêmeos.
Se a psicologia gestaltista
estagnou no campo da linguagem, deu um grande passo à retaguarda no campo do
pensamento. A escola de Wuerzburg, pelo menos, considerava que o pensamento
tinha leis próprias, ao passo que a escola gestaltista nega a existência de
tais leis. Reduzindo a um denominador estrutural comum as percepções dos
animais domésticos, as operações mentais de um chimpanzé, as primeiras palavras
significativas das crianças e o pensamento conceptual dos adultos, oblitera
toda e qualquer distinção entre a percepção mais elementar e as mais elevadas
formas de pensamento.
Esta recensão crítica pode
ser resumida como se segue: todas as escolas e tendências psicológicas descuram
um ponto fundamental: todo e qualquer pensamento é uma generalização. Assim,
estudam a palavra e o significado sem fazerem qualquer referência à evolução.
Enquanto estas duas condições persistirem em tendências sucessivas nas
tendências posteriores, estas muito pouca relevância terão para o tratamento do
problema.
II
A descoberta de que o
significado das palavras evolui tira o estudo do pensamento e da linguagem de
um beco sem saída. Os significados das palavras passam a ser formações
dinâmicas e não já estatísticas, transformam-se à medida que as crianças se
desenvolvem e alteram-se também com as várias formas como o pensamento
funciona.
Se os significados das
palavras se alteram na sua natureza interna, então a relação entre o pensamento
e a palavra também se modifica. Para compreender a dinâmica dessa relação,
teremos que complementar a abordagem genética do nosso estudo principal com a
análise funcional e examinar o papel do significado da palavra no processo de
pensamento.
Consideremos o processo
seguido pelo pensamento verbal desde o primitivo e difuso surgir dum pensamento
até à sua formulação Neste momento pretendemos mostrar não a forma como os
significados evoluem ao longo de dilatados intervalos de tempo, mas o modo como
funcionam no processo vivo do pensamento verbal. A partir dessa análise
funcional, poderemos mostrar também que, em cada fase do desenvolvimento do
significado das palavras há uma relação particular entre o pensamento e a
linguagem. Como a forma mais fácil de resolver os problemas funcionais consiste
em examinar a forma mais elevada de determinada atividade poremos por um
momento de parte o problema do desenvolvimento e consideraremos as relações
entre o pensamento e a palavra no cérebro que já atingiu a maturidade.
A idéia diretriz da
discussão que se segue pode ser reduzida à seguinte fórmula: a relação entre o
pensamento e a palavra não é uma coisa mas um processo, um movimento contínuo
de vaivém entre a palavra e o pensamento; nesse processo a relação entre o
pensamento e a palavra sofre alterações que, também elas, podem ser
consideradas como um desenvolvimento no sentido funcional. As palavras não se
limitam a exprimir o pensamento: é por elas que este acede à existência. Todos
os pensamentos tendem a relacionar determinada coisa com outra, todos os
pensamentos tendem a estabelecer uma relação entre coisas, todos os pensamentos
se movem, amadurecem, se desenvolvem, preenchem uma função, resolvem um
problema. Esta corrente do pensamento flui como um movimento interno através de
uma série de planos. Qualquer análise da interação entre o pensamento e a
palavra terá de principiar por investigar os diferentes planos e fases que um
pensamento percorre antes de se encarnar nas palavras.
A primeira coisa que
qualquer estudo revela é a necessidade de estabelecer a distinção entre dois
planos de discurso. Ambos os aspectos da linguagem, tanto o interno,
significante, semântico, como o aspecto externo, fonético, têm as suas leis de
movimento específicas, embora formem uma verdadeira unidade, mas que é uma
unidade complexa e não homogênea. Alguns fatos do desenvolvimento lingüístico
da criança indicam a existência de movimentos independentes nas esferas
fonética e semântica. Apontaremos dois dos mais importantes.
Quando começa a dominar a
fala exterior, a criança principia por uma palavra, passando depois a ligar
dois ou três termos entre si; um pouco depois, progride das frases simples para
outras mais complicadas, chegando por fim ao discurso coerente composto por uma
série de frases dessas; por outras palavras, progride da parte para o todo.
Relativamente ao significado em contrapartida, a primeira palavra da criança é
uma frase completa. Semanticamente, a criança parte do todo, de um complexo
significante e só mais tarde começa a dominar as unidades semânticas separadas,
os significados das palavras e a subdividir o seu pensamento primitivamente
indiferenciado nessas unidades. O seu aspecto externo e o aspecto semântico da
linguagem desenvolvem-se em direções opostas — o primeiro do particular para o
geral, da palavra para a frase e o outro do todo para o particular, da frase
para a palavra.
Isto, em si, basta para
mostrar como é importante distinguir o aspecto fonético do discurso do seu
aspecto semântico. Como se movem em sentidos opostos, o seu desenvolvimento não
é coincidente, mas isso não quer dizer que sejam independentes um do outro. Pelo
contrário, a sua diferença é o primeiro estádio de uma estreita união.
De fato, o nosso exemplo
revela a sua conexão interna tão claramente como a sua diferença. O pensamento
das crianças, precisamente porque surge como um conjunto amorfo e indistinto, tem
que encontrar a sua expressão numa palavra isolada; à medida que o seu
pensamento se vai tornando mais diferenciado, a criança vai perdendo a
possibilidade de se exprimir por meio de palavras isoladas e tem que construir
um todo compósito. Inversamente, a progressão da linguagem em direção ao todo
diferenciado numa frase, ajuda o pensamento da criança a progredir de conjuntos
homogêneos para partes bem definidas. O pensamento e a palavra não são talhados
no mesmo modelo: em certo sentido há mais diferenças do que semelhanças entre
eles. A estrutura da linguagem não se limita a refletir como num espelho a
estrutura do pensamento; é por isso que não se pode vestir o pensamento com
palavras, como se de um ornamento se tratasse. O pensamento sofre muitas alterações
ao transformar-se em fala. Não se limita a encontrar expressão na fala;
encontra nela a sua realidade e a sua forma. Os processos evolutivos da
fonética e da semântica são essencialmente idênticos, precisamente devido a
seguirem sentidos inversos.
O segundo fato, que é tão
importante como o primeiro, surge num período de desenvolvimento posterior.
Piaget demonstrou que a criança utiliza orações subordinadas em que figuram
porque, embora, etc., muito antes de compreender as estruturas significantes correspondentes
a estas formas semânticas. A gramática precede a lógica. Também aqui, tal como
nos nossos exemplos anteriores, a discrepância não exclui a unidade, antes lhe
é necessária.
Nos adultos, a divergência
entre o aspecto semântico e o aspecto fonético do discurso é ainda mais
flagrante. A lingüística moderna que se guia pela psicologia, encontra-se
familiarizada com este fenômeno, especialmente no que toca ao sujeito e ao
predicado gramaticais e psicológicos. Por exemplo, na frase “o relógio caiu”, a
ênfase e o significado podem variar com as situações. Suponhamos que noto que o
relógio parou e pergunto, porque terá isto acontecido. A resposta é: “o relógio
caiu”. O sujeito gramatical e psicológico coincidem: “o relógio” é a primeira
idéia que existe na minha consciência; “caiu” é o que se diz do relógio. Mas se
ouvir um barulho no quarto ao lado e indagar o que aconteceu, e receber a mesma
resposta, o sujeito e o predicado psicológicos inverter-se-ão. Eu sabia que
alguma coisa tinha caído — era disso que estávamos a falar. “O relógio” vem
completar a idéia. Poder-se-ia trocar a frase por esta: “o que caiu foi o
relógio”. Então o sujeito gramatical e o sujeito psicológico coincidiriam. No
prólogo da sua peça O Duque Ernst von Schwaben, Uhland diz: “cenas sinistras
desenrolar-se-ão perante os vossos olhares”. Psicologicamente, o sujeito é
“desenrolar-se-ão”: o espectador sabe que vai ver o desenrolar de certos
acontecimentos. A idéia adicional, o predicado, é “cenas sinistras”. Uhland
queria dizer: “Aquilo que se desenrolará perante os vossos olhares é uma
tragédia”. Qualquer parte de uma frase pode tornar-se o sujeito psicológico, a
parte portadora da ênfase fundamental; por outro lado, por detrás de uma
estrutura gramatical podem ocultar-se significados totalmente diferentes. O
acordo entre o sujeito gramatical e o sujeito psicológico não é tão
predominante como tendemos a presumir -- antes pelo contrário, é um requisito
raramente satisfeito. Não são só o sujeito e o predicado que têm os seus duplos
psicológicos, pois também o gênero, o número, o caso, o tempo, o modo, o grau
gramaticais o possuem. Uma exclamação espontânea, que do ponto de vista
gramatical é errada, pode ter encanto e valor estético. A correção absoluta só
se consegue para lá da linguagem natural, na matemática. A nossa linguagem
quotidiana oscila constantemente entre os ideais da harmonia matemática e os da
harmonia imaginativa.
Vamos ilustrar a
interdependência dos aspectos semânticos e gramaticais da linguagem citando
dois exemplos que nos mostram que as variações da estrutura formal podem
arrastar consigo alterações do significado de grande alcance.
Na tradução que fez da
fábula “La Cigale et la Fourmi” (vi) de La
Fontaine, Krylov substituiu a cigarra de La Fontaine por uma libelinha. Em
francês, cigarra é uma palavra feminina, sendo portanto, adequada para
simbolizar uma atitude leviana e despreocupada. A nuance perder-se-ia numa
tradução literal, pois cigarra em russo, é masculino, Ao decidir-se por
libelinha, que em russo é feminino, Krylov menosprezou a tradução literal em
favor da forma gramatical necessária para dar o pensamento de La Fontaine (vii)
Tjutchev fez o mesmo na sua
tradução do poema de Heine sobre um abeto e uma palmeira. Em alemão, abeto é
uma palavra masculina e palmeira é uma palavra feminina, e o poema sugere o
amor de um homem por uma mulher, mas em russo ambas árvores são femininas. Para
manter a implicação, Tjutchev substituiu o abeto por um cedro, masculino.
Lermontov, na sua tradução mais literal do mesmo poema, destituiu-o destes
matizes poéticos e deu-lhe um significado essencialmente diferente, mais
abstrato e mais generalizado. Um pormenor gramatical pode, em certas
circunstâncias, modificar todo o propósito do que se diz.
Por detrás das palavras, há
a gramática independente do pensamento, a sintaxe dos significados das
palavras. A mais simples exclamação, não reflete uma correspondência rígida e
constante entre som e significado, é, na realidade, muito pelo contrário, um
processo. As expressões verbais não podem nascer completamente formadas, têm
que se desenvolver gradualmente. Este complexo processo de transição do
significado para o som tem também que se desenvolver e aperfeiçoar. A criança
tem que aprender a distinguir entre a semântica e a fonética e a compreender a
natureza da diferença entre uma e outra coisa. A princípio, começa por utilizar
o pensamento e as formas verbais e os significados sem ter consciência deles
como coisas distintas. Para a criança, a palavra é parte integrante do objeto
que denota. Tal concepção parece ser característica da consciência lingüística
primitiva. Todos conhecemos a velha história do rústico que afirmava que não
lhe surpreendia que os sábios, com todos os instrumentos que possuíam, pudessem
calcular o tamanho das estrelas e as suas trajetórias — o que lhe fazia espécie
era como eles conseguiam saber o nome das estrelas. Algumas experiências
simples mostram que as crianças em idade pré-escolar “explicam” o nome dos
objetos pelos seus atributos. Segundo elas, um animal chama-se “vaca” porque
tem cornos, bezerro, quando os seus cornos ainda são pequenos, cão”, porque é
pequeno e não tem cornos; chama-se “carro” a determinado objeto porque não é
animal. Quando se lhes pergunta se poderia trocar os nomes das coisas, chamando
por exemplo, “tinta” a uma vaca e “vaca” à tinta, respondem que não, “porque a
tinta é para escrever e a vaca dá leite”. Trocar os nomes significaria trocar
as características específicas de cada objeto, tão inseparável é a conexão de
ambos no espírito da criança. Numa experiência disse-se às crianças que em
determinado jogo se chamaria “vaca” a um cão. Eis a seguir um exemplo típico de
perguntas e respostas que ocorreram:
— Mas as vacas têm cornos?
— Têm.
— Mas então não te lembras
que os cães é que são vacas? Ora vê bem: os cães têm cornos?
— Pois claro. Se são vacas,
se lhes chamamos vacas, têm que ter cornos. Têm que ser uma espécie de vacas
com corninhos.
Podemos ver pois como, para
as crianças, é difícil separar o nome de um objeto dos seus atributos, que
aderem ao nome mesmo quando este é transferido, como as coisas possuídas
seguindo o seu dono.
A fusão dos dois planos da
imagem, o plano semântico e o plano vocal, começa a desarticular-se à medida
que a criança cresce e a distância entre um e outro vai aumentando
gradualmente. Cada estádio no desenvolvimento das palavras implica uma
inter-relação específica entre os dois planos. A capacidade da criança para
comunicar através da linguagem encontra-se diretamente relacionada com a
diferenciação dos significados das palavras no seu discurso e na sua
consciência.
Para compreendermos isto
teremos que recordar uma característica fundamental da estrutura dos
significados das palavras. Na estrutura semântica de uma palavra estabelecemos
a distinção entre referente e significado: correspondentemente, distinguimos o
nominativo de uma palavra da sua função significante. Quando comparamos estas
relações funcionais e estruturais nos diversos estádios de desenvolvimento,
isto é, no estádio primitivo, no estádio intermédio e no estádio mais
desenvolvido, deparamos com esta regularidade genética: a princípio só existe a
função nominativa; e, semanticamente, só existe a referência objetiva; a
independência entre a significação e a nomeação, assim como a independência
entre o significado e a referência só surgem posteriormente e desenvolvem-se
segundo as trajetórias que tentamos detectar e descrever.
Só quando este
desenvolvimento se encontra completo é que a criança se torna totalmente capaz
de formular o seu pensamento e compreender o pensamento dos outros. Até essa
altura, a utilização que dá às palavras coincide com a que lhes dão os adultos
na sua referência objetiva, mas não no seu significado.
III
Temos que levar a nossa
investigação a planos mais profundos e explorar o plano do discurso interno que
se encontra por detrás do plano semântico. Examinaremos aqui alguns dos dados
que obtivemos em experiências especialmente dedicadas ao assunto. Não poderemos
compreender integralmente a relação entre o pensamento e a palavra em toda a
sua complexidade se não tivermos uma compreensão clara da natureza psicológica
do discurso interno. No entanto, de todos os problemas relacionados com o
pensamento e a linguagem, este é talvez o mais complicado, sobrecarregado como
se encontra de toda a espécie de mal entendidos terminológicos e doutro gênero.
Tem-se aplicado a expressão
discurso interior ou endofasia a vários fenômenos, e autores há que discutem
entre si acerca de coisas diferentes e têm-se travado muitas discussões entre
autores que chamam o mesmo nome a coisas distintas. Originalmente, parece que
se chamava discurso interior à memória verbal: exemplo disto, seria a recitação
silenciosa de um poema sabido de cor. Nesse caso, o discurso interno difere do
externo apenas da mesma maneira que a imagem ou idéia de um objeto difere do
objeto real. Era neste sentido que entendiam o discurso interior os autores
franceses que tentaram descobrir como as palavras são reproduzidas pela memória
— como imagens auditivas, visuais, motoras ou sintéticas. Veremos que a memória
das palavras, a memória verbal é realmente uma das componentes, um dos elementos
constituintes do discurso interior, mas não o único.
Numa segunda interpretação,
vê-se o discurso interior como um discurso externo truncado — como “linguagem
sem som” (Mueller) ou “discurso sub-vocal” (Watson). Bekhterev definiu-o como
um reflexo do discurso inibido da sua parte motora. Tal explicação não é
suficiente. A “locução” silenciosa das palavras não é equivalente ao processo
integral do discurso interior.
A terceira definição, pelo
contrário é demasiado ampla. Para Goldstein (12)(13)(12, 13), a
expressão recobre tudo que precede o ato motor da fala, incluindo os “motivos
do discurso” de Wundt e a indefinível experiência discursiva não motora, não
sensível — isto é, todo o aspecto interior do discurso, de qualquer atividade
discursiva. É difícil aceitar a identificação do discurso interior com uma
experiência interior não articulada, na qual os planos estruturais separáveis e
identificáveis desapareceriam sem deixar traços. Esta experiência central é
comum a toda e qualquer atividade lingüistica e só por esta razão, a
interpretação de Goldstein não é adequada a essa função específica, única e
exclusiva que merece o nome de discurso interior.
Levada até ás suas últimas
conseqüências lógicas, o ponto de vista de Goldstein conduzir-nos-ia à tese
segundo a qual o discurso interior não é de maneira nenhuma linguagem, mas
antes uma atividade intelectual e volitiva-afetiva, pois engloba os motivos do
discurso e o pensamento que se exprime por palavras.
Para obtermos uma descrição
adequada do discurso interior, temos de partir do pressuposto de que se trata
de uma formação específica que tem as suas leis próprias e mantém relações
complexas com as outras formas de atividade lingüística. Antes de podermos
estudar a relação entre o discurso interior e o pensamento, por um lado, e a
linguagem, por outro lado, teremos que determinar as características e as
funções que lhe são próprias.
O discurso interior é um
discurso para o próprio locutor; o discurso externo é um discurso para os
outros. Seria na verdade surpreendente que uma diferença de funcionamento tão
radical não afetasse as estruturas de ambos os tipos de discurso. A ausência de
vocalização, por si só, não é mais do que uma conseqüência da natureza
específica do discurso interior e não é, nem um antecedente do discurso
exterior, nem a sua reprodução na memória, antes é em certo sentido, o
contrário do discurso exterior. Este último consiste em verter os pensamentos
em palavras, consiste na sua materialização e na sua objetivização. Com o
discurso interior, pelo contrário, o processo é invertido: o discurso volta-se
para dentro, para o pensamento. Por conseqüência as suas estruturas têm que ser
diferentes uma da outra.
O domínio do discurso
interior é um dos mais difíceis de investigar. Manteve-se praticamente
inacessível até se terem encontrado formas de aplicar os métodos genéticos de
experimentação. Piaget foi o primeiro investigador a preocupar-se com o
discurso egocêntrico das crianças e a ver a sua importância teórica, mas
continuou cego à característica mais importante do discurso egocêntrico — a sua
relação genética com o discurso interior — e isto veio distorcer a sua
interpretação das suas funções e estrutura. Fizemos dessa relação problema
central do nosso estudo, e isso permitiu-nos investigar a natureza do discurso
interior com invulgar exaustão. Um certo número de observações e considerações
levou-nos a concluir que o discurso egocêntrico é um estádio de desenvolvimento
que precede o discurso interior. Ambos preenchem funções intelectuais; as suas
estruturas são semelhantes; o discurso egocêntrico desaparece por alturas da
idade escolar, quando o discurso interior começa a desenvolver-se. De tudo isto
inferimos que se transformam um no outro.
Se esta transformação se dá,
então o discurso egocêntrico fornece-nos a chave para compreendermos o discurso
interior. Uma das vantagens que advêm de se utilizar o discurso egocêntrico
para abordar o discurso interior é a de que aquele é acessível à observação e à
experimentação. É ainda um discurso vocalizado, audível, isto é, um discurso
externo no seu modo de expressão, mas é ao mesmo tempo um discurso interno na
sua função e na sua estrutura. Para estudarmos um processo interno temos que
exteriorizá-lo experimentalmente, relacionando-o com outra qualquer atividade;
só então será possível a análise funcional objetiva. Na realidade, o discurso
egocêntrico é uma experiência natural deste tipo.
Este método tem ainda uma
outra grande vantagem: como o discurso egocêntrico pode ser estudado no momento
em que algumas das suas características se estão desvanecendo enquanto outras
novas se vão formando, estamos em condições de avaliar que traços são
essenciais para o discurso interior e que traços são apenas temporários,
determinando assim o objetivo deste movimento que progride do discurso
egocêntrico para o discurso interior — isto é, a natureza do discurso interior.
.Antes de passarmos aos
resultados obtidos por este método, examinaremos rapidamente a natureza do
discurso egocêntrico, sublinhando as diferenças entre o nosso método e o de
Piaget. Piaget defende que o discurso egocêntrico da criança é uma expressão direta
do egocentrismo do seu pensamento, o qual, por seu turno, é um compromisso
entre o autismo primário do seu pensamento e a sua socialização gradual. À
medida que a criança cresce, o autismo definha e a socialização desenvolve-se,
levando a um desvanecimento do egocentrismo no seu pensamento e no seu
discurso.
Segundo a concepção de
Piaget, a criança, pelo seu discurso egocêntrico, não se adapta ao pensamento
dos adultos. O seu pensamento mantém-se integralmente egocêntrico; isto torna a
sua conversa totalmente incompreensível para os outros. O discurso egocêntrico
não tem qualquer função no pensamento ou na atividade realística da criança —
limita-se a acompanhá-los. E, como é uma expressão do pensamento egocêntrico da
criança, desaparece simultaneamente com o seu egocentrismo. Do seu auge de
desenvolvimento no começo do desenvolvimento infantil, o discurso egocêntrico
cai a zero no limiar da idade escolar. A sua história caracteriza-se mais pela
involução do que pela evolução. Não tem futuro.
Na nossa concepção, o
discurso egocêntrico é um fenômeno de transição entre o funcionamento
inter-físico e o funcionamento intra-físico, quer dizer, da atividade social e
coletiva da criança para a sua atividade mais individualizada — modelo de
desenvolvimento este que é comum a todas as funções psicológicas mais elevadas.
O discurso de si para si tem
origem na diferenciação do discurso para os outros. Na medida em que a
trajetória principal do desenvolvimento psicológico da criança é uma trajetória
de progressiva individualização, esta tendência reflete-se na função e na
estrutura do seu discurso.
Os nossos estudos
experimentais indicam que a função do discurso egocêntrico é a mesma da do
discurso interior: não se limita a acompanhar a atividade da criança: está ao serviço
da orientação mental, da compreensão consciente; ajuda-a a vencer as
dificuldades; é discurso de si para si, que se encontra íntima e
utilitariamente relacionada com o pensamento da criança: o seu destino é muito
diferente daquele que lhe consigna Piaget. O discurso egocêntrico desenvolve-se
segundo uma curva ascendente e não segundo uma curva descendente: segue uma
evolução não uma involução. No termo dessa evolução transforma-se em discurso
interior.
A nossa hipótese tem várias
vantagens sobre a de Piaget: ela explica a função e o desenvolvimento do
discurso interior e, em particular, o seu súbito incremento, quando a criança
se defronta com dificuldades que exigem consciência e reflexão — fato que as
nossas experiências puseram a nu e que a teoria de Piaget não pode explicar.
Mas a maior vantagem da nossa teoria consiste no fato de nos proporcionar uma
resposta satisfatória a uma situação paradoxal descrita pelo próprio Piaget.
Para Piaget, a diminuição quantitativa do discurso egocêntrico à medida que a
criança vai crescendo significa o desaparecimento dessa mesma forma de
discurso. Se assim fosse, seria de esperar que as suas peculiaridades
estruturais declinassem também: é difícil acreditar que o processo só afetasse
a sua quantidade e não a sua estrutura interna. O discurso da criança torna-se
infinitamente menos egocêntrico entre os três e os sete anos. Se as
caraterísticas do discurso egocêntrico que o tornam incompreensível para os
outros têm realmente as suas raízes no egocentrismo, deveriam tornar-se menos
patentes à medida que esta forma de discurso se vai tornando menos freqüente; o
discurso egocêntrico deveria ir-se assemelhando ao discurso social, tornando-se
progressivamente mais inteligível. Mas o que é que acontece? Será a fala de uma
criança de três anos mais difícil de seguir do que a de uma criança de sete
anos? Pelas nossas investigações chegamos à conclusão de que os traços do
discurso egocêntrico, responsáveis pela sua ininteligibilidade se encontram no
seu ponto de desenvolvimento mais baixo aos três anos, atingindo o seu maior
desenvolvimento aos sete anos. Desenvolve-se em sentido inverso ao discurso
egocêntrico. Enquanto este último vai diminuindo e atinge uma incidência nula
por alturas da idade escolar, as características estruturais tornam-se
progressivamente mais e mais pronunciadas
Este fato lança uma nova luz
sobre a diminuição quantitativa do discurso egocêntrico, que é a pedra de toque
da teoria de Piaget.
Que significa esta
diminuição7 As características peculiares do discurso de si para si e a sua
diferenciação relativamente ao discurso exterior aumentam com a idade. Que
diminuirá então? Apenas um dos seus aspectos: a vocalização. Quer isto dizer
que o discurso egocêntrico como um todo se encontra em vias de desaparecer'?
Estamos em crer que tal não se passe, porque, nesse caso, como poderíamos
explicar o desenvolvimento das características funcionais e estruturais do
discurso egocêntrico? Por outro lado, tal desenvolvimento é perfeitamente
compatível com a diminuição da vocalização — na verdade, clarifica até o seu
significado. O seu rápido declínio e o rápido desenvolvimento das outras
características só na aparência são contraditórios.
Para explicarmos isto vamos
partir de um fato inegável, experimentalmente demonstrado. As qualidades
funcionais e estruturais do discurso egocêntrico tornam-se mais marcadas à
medida que a criança se desenvolve. Aos três anos a diferença entre o discurso
social e o discurso egocêntrico da criança é nula. Aos sete anos, temos um discurso
que pela sua estrutura e pela sua função é totalmente diferente do discurso
social. Deu-se uma diferenciação dos dois discursos. Isto é um fato — e sabe-se
bem que os fatos são de difícil refutação.
Uma vez isto aceite, tudo o
resto daqui decorre automaticamente. Se as peculiaridades funcionais e
estruturais do discurso egocêntrico o vão isolando progressivamente do discurso
exterior, então o seu aspecto vocal deverá desvanecer-se; e é isto,
precisamente, o que acontece entre os três e os sete anos de idade. Com o
progressivo isolamento do discurso de si para si a sua vocalização torna-se
desnecessária e perde significado e, dado que as suas peculiaridades
estruturais se vão desenvolvendo, também impossível. O discurso de si para si
não pode achar expressão no discurso externo. Quanto mais independente e
autônomo o discurso egocêntrico se torna, mais debilmente se desenvolve nas
suas manifestações externas. No termo do processo, separa-se integralmente do
discurso para os outros, deixa de ser vocalizado e parece nessa altura que está
a morrer.
Mas isso é uma ilusão.
Interpretar o coeficiente de profundidade do discurso egocêntrico como um sinal
de que este tipo de discurso está a morrer é como dizer que a criança deixa de
contar quando cessa de utilizar os dedos para passar a calcular mentalmente. Na
realidade., para lá dos sintomas de dissolução, oculta-se um desenvolvimento
progressivo, o nascimento de uma nova forma de discurso.
O declínio da vocalização do
discurso egocêntrico é sinal de que a criança se vai progressivamente
abstraindo do som, e vai adquirindo uma nova capacidade, a faculdade de “pensar
as palavras” em vez de as pronunciar. Tal é o significado positivo do grau de
aprofundamento do discurso egocêntrico. A curva descendente significa uma
evolução em direção do discurso interior.
Podemos ver que todos os
fatos conhecidos relativamente às características funcionais, genéticas e
estruturais do discurso egocêntrico apontam para uma e mesma coisa: tal
discurso evolui para o discurso interior. A história do seu desenvolvimento só
pode ser compreendida como um progressivo desabrochar das características do
discurso interior.
Estamos em crer que tal fato
corrobora a nossa hipótese acerca da origem e da natureza do discurso
egocêntrico. Para convertermos a nossa hipótese numa certeza, temos que
idealizar uma experiência suscetível de nos mostrar qual das duas
interpretações é a correta. Quais são os dados de que dispomos para esta
experiência crítica?
Formulemos de novo as
teorias sobre as quais temos de tomar uma decisão. Piaget crê que o discurso
egocêntrico é gerado pela insuficiente socialização do discurso e que só se
pode desenvolver de uma maneira: diminuindo e acabando por morrer. O seu ponto
culminante fica para trás, no passado. O discurso interior é algo de novo,
importado do exterior paralelamente à socialização. O seu ponto culminante está
por vir. Evolui para o discurso interior.
Para obtermos provas a favor
ou contra um ou outro dos dois pontos de vista, temos que colocar a criança alternadamente
em situações experimentais que encorajem o discurso social e em situações que o
desencorajem, observando como as alterações afetam o discurso egocêntrico.
Consideramos esta experiência um experimentum crucis pelas seguintes razões.
Se a fala egocêntrica da
criança resulta do seu pensamento egocêntrico e da insuficiência de
socialização, então qualquer debilitamento dos elementos sociais no quadro
experimental, qualquer fator que aumente o isolamento da criança relativamente
ao grupo conduzirá necessariamente a um súbito aumento do discurso egocêntrico.
Mas se este último resulta de uma insuficiente diferenciação entre o discurso
para si próprio e o discurso para os outros, então as mesmas alterações
conduzirão ao seu declínio.
Tomamos como ponto de
partida para a nossa experiência três observações do próprio Piaget: 1) o
discurso egocêntrico só surge na presença de outras crianças implicadas na
mesma atividade, e não quando a criança está sozinha; isto é, num monólogo
coletivo. 2) a criança tem a ilusão de que este discurso egocêntrico que não é
dirigido para ninguém, é compreendido pelos que a cercam. 3) o discurso
egocêntrico tem o caráter de discurso exterior. Não é inaudível nem murmurado.
Estas características não são com certeza fruto do acaso. Do ponto de vista da
própria criança, o discurso egocêntrico ainda não se diferencia do discurso
social. Ocorre nas condições objetivas e subjetivas do discurso social e pode
ser considerado como um equivalente de insuficiente isolamento entre a consciência
individual da criança e o todo social.
Na nossa primeira série de
experiências (46)(47)(46, 47),
tentamos destruir a ilusão da criança de que era compreendida. Após termos
medido o grau de egocentricidade do discurso numa situação semelhante à das
experiências de Piaget, pusemos a criança numa situação diferente e nova: com
crianças surdas-mudas ou com crianças que falavam uma língua estrangeira. O
quadro experimental mantinha-se inalterado relativamente a todas as outras
condições. O coeficiente de discurso egocêntrico tornou-se nulo na maioria dos
casos e nos restantes, desceu em média para um número que era um oitavo do
primitivo. Isto prova que a ilusão da compreensão não é um simples epifenômeno
do discurso egocêntrico, antes se encontra funcionalmente correlacionado com
aquele. Os nossos resultados devem parecer paradoxais do ponto de vista das
teorias de Piaget: quanto mais débil é o contato entre a criança e o grupo
(quer dizer, quanto menos a situação social a força a ajustar os seus
pensamentos aos outros e a fazer uso do discurso social) mais livremente deverá
manifestar-se o egocentrismo do seu discurso e do seu pensamento. Mas, do ponto
de vista da nossa hipótese, o significado destas descobertas é claro: o
discurso egocêntrico, que resulta do insuficiente grau de diferenciação entre o
discurso para si próprio e do discurso para os outros, desaparece quando o
sentimento de ser compreendido, que é essencial para o discurso social, se
encontra ausente.
Na segunda série de
experiências, o fator variável era a possibilidade do monólogo coletivo. Após
termos medido o coeficiente de discurso egocêntrico de cada criança em
situações que permitiriam o monólogo coletivo, colocamo-las numa situação que o
tornava impossível — num grupo de crianças que lhe são estranhas ou então numa
mesa separada num canto da sala; noutros casos deixava-se a criança trabalhar completamente
só, fazendo-se com que o próprio experimentador abandonasse a sala. Os
resultados desta série estão em concordância com os primeiros resultados. A
impossibilidade do monólogo coletivo teve por conseqüência uma queda do
coeficiente de egocentricidade e do discurso, embora não de forma tão flagrante
como no primeiro caso — raramente se tornou nulo e em média baixou para um
sexto do número inicial. Os diferentes métodos de impossibilitar o monólogo
coletivo não tiveram a mesma eficácia no respeitante à redução do coeficiente
de discurso egocêntrico. No entanto, a tendência para a redução desse
coeficiente era patente em todas as variantes da experiência. A exclusão do
fator coletivo não libertou completamente o discurso egocêntrico pelo
contrário, inibiu-o. A nossa hipótese foi mais uma vez confirmada.
Na terceira série de
experiências, o fato variável era a qualidade vocal do discurso egocêntrico. Do
lado de fora da sala onde a experiência se desenrolava, encontrava-se instalada
uma orquestra que tocava tão alto ou fazia-se tanto barulho, que não só todas
as outras vozes, mas também a da própria criança ficavam afogadas numa variante
de experiência, proibia-se expressamente à criança falar alto,
permitindo-se-lhe apenas que murmurasse. Mais uma vez o coeficiente de discurso
egocêntrico baixou, sendo a relação entre o seu número e o número primitivo de
5:1. Também neste caso os diferentes métodos não tinham a mesma eficácia, mas a
tendência de base encontrava-se invariavelmente presente.
O propósito de todas estas
séries de experiências era eliminar as características do discurso egocêntrico
que se assemelham com o discurso social. Chegamos à conclusão que tal levava
invariavelmente a um abrandamento do discurso egocêntrico. É portanto lógico
pressupor que o discurso egocêntrico é uma forma que se desenvolve a partir do
discurso social e que ainda não se encontra separada desta nas suas
manifestações, embora já seja distinta nas suas funções e estrutura.
A discordância existente
entre nós e Piaget no tocante a esta questão tornar-se-á clara com o seguinte
exemplo: estou sentado na minha secretária e falo para uma pessoa que se
encontra colocada por detrás de mim, não me sendo possível vê-la; se essa
pessoa sair da sala sem eu dar por ela, continuo a falar, julgando que ela
continua a ouvir-me e a compreender-me. Externamente, estou a falar de mim para
mim, mas psicologicamente o meu discurso continua a ser social. Do ponto de
vista de Piaget passa-se o contrário com a criança: o seu discurso egocêntrico
é um discurso de si para si; apenas tem a aparência de um discurso social, tal
como o meu discurso dava a impressão de ser egocêntrico. Do nosso ponto de
vista, a situação é muito mais complicada: subjetivamente, o discurso
egocêntrico da criança já possui a sua função específica — nessa medida é
independente do discurso social; no entanto, a sua independência não é
completa, porque não é sentido como um discurso interior e a criança não o
distingue do discurso para os outros. Também objetivamente é diferente do
discurso social, mas também neste caso tal não se verifica completamente, pois
o discurso só funciona em situações sociais. Mas tanto subjetiva como
objetivamente, o discurso egocêntrico representa uma transição entre o discurso
para os outros e o discurso de si para si. Já tem a função do discurso
interior, mas, pela sua expressão, continua a ser semelhante ao discurso
social.
A investigação do discurso
egocêntrico preparou o terreno para a compreensão do discurso interior, que
passaremos a analisar seguidamente.
IV
As nossas experiências
convenceram-nos de que se deve encarar o discurso interior, não como um
discurso sem som, mas como uma função discursiva totalmente diferente. O seu
traço principal é a sua sintaxe muito particular. Em comparação com o discurso
exterior, o discurso interior parece desconexo e incompleto.
Esta observação não é nova.
Todos os que estudaram o discurso interior, mesmo os que o abordaram dum ponto
de vista behaviourista notaram esta característica. O método de análise genética
permite-nos ir além de uma simples descrição dessa característica. Aplicamos
este método e verificamos que, à medida que o discurso interior se desenvolve,
evidencia uma tendência para a forma de abreviação totalmente específica:
nomeadamente, a omissão do sujeito de uma frase e de todas as palavras com ele
relacionadas, embora preservando o predicado. Esta tendência para a predicação
surge em todas as nossas experiências com tal regularidade que somos forçados a
admitir que se trata da forma sintática fundamental do discurso interior.
Para compreendermos esta
tendência poderá ser-nos útil recordarmos certas situações em que o discurso
exterior apresenta uma estrutura semelhante. A predicação pura ocorre no
discurso exterior em duas circunstâncias: quando se trata de uma resposta ou
quando o sujeito da oração já é conhecido de antemão de todos os participantes
da conversa. A resposta à pergunta: “Quer uma chávena de chá?” não é nunca:
“Não, não quero uma chávena de chá”, mas um simples “Não”. Obviamente, tal
sentença só é possível porque o sujeito já é conhecido de ambas as partes. À
pergunta: “O teu irmão leu este livro?” ninguém responde “Sim, o meu irmão leu
este livro”. A resposta é um curto “Leu”, ou “Sim, leu”. Imaginemos agora que
um grupo de pessoas está à espera do autocarro: ninguém dirá, ao ver que o
autocarro se aproxima: “O autocarro de que estamos à espera aproxima-se”. O
mais provável é a frase consistir num abreviado: “Vem aí”, ou qualquer
expressão do gênero, pois o sujeito é evidente, dada a situação. Muito
freqüentemente, as frases abreviadas são causa de confusão. O ouvinte pode
relacionar a frase com um sujeito que lhe ocupa o espírito duma forma
predominante e não com um sujeito que o emissor quer significar. Se os
pensamentos das duas pessoas coincidirem, pode-se conseguir um perfeito
entendimento pelo uso dos simples predicados, mas se estiverem a pensar em
coisas diferentes, o mais certo é haver um mal-entendido entre eles.
Nos romances de Tolstoy
encontramos exemplos muito bons de condensação do discurso exterior e sua
redução a predicados: tais exemplos freqüentemente incidem sobre a psicologia
do conhecimento: “Ninguém ouviu claramente o que ele disse, mas Kitty
compreendeu-o. Compreendeu-o porque o seu espírito estava constantemente a
observar as suas necessidades” (Anna Karenina, Parte V, Cap. 18). Poderíamos
dizer que os seus pensamentos ao seguirem os pensamentos do moribundo,
continham o sujeito a que a sua palavra se referia e que ninguém mais
compreendeu. Mas talvez o exemplo mais flagrante seja a declaração de amor
entre Kitty e Levin por intermédio das letras iniciais:
“Há muito que desejava
perguntar-lhe uma coisa.
— Faça favor.
— É o seguinte — disse ele,
escrevendo as iniciais Q r: n p s, q d n m o n?. Estas letras queriam dizer:
“Quando respondeu: não pode ser, queria dizer naquele momento, ou nunca?”
Parecia impossível que ela pudesse compreender a complicada frase.
— Compreendo — disse ela.
— Que palavra é esta? —
perguntou ele, apontando para o n que significava “nunca”.
— A palavra é “nunca” —
disse ela, — mas não é verdade. Levin apagou rapidamente o que tinha escrito,
estendeu-lhe o giz e levantou-se. Ela escreveu: N m, n p t r d m.
A sua face resplandeceu:
tinha compreendido. A frase significava: “Naquele momento, não poderia ter
respondido doutra maneira”.
Kitty escreveu as iniciais
seguintes: p q p e e p o q s t p. Isto queria dizer: para que pudesses esquecer
e perdoar o que se tinha passado.
Ele tomou o giz com mãos
tensas e trêmulas, quebrou-o e escreveu as iniciais do seguinte: “Não tenho
nada a esquecer e a perdoar. Nunca deixei de te amar”.
— Compreendo — sussurrou
ela.
O rapaz sentou-se e escreveu
uma longa frase. Ela compreendeu-a integralmente sem lhe perguntar se estava a
ir bem, pegou no giz e respondeu-lhe imediatamente. Ele esteve um longo
intervalo sem compreender o que tinha sido escrito e manteve olhar fixo no dela
O seu espírito encontrava-se tonto de felicidade. Sentia-se completamente
incapaz de deduzir as palavras que ela indicava; mas nos olhos radiantes e
felizes da rapariga leu tudo o que precisava de saber. E escreveu três letras.
Não tinha ainda acabado de escrever e já Kitty estava lendo por sob a sua mão e
escrevia a resposta: “Sim”. Tinham dito tudo na conversação que tinham mantido:
que ela o amava e que diria ao pai e à mãe que ele haveria de dirigir-se-lhes
na manhã seguinte”. (Anna Karenina, Parte V, Cap. 13).
Este exemplo tem um
interesse psicológico extraordinário, porque. tal como todo o episódio entre
Kitty e Levin, Tolstoy o extraiu da sua própria vida. Foi precisamente desta
maneira que Tolstoy comunicou a sua mulher o seu amor por ela. Estes exemplos
mostram claramente que quando os pensamentos dos interlocutores são os mesmos,
o papel da fala se reduz ao mínimo. Noutro ponto, Tolstoy assinala que entre
pessoas que vivem num estreito contato psicológico, tal comunicação por meio do
discurso abreviado se torna a regra, e deixa de ser a exceção.
“Agora, Levin habituara-se a
exprimir o seu pensamento integralmente sem qualquer problema sem se preocupar
em vertê-lo nas palavras exatas. Ele sabia que a sua mulher, nos momentos
plenos de amor como este, compreenderia o que ele queria dizer, bastando-lhe um
indício; e ela compreendia, de fato” (Anna Karenina, parte VI, Cap. 3).
A tendência para a
predicação que surge no discurso interior quando os dois interlocutores sabem
do que se trata é caracterizada por uma sintaxe simplificada, pela condensação
e por um número de palavras extremamente reduzido. As confusões plenas de
comicidade que se dão quando os pensamentos das pessoas seguem direções
diferentes estão em completo contraste com este tipo de compreensão. A confusão
a que isto pode levar é bem dada por este pequeno poema:
Dois surdos são
julgados por um surdo juiz.
“Este roubou-me a minha vaca”, um deles diz,
“Alto aí, essa terra”, o segundo replica,
“Sempre foi do meu pai e comigo é que fica!”
E o juiz: “Mas que vergonha, tanta briga!
“A culpa não é vossa, é da rapariga”.
“Este roubou-me a minha vaca”, um deles diz,
“Alto aí, essa terra”, o segundo replica,
“Sempre foi do meu pai e comigo é que fica!”
E o juiz: “Mas que vergonha, tanta briga!
“A culpa não é vossa, é da rapariga”.
A conversação de Kitty com
Levin e o julgamento do surdo são casos extremos, quer dizer, são na realidade
os dois pólos extremos do discurso exterior. Um deles exemplifica a compreensão
mútua que se pode conseguir através de um discurso completamente abreviado
quando o sujeito que ocupa os dois espíritos é o mesmo; o outro, exemplifica a
incompreensão total, mesmo com um discurso completo, quando os pensamentos das
pessoas vagueiam em diferentes direções. Não são apenas os surdos que não
conseguem compreender-se; tal acontece também com quaisquer duas pessoas que dão
um significado diferente à mesma palavra ou que defendem pontos de vista
diferentes. Como Tolstoy notou, aqueles que estão acostumados ao pensamento
solitário e independente não apreendem facilmente os pensamentos de outrem e
são muito parciais relativamente aos seus próprios: mas as pessoas que mantêm
um contato estreito apreendem os significados complicados que transmitem
mutuamente por meio de uma comunicação “lógica e clara” levada a cabo com o
menor número de palavras.
Depois de termos examinado
as abreviaturas no discurso exterior, podemos agora, enriquecidos, debruçar-nos
sobre o mesmo fenômeno no discurso interior, em que não é a exceção, mas a
regra. Será instrutivo comparar as abreviaturas nos discursos orais, interiores
e escritos. A comunicação por escrito repousa sobre o significado formal das
palavras e, para transmitir a mesma idéia, exige uma quantidade de palavras
muito maior do que a comunicação oral. Dirige-se a um interlocutor ausente que
raramente tem presente no espírito o mesmo sujeito que quem escreve. Por
conseguinte, terá que ser um discurso completamente desenvolvido; a
diferenciação sintática atinge a sua máxima expressão e utilizam-se expressões
que soariam como não naturais na conversação oral. A expressão de Griboedov
“ele fala como escreve” refere-se ao efeito estranho provocado pelas
construções elaboradas quando utilizadas na linguagem na fala do dia a dia.
A natureza multifuncional da
linguagem, que tem atraído a atenção aturada dos lingüistas, já tinha sido
assinalada por Humboldt no tocante à poesia e à prosa — duas formas muito
diferentes pela sua função e também pelos meios que mobilizam. Segundo
Humboldt, a poesia é inseparável da música, ao passo que a prosa depende
inteiramente da linguagem e é dominada pelo pensamento. Consequentemente, cada
uma destas formas tem a sua própria dicção, a sua própria gramática, a sua
própria sintaxe. Esta concepção é de primeiríssima importância, embora nem
Humboldt, nem os que desenvolveram o seu pensamento tenham compreendido completamente
todas as suas implicações. Limitavam-se a estabelecer a distinção entre poesia
e prosa e, nesta última, entre a troca de idéias e a conversação vulgar, isto
é, a simples troca de informações ou a cavaqueira convencional. Há outras
importantes distinções funcionais no discurso. Uma delas e a distinção entre
monólogo e diálogo. O discurso interior e o discurso escrito representam o
monólogo; o discurso oral, na maioria dos casos, representa o diálogo.
O diálogo pressupõe sempre,
da parte dos interlocutores, um conhecimento do assunto suficiente para
permitir o discurso abreviado e, em certas condições, as frases puramente
predicativas. Também pressupõe que todas as pessoas estão em condições se ver
os seus interlocutores, as suas expressões faciais e os gestos que fazem e de
ouvir o tom de voz. Já discutimos as abreviaturas e passaremos a considerar
neste ponto apenas o aspecto auditivo, utilizando um exemplo clássico, extraído
do “Diário de um Escritor”, de Dostoyevski, para mostrar o quanto a entoação
ajuda a compreender as diferenciações sutis dos significados das palavras.
Dostoyevski relata uma
conversação de bêbados inteiramente constituída por uma palavra irreproduzível
por escrito:
Uma noite de domingo
aconteceu ter-me abeirado de um grupo de seis jovens trabalhadores bêbados,
tendo ficado a uns quinze passos deles. Subitamente apercebi-me de que
conseguiam exprimir todos os seus pensamentos, sentimentos e até todo um
encadeado de raciocínios por meio dessa única palavra, que, ainda por cima, é extremamente
breve. Um dos jovens disse-a de uma forma rude e enérgica para exprimir o seu
completo desacordo com algo de que todos tinham estado a falar. Outro responde
com o mesmo nome, mas num tom e num sentido totalmente diferentes — exprimindo
as suas dúvidas sobre os fundamentos da atitude negativa do primeiro. Eis senão
quando um terceiro se exalta contra o primeiro, irrompendo abruptamente na
conversação e gritando excitadamente a mesma palavra, mas desta vez como se
fora uma praga ou uma obscenidade. Aqui o segundo parceiro voltou a interferir,
zangado com o terceiro, o agressor, retendo-o, como querendo dizer: “Tens
alguma coisa que te pôr às marradas? Estávamos a discutir os assuntos
calmamente e logo vens tu, metes-te, e começas logo a praguejar!” E disse todo
este pensamento numa só palavra, a mesma venerável palavra; só que desta vez
também levantou a mão, pondo-a sobre o ombro do companheiro. Subitamente, um
quarto, o mais novo do grupo, que até àquele momento se tinha mantido
silencioso, como provavelmente tivesse encontrado repentinamente uma solução
para a dificuldade inicial donde partira a discussão, levantou a mão num
transporte de alegria e gritou ... Eureka, será isto? Terei encontrado a
solução? Não, nem “Eureka”, nem “encontrei a solução”, repetiu a mesma palavra
irreproduzível, uma palavra, uma simples palavra, mas com êxtase, numa explosão
de comprazimento — manifestação essa provavelmente um pouco exagerada, porque o
sexto membro do grupo, o mais velho deles, sujeito de aparência soturna, não
gostou da coisa e cortou cerce a alegria infantil do outro, dirigindo-se-lhe
num tom de baixo solene e exortativo e repetindo ... sim, repetindo exatamente
a mesma palavra, a mesma palavra proibida em presença de senhoras mas que
naquele momento queria dizer claramente “Para que são esses berros sem
sentido?”. Assim, sem terem proferido mais nenhuma palavra, nem uma sequer,
repetiram aquela elocução querida seis vezes de enfiada, seis vezes sucessivas
e entenderam-se perfeitamente. (Diário de Um Escritor, ano de 1873).
A inflexão revela o contexto
psicológico em que se deve compreender determinada palavra. Na história de
Dostoyevsky, tratava-se de uma negação de desafio, num dos casos, de uma
dúvida, noutro, de ira, no terceiro. Quando o contexto é tão claro como neste
exemplo, torna-se realmente possível transmitir todos os pensamentos, todos os
sentimentos e até toda uma cadeia de raciocínios com uma só palavra.
No discurso escrito, como o
tom de voz e o conhecimento do assunto não são possíveis, somos obrigados a
utilizar muitas palavras e a utilizarmos essas palavras mais exatamente. O
discurso escrito é a forma de discurso mais elaborada. Alguns lingüistas
consideram que o diálogo é a forma natural do discurso ora!, a forma em que a
linguagem patenteia completamente toda a sua natureza, e que o monólogo é em
grande medida artificial. A investigação psicológica não nos deixa grandes
dúvidas de que, na realidade, o monólogo é a forma mais elevada, mais complexa,
a forma que historicamente se desenvolve mais tarde. No momento presente,
contudo, só nos interessa estabelecer qualquer comparação no tocante à
tendência para a elipse.
A velocidade do discurso
oral não se propicia a um processo complicado de formulação — e não deixa tempo
para deliberações e opções. O diálogo implica a expressão imediata não
pré-determinada. É constituído por respostas e réplicas: é uma cadeia de
reações. Em comparação com isto, o monólogo é uma formação complexa dando ao
seu autor tempo e vagar para uma cuidada e consciente elaboração lingüística.
No discurso escrito, ao qual
faltam os apoios situacionais, tem que se conseguir a comunicação por recurso
exclusivo às palavras e suas combinações. Isto exige que a atividade discursiva
assuma formas complicadas — e daí o emprego dos rascunhos. A evolução dos
rascunhos para a versão final reproduz o nosso processo mental. O planeamento
tem uma função importante no discurso escrito, mesmo quando não nos socorremos
dum verdadeiro rascunho. Habitualmente, dizemos a nós próprios o que vamos
escrever; trata-se também de um rascunho, embora apenas em pensamento. Como
tentamos mostrar no capítulo precedente, este rascunho mental é um discurso
interior. Como o discurso interior funciona como rascunho não só para o
discurso escrito mas também para o discurso oral, passaremos agora a comparar
ambas estas formas com o discurso interior, no tocante à tendência para a
elipse e para a predicação.
Esta tendência, que não
existe no discurso escrito e só muito raramente surge no discurso oral, aparece
sempre no discurso interior. A predicação é a forma usual do discurso interior;
psicologicamente, este é exclusivamente constituído por predicados. A omissão
dos sujeitos é uma lei do discurso interior, exatamente na mesma medida em que
a obrigatoriedade da presença do sujeito e do predicado constitui uma lei do
discurso escrito.
Este fato experimentalmente
estabelecido tem uma explicação: é que os fatores que facilitam a pura
predicação encontram-se invariável e obrigatoriamente presentes no discurso
interior. Sabemos aquilo em que estamos a pensar — isto é, sabemos já sempre
quais são o sujeito e a situação. Psicologicamente, o contato entre os
interlocutores numa conversação pode estabelecer uma percepção mútua que conduz
à compreensão do discurso elíptico. No discurso interior, a percepção “mútua”
está sempre presente, numa forma absoluta; por conseguinte, dá-se, regra geral,
uma comunicação praticamente sem palavras mesmo quando se trata dos pensamentos
mais complicados.
A predominância da predicação
é um produto do desenvolvimento. De início, o discurso egocêntrico é, pela sua
estrutura, idêntico ao discurso social, mas no seu processo de transformação em
discurso interior vai-se tornando menos completo e coerente, à medida a que
passa a ser regido por uma sintaxe totalmente predicativa. As experiências
mostram-nos claramente como e porque razão a sintaxe predicativa vai começando
a dominar As crianças falam das coisas que vêem, ouvem ou fazem em determinado
momento. Em resultado disto, tendem a deixar de lado o sujeito e todas as
palavras que com ele se relacionam, condensando progressivamente o seu discurso
até que só ficam os predicados. Quanto mais diferenciada se torna a função
específica do discurso egocêntrico, mais pronunciadas se tornam as suas
peculiaridades sintáticas — a simplificação e a predicação. A vocalização corre
a par com esta modificação. Quando conversamos de nós para nós precisamos ainda
de menos palavras do que Kitty e Levin. O discurso interior é um discurso quase
sem palavras.
Reduzida a sintaxe e o som
ao mínimo, o significado passa a ocupar um lugar mais do que nunca proeminente.
O discurso interior opera com a semântica e não com a fonética. A estrutura
semântica específica do discurso interior também contribui para a elipse. A
sintaxe dos significados no discurso interior não é menos original do que a sua
sintaxe gramatical. A nossa investigação estabeleceu três peculiaridades
semânticas do discurso interior.
A primeira, que é essencial,
é a preponderância do sentido das palavras sobre o seu significado — distinção
que devemos a Paulhan. Segundo este autor, o sentido de uma palavra é a soma de
todos os acontecimentos psicológicos que essa palavra desperta na nossa
consciência. É um todo complexo, fluido, dinâmico que tem várias zonas de
estabilidade desigual. O significado mais não é do que uma das zonas do
sentido, a zona mais estável e precisa. Uma palavra extrai o seu sentido do
contexto em que surge; quando o contexto muda o seu sentido muda também. O
significado mantém-se estável através de todas as mudanças de sentido. O
significado de uma palavra tal como surge no dicionário não passa de uma pedra
do edifício do sentido, não é mais do que uma potencialidade que tem diversas
realizações no discurso.
As últimas palavras da já
mencionada fábula de Krylov “A Cigarra e a Formiga” constituem uma boa
ilustração da diferença entre sentido e significado. As palavras: “Pois agora
dança'” têm um significado fixo e definido, mas no contexto da fábula adquirem
um sentido intelectual e afetivo mais vasto. Passam a significar
simultaneamente: “Diverte-te” e “Perece!”. Este enriquecimento das palavras
pelo sentido que adquirem nos diferentes contextos é a lei fundamental da
dinâmica dos significados das palavras. Num determinado contexto, uma palavra
significa simultaneamente mais ou menos do que a mesma palavra tomada
isoladamente; significa mais, porque adquire um novo contexto; significa menos,
porque o seu significado é limitado e estreitado pelo mesmo contexto. O sentido
de uma palavra, diz Paulhan, é um fenômeno complexo, móvel, protéico;
modifica-se com as situações e consoante os espíritos e é praticamente
ilimitado. As palavras extraem o seu sentido da frase em que estão inseridas, e
esta, por seu turno, colhe o seu sentido do parágrafo, o qual, por sua vez, o
colhe do livro e este das obras todas do autor.
Paulhan prestou ainda outro
serviço à psicologia, analisando a relação entre a palavra e o sentido e
mostrando que a independência entre um e outra é muito maior do que a que
existe entre a palavra e o significado. Há muito já se sabe que as palavras
podem mudar de sentido. Recentemente, houve quem assinalasse que o sentido pode
modificar as palavras, ou melhor, que as idéias por vezes mudam de nome. Tal
como o sentido duma palavra se encontra relacionada com o conjunto da palavra
na sua totalidade, e não apenas com os seus sons isolados, também o sentido
duma frase se relaciona com a globalidade da frase e não com as suas palavras
tomadas isoladamente. Por conseguinte, uma palavra pode muitas vezes ser
substituída por outra sem se dar nenhuma modificação do sentido. As palavras e
os seus sentidos são relativamente independentes uns dos outros.
No discurso interior, a
predominância do sentido sobre o significado, da frase sobre a palavra e do
contexto sobre a frase constitui a regra.
Isto conduz-nos a outras
peculiaridades do discurso interior. Ambas dizem respeito à combinação das
palavras entre si. Um desses tipos de combinação será antes como que uma
aglutinação — uma forma de combinar as palavras bastante freqüente em muitas
línguas e relativamente rara noutras. A língua alemã forma freqüentemente um
substantivo a partir de diversas palavras ou de frases. Em certas línguas
primitivas, tal edição de palavras constitui regra geral. Quando diversas
palavras se fundem numa única, a nova palavra não se limita a exprimir uma
idéia bastante complexa, designa também todos os elementos separados contidos
nessa idéia. Como a tônica recai sempre no radical ou na idéia principal, tais
línguas são de fácil compreensão. O discurso egocêntrico da criança patenteia
um fenômeno semelhante. À medida que o discurso egocêntrico se vai aproximando
da forma do discurso interior, a criança começa a utilizar a aglutinação cada
vez mais como modo de formar palavras compostas que exprimem idéias complexas.
A terceira peculiaridade
semântica fundamental do discurso interior é a forma como os sentidos das
palavras se combinam e congregam — processo que é regido por leis diferentes
das que regem as combinações de significados. Na altura em que observamos esta
forma singular de unir palavras no discurso egocêntrico, chamamos-lhe “influxo
de sentido”. Os sentidos de diferentes palavras confluem numa outra —
“influenciam-se” literalmente - de forma que as primeiras estão contidas nas
últimas e as influenciam. Da mesma forma, uma palavra que continuamente se
repete num livro ou num poema absorve por vezes todas as variantes de sentido
neles contidas e se torna de certa maneira equivalente à própria obra. O título
de uma obra literária exprime o seu conteúdo e completa o seu sentido num grau
muito mais elevado do que o título de um quadro ou de uma peça de música.
Títulos como Dom Quixote, Hamlet ou Anna Karenina ilustram isto com toda a
clareza; todo o sentido da obra se encontra contido numa palavra, num nome.
Outro excelente exemplo é a obra Almas Mortas, de Gogol. Originalmente, o
título referia-se aos servos mortos cujo nome não fora removido das listas
oficiais e que podiam continuar a ser comprados e vendidos como se estivessem
vivos. É neste sentido que as palavras são utilizadas durante todo o livro, que
é construído em torno deste tráfico com os mortos. Mas, pela sua íntima relação
com o conjunto da obra, estas duas palavras adquirem uma nova significação e um
sentido infinitamente mais vasto. Quando chegamos ao fim do livro, a expressão
“Almas mortas” significa para nós não só os servos defuntos, mas também todos
os personagens da história que estão fisicamente vivos, mas espiritualmente
mortos.
No discurso interior, o
fenômeno atinge a sua máxima incidência. Cada palavra isolada encontra-se tão
saturada de sentido, que, para a explicar no discurso exterior seriam
necessárias muitas palavras. Não é pois de surpreender que o discurso
egocêntrico seja incompreensível para os outros. Watson diz que o discurso
interior seria incompreensível, mesmo que fosse possível gravá-lo. A sua
opacidade acentua-se devido a um fenômeno que, diga-se de passagem, Tolstoy
notou no discurso exterior: no seu livro, Infância, Adolescência e Juventude,
descreve como, em pessoas que se encontram em contato psicológico muito íntimo,
as palavras adquirem significados especiais que só são entendidos pelos
iniciados. No discurso interior, desenvolve-se o mesmo tipo de idioma — o tipo
de idioma que é difícil de traduzir para a fala oral.
Com isto, concluímos o nosso
relance sobre as peculiaridades do discurso interior, com que nos defrontamos
pela primeira vez ao investigarmos o discurso egocêntrico. Quando fomos
procurar comparações no discurso externo, descobrimos que este último já
contém, pelo menos potencialmente, os traços característicos do discurso
interno: a predicação, o declínio da oralidade, a predominância do sentido
sobre o significado, a aglutinação, etc., aparecem também em certas condições
já no discurso externo. Estamos em crer que isto é a melhor confirmação da
nossa hipótese, segundo a qual o discurso interior tem origem na diferenciação
do primitivo discurso das crianças.
Todas as nossas observações
indicam que o discurso interior é uma função autônoma da linguagem. Podemos
confiantemente encará-lo como um plano distinto do pensamento verbal. É
evidente que a transição do discurso interior para o discurso externo não é uma
simples tradução duma linguagem para outra. Não pode ser conseguida apenas pela
simples oralização do discurso silencioso. É um processo complexo, dinâmico que
envolve a transformação da estrutura predicativa, idiomática do discurso
interior em discurso sintaticamente articulado, inteligível para os outros.
V
Podemos agora voltar a
debruçar-nos sobre a definição do discurso interior que propusemos antes de
iniciarmos a nossa análise. O discurso interior não é o aspecto interior do
discurso externo — é uma função em si próprio. Continua a ser discurso, isto é,
pensamento ligado por palavras. Mas enquanto o pensamento externo se encontra
encarnado em palavras, no discurso interior é, em grande medida, um pensamento
feito de significados puros. É uma coisa dinâmica, instável, e derivante, que
flutua entre a palavra e o pensamento, os dois componentes mais ou menos
estáveis, mais ou menos solidamente delineados do pensamento verbal. Só se pode
compreender a sua verdadeira natureza e o seu verdadeiro lugar, após se ter
examinado o plano seguinte do pensamento verbal, o plano ainda mais profundo do
que o discurso interior.
Esse plano é o próprio
pensamento. Como dissemos, todos os pensamentos criam uma conexão, preenchem
uma função, resolvem um problema. A corrente de pensamento não é acompanhada
por um desabrochar simultâneo do discurso. Os dois processos não são idênticos
e não há correspondência rígida entre as unidades de pensamento e de discurso.
Isto é particularmente verdade quando um pensamento aborta — quando como
Dostoyevski diz, um “pensamento não entra nas palavras”. O pensamento tem a sua
própria estrutura e a transição entre ele e a linguagem não é coisa fácil. O
teatro defrontou-se, antes da psicologia, com o problema dos pensamentos
ocultos por detrás das palavras. Ao ensinar o seu sistema de representação,
Stanislawsky exigia dos autores que descobrissem o “subtexto” das suas réplicas
na peça. Na comédia de Griboedov “O Espírito traz a Infelicidade”, à heroína
que afirma nunca o ter esquecido, o herói, Chatsky, diz: “Três vezes abençoado
quem tal acreditar. A fé aquece o coração”. Stanislawsky interpretou esta
passagem como querendo dizer: “Acabemos com esta conversa”, mas poderia também
ser interpretada como querendo dizer: “Não acredito em si. Diz isso para me
reconfortar”, ou: “Não vê que me está a atormentar? Eu bem queria acreditar em
si. Seria uma benção...”. Todas estas frases que proferimos na vida real
possuem uma espécie de sub-texto, um pensamento oculto por detrás delas. Nos
exemplos que atrás demos da ausência de concordância entre o sujeito e o
predicado, não levamos a nossa análise até ao fim. Tal como uma frase pode
exprimir muitos pensamentos, um mesmo pensamento pode ser expresso por meio de
diferentes frases. Por exemplo, a frase “O relógio caiu”, como resposta à
pergunta: “Porque é que o relógio parou?” poderia significar: “Não tive culpa
de o relógio se ter estragado; caiu”. O mesmo pensamento, que é uma
auto-justificação, poderia assumir a forma seguinte: “Não é meu hábito mexer
nas coisas das outras pessoas. Só estava a limpar o pó aqui”, ou muitas outras
frases.
Ao contrário do discurso, o
pensamento não é constituído por unidades separadas. Quando desejo comunicar o
pensamento de que hoje vi um rapaz descalço de camisa azul a correr pela rua
abaixo, não vejo cada elemento em separado: o rapaz, a camisa, a cor desta
última, a corrida do rapaz, a ausência de sapatos. Concebo tudo isto num só
pensamento, mas exprimo o pensamento em palavras separadas. Um interlocutor
leva por vezes vários minutos a expor um só pensamento. No seu espírito o
pensamento encontra-se presente na sua globalidade num só momento, mas no
discurso tem que ser desenvolvido por fases sucessivas. Podemos comparar um
pensamento com uma nuvem que faz cair uma chuva de palavras. Como,
precisamente, um pensamento não tem correspondência imediata em palavras, a
transição entre o pensamento e as palavras passa pelo significado Na nossa
fala, há sempre o pensamento oculto, há sempre o sub-texto. Houve sempre
lamentos acerca da inexpressibilidade do pensamento devido ao fato de ser
impossível uma transição direta do pensamento para a palavra:
Como poderá o
coração exprimir-se?
Como poderá outro compreendê-lo?
(F. Tjutchev)
Como poderá outro compreendê-lo?
(F. Tjutchev)
A comunicação direta entre
os espíritos é impossível, não só fisicamente mas também psicologicamente. A
comunicação só é possível de uma forma indireta. O pensamento tem que passar
primeiro pelos significados e depois pelas palavras.
Chegamos assim ao último
passo da nossa análise do pensamento verbal. O pensamento propriamente dito é
gerado pela motivação, isto é, pelos nossos desejos e necessidades, os nossos
interesses e emoções. Por detrás de todos os pensamentos há uma tendência
volitiva-afetiva, que detém a resposta ao derradeiro porquê da análise do
pensamento. Uma verdadeira e exaustiva compreensão do pensamento de outrem só é
possível quando tivermos compreendido a sua base afetiva-volitiva. Ilustraremos
isto por meio de um exemplo que já tem sido utilizado: a interpretações dos
papéis de uma peça. Nas suas instruções para os atores, Stanislawsky enumerava
os motivos subjacentes nas palavras dos seus personagens. Por exemplo:
TEXTO DA PEÇA
MOTIVOS SUBJACENTES
Sofia:
Ah, Chatsky, como estou contente por teres vindo!
Tente ocultar a atrapalhação.
Chatsky:
Estás tão contente! Que simpático! Mas alegrias dessas não entendo bem! Pois antes me parece que ao fim e ao cabo. Ao vir por aí à chuva mais o meu cavalo. A mim me contentei e a mais ninguém.
Tenta fazê-la sentir-se culpada.
“Não tens vergonha?!”
Tenta forçá-la a ser franca!
Liza:
Senhor se aqui estivesses neste mesmo lugar. Há uns cinco minutos, não, nem há tanto, não. Vosso nome ouviríeis bem alto soar!
Ah Menina! Dizei-lhe que tenho razão!
Tenta acalmá-lo. Tenta ajudar Sofia numa situação difícil.
Sofia:
Assim é, nem mais, nem menos!
Que quanto a isso, sei que não tendes nada que me censurar!
Tenta serenar Chatsky.
Não sou culpada de nada.
Chatsky:
Pronto, aceitemos que assim é, deixai estar!
Três vezes louvado quem tiver fé!
Pois a fé o coração aquece!
Acabemos com esta conversa, etc..
Sofia:
Ah, Chatsky, como estou contente por teres vindo!
Tente ocultar a atrapalhação.
Chatsky:
Estás tão contente! Que simpático! Mas alegrias dessas não entendo bem! Pois antes me parece que ao fim e ao cabo. Ao vir por aí à chuva mais o meu cavalo. A mim me contentei e a mais ninguém.
Tenta fazê-la sentir-se culpada.
“Não tens vergonha?!”
Tenta forçá-la a ser franca!
Liza:
Senhor se aqui estivesses neste mesmo lugar. Há uns cinco minutos, não, nem há tanto, não. Vosso nome ouviríeis bem alto soar!
Ah Menina! Dizei-lhe que tenho razão!
Tenta acalmá-lo. Tenta ajudar Sofia numa situação difícil.
Sofia:
Assim é, nem mais, nem menos!
Que quanto a isso, sei que não tendes nada que me censurar!
Tenta serenar Chatsky.
Não sou culpada de nada.
Chatsky:
Pronto, aceitemos que assim é, deixai estar!
Três vezes louvado quem tiver fé!
Pois a fé o coração aquece!
Acabemos com esta conversa, etc..
Para compreendermos o
discurso de outrem, não basta compreender as suas palavras — temos que
compreender o seu pensamento. Mas também isto não basta — temos que conhecer
também as suas motivações. Nenhuma análise psicológica de uma frase proferida
se encontra completa antes de se ter atingido esse plano.
Chegamos ao fim da nossa
análise; passemos os seus resultados em revista. O pensamento verbal surge-nos
como uma entidade dinâmica e complexa e a relação entre o pensamento e a
palavra no seu interior aparece-nos como um movimento que abarca uma série de
planos. A nossa análise seguiu o processo desde o seu plano mais externo até ao
seu plano mais interno. Na realidade, o desenvolvimento do pensamento verbal
segue uma trajetória oposta: do motivo que gera um pensamento à modelação do
pensamento, primeiro no discurso interior, depois nos significados das palavras
e finalmente nas palavras. Seria no entanto errado imaginar que este é o único
caminho do pensamento para a palavra. O desenvolvimento pode deter-se num ponto
qualquer da sua complexa trajetória; é possível uma infinidade de movimentos
progressivos e recessivos, uma grande variedade de evoluções que desconhecemos
ainda. O estudo destas multifacetadas variações não cabe no âmbito da nossa
tarefa presente.
A nossa investigação seguiu
um percurso bastante invulgar. Desejávamos estudar a forma como internamente
operam o pensamento e a linguagem, formas essas que se encontram ocultas à
observação direta. O significado e todo o aspecto interior da linguagem, a sua
faceta que se encontra voltada para a pessoa e não para o mundo exterior tem
constituído até hoje um território desconhecido. Sejam quais forem as
interpretações que lhes sejam dadas, as relações entre o pensamento e a palavra
foram sempre consideradas como algo constante e imutável, estabelecido para
sempre. A nossa investigação mostrou que tais relações são, pelo contrário,
relações mutáveis entre processos, que surgem durante o desenvolvimento do
pensamento verbal. Não queríamos nem podíamos esgotar o assunto do pensamento
verbal. Tentamos apenas dar uma concepção geral da infinita complexidade desta
estrutura dinâmica — concepção que parte dos fatos experimentalmente
documentados.
Para a psicologia
associacionista, o pensamento e a palavra encontram-se unidos por laços
externos, semelhantes aos laços existentes entre duas sílabas sem sentido. A
psicologia gestaltista introduziu o conceito dos nexos estruturais, mas, tal
como a velha teoria, não entrou em linha de conta com as relações específicas entre
o pensamento e a palavra. Quanto às outras teorias, agrupavam-se em torno de
dois pólos — quer o pólo do conceito behaviourista segundo o qual o pensamento
é linguagem sem o ponto de vista idealista, defendido pela escola de Wuerzburg,
e Bergson, segundo o qual o pensamento poderia ser “puro”, isto é, pensamento
sem qualquer relação com a linguagem, pensamento que seria distorcido pelas
palavras. A frase de Tjutchev “Uma vez dito um pensamento torna-se mentira”,
poderia muito bem servir de epitáfio para o último grupo. Quer se inclinem para
o puro naturalismo quer se inclinem para o idealismo mais extremo, todas estas
teorias comungam dum mesmo traço — o seu pendor anti-histórico. Estudam o
pensamento e a palavra sem fazerem qualquer referência à sua História genética.
Só uma teoria histórica do
discurso interior poderá tratar cabalmente este complexo e imenso problema. A
relação entre o pensamento e a palavra é um processo vivo; o pensamento nasce
através das palavras. Uma palavra vazia de pensamento é uma coisa morta, e um
pensamento despido de palavras permanece uma sombra. A conexão entre ambos não
é, no entanto, algo de constante e já formado: emerge no decurso do
desenvolvimento e modifica-se também ela própria. À expressão bíblica “No
princípio era o Verbo”, Goethe faz Fausto responder: “No princípio era a ação”.
A intenção desta frase é a de diminuir o valor da palavra, mas podemos aceitar
esta versão se lhe dermos outra acentuação: no princípio era a ação. A palavra
não é o ponto de partida — a ação já existia antes dela; a palavra é o termo do
desenvolvimento, o coroamento da ação.
Não podemos encerrar o nosso
relance sem mencionarmos as perspectivas abertas pela nossa investigação.
Estudamos os aspectos internos da linguagem que eram tão desconhecidos para a
Ciência como o outro lado da Lua. Mostramos que as palavras têm por
característica fundamental serem um reflexo generalizado do mundo. Este aspecto
da palavra conduz-nos ao limiar de um tema muito mais profundo e mais vasto — o
problema geral da consciência. As palavras desempenham um papel fundamental,
não só no desenvolvimento do pensamento mas também no desenvolvimento histórico
da consciência como um todo. Cada palavra é um microcosmos da consciência
humana.
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