quarta-feira, 19 de outubro de 2011


Theodor Adorno–Educação após Auschwitz

 
 
 
 
 
 
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EDUCAÇÃO APÓS AUSCHWITZ
Theodor Adorno
A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação. De tal modo ela  precede quaisquer outras que creio não ser possível nem necessário justificá-la. Não consigo entender como até hoje mereceu tão pouca atenção. Justificá-la teria algo de monstruoso em vista de toda monstruosidade ocorrida. Mas a pouca consciência existente em relação a essa exigência e as questões que ela levanta provam que a monstruosidade não calou fundo nas pessoas, sintoma da persistência da possibilidade de que se repita no que depender do estado de consciência e de inconsciência das pessoas. Qualquer debate acerca de metas educacionais carece de significado e importância frente a essa meta: que Auschwitz não se repita. Ela foi a barbárie contra a qual se dirige toda a educação.
Fala-se da ameaça de uma regressão à barbárie. Mas não se trata de uma ameaça, pois Auschwitz foi  a regressão; a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que têm de fundamental as condições que geram esta regressão. E isto que apavora. Apesar da não-visibilidade atual dos infortúnios, a pressão social continua se impondo. Ela impele as pessoas em direção ao que é indescritível e que, nos termos da história mundial, culminaria em Auschwitz. Dentre os conhecimentos proporcionados por Freud, efetivamente relacionados inclusive à cultura e à sociologia, um dos mais perspicazes parece-me ser aquele de que a civilização, por seu turno, origina e fortalece progressivamente o que é anticivilizatório. Justamente no que diz respeito a Auschwitz, os seus ensaios O mal-estar na cultura e Psicologia de massas e análise do eu mereceriam a mais ampla divulgação. Se a barbárie encontra-se no próprio principio civilizatório, então pretender se opor a isso tem algo de desesperador.
A reflexão a respeito de como evitar a repetição de Auschwitz é obscurecida pelo fato de precisarmos nos conscientizar desse elemento desesperador, se não quisermos cair presas da retórica idealista. Mesmo assim é preciso tentar, inclusive porque tanto a estrutura básica da sociedade como os seus membros, responsáveis por termos chegado onde estamos, não mudaram nesses vinte e cinco anos. Milhões de pessoas inocentes —- e só o simples fato de citar números já é humanamente indigno, quanto mais discutir quantidades foram assassinadas de uma maneira planejada. Isto não pode ser minimizado por nenhuma pessoa viva como sendo um fenômeno superficial, como sendo uma aberração no curso da história, que não importa, em face da tendência dominante do progresso, do esclarecimento, do humanismo supostamente crescente. O simples fato de ter ocorrido já constitui por si só expressão de uma tendência social imperativa. Nesta medida gostaria de remeter a um evento, que de um modo muito sintomático parece pouco conhecido na Alemanha, apesar de constituir a temática de um best-seller como Os quarenta dias de Musa Dagh, de Werfel. Já na Primeira Guerra Mundial os turcos – o assim chamado movimento turco jovem dirigido por Enver Pascha e Talaat Pascha mandaram assassinar mais de um milhão de armênios. Importantes quadros militares e governamentais, embora, ao que tudo indica, soubessem do ocorrido, guardaram sigilo estrito, O genocídio tem suas raízes naquela ressurreição do nacionalismo agressor que vicejou em muitos países a partir do fim do século XIX. Além disso não podemos evitar ponderações no sentido de que a invenção da bomba atômica, capaz de matar centenas de milhares literalmente de um só golpe, insere-se no mesmo nexo histórico que o genocídio. Tornou-se habitual chamar o aumento súbito da população de explosão populacional: parece que a fatalidade histórica, para fazer frente à explosão populacional, dispõe também de contra-explosões, o morticínio de populações inteiras. Isto só para indicar como as forças às quais é preciso se opor integram o curso da história mundial.
Como hoje em dia é extremamente limitada a possibilidade de mudar os pressupostos objetivos, isto é, sociais e políticos que geram tais acontecimentos, as tentativas de se contrapor à repetição de Auschwitz são irnpelidas necessariamente para o lado subjetivo. Com isto refiro-me sobretudo também à psicologia das pessoas que fazem coisas desse tipo. Não acredito que adianta muito apelar a valores eternos, acerca dos quais justamente os responsáveis por tais atos reagiriam com menosprezo; também não acredito que o esclarecimento acerca das qualidades positivas das minorias reprimidas seja de muita valia. É preciso buscar as raízes nos perseguidores e não nas vitimas, assassinadas sob os pretextos mais mesquinhos. Torna-se necessário o que a esse respeito uma vez denominei de inflexão em direção ao sujeito. É preciso reconhecer os mecanismos que tornam as pessoas capazes de cometer tais atos, é preciso revelar tais mecanismos a eles próprios, procurando impedir que se tornem novamente capazes de tais atos, na medida em que se desperta uma consciência geral acerca desses mecanismos. Os culpados não são os assassinados, nem mesmo naquele sentido caricato e sofista que ainda hoje seria do agrado de alguns. Culpados são unicamente os que, desprovidos de consciência, voltaram Contra aqueles seu ódio e sua fúria agressiva. E necessário contrapor-se a uma tal ausência de consciência, é preciso evitar que as pessoas golpeiem para os lados sem refletir a respeito de si próprias. A educação tem sentido unicamente como educação dirigida a uma auto-reflexão crítica.
Contudo, na medida em que, conforme os ensinamentos da psicologia profunda, todo caráter, inclusive daqueles que mais tarde praticam crimes, forma-se na primeira infância, a educação que tem por objetivo evitar a repetição precisa se concentrar na primeira infância. Já mencionei a tese de Freud acerca do mal-estar na cultura. Ela é ainda mais abrangente do que ele mesmo supunha: sobretudo porque, entrementes, a pressão civilizatória observada por ele multiplicou-se em uma escala insuportável. Por essa via as tendências à explosão a que ele atentara atingiriam uma violência que ele dificilmente poderia imaginar. porém o mal-estar na cultura tem seu lado social —- o que Freud sabia, embora não o tenha investigado concretamente. É possível falar da claustrofobia das pessoas no mundo administrado, um sentimento de encontrar-se enclausurado numa situação cada vez mais socializada, como uma rede densamente interconectada. Quanto mais densa é a rede, mais se procura escapar, ao mesmo tempo em que precisamente a sua densidade impede a saída. Isto aumenta a raiva contra a civilização. Esta torna-se alvo de uma rebelião violenta e irracional.
Um esquema sempre confirmado na história das perseguições é o de que a violência contra os fracos se dirige principalmente contra os que são considerados socialmente fracos e ao mesmo tempo —- seja isto verdade ou não – felizes. De uma perspectiva sociológica eu ousaria acrescentar que nossa sociedade, ao mesmo tempo em que se integra cada vez mais, gera tendências de desagregação. Essas tendências encontram-se bastante desenvolvidas logo abaixo da superfície da vida civilizada e ordenada. A pressão do geral dominante sobre tudo que é particular, os homens individualmente e as instituições singulares, tem uma tendência a destroçar o particular e individual juntamente com seu potencial de resistência. Junto com sua identidade e seu potencial de resistência, as pessoas também perdem suas qualidades, graças a qual têm a capacidade de se contrapor ao que em qualquer tempo novamente seduz ao crime. Talvez elas mal tenham condições de resistir quando lhes é ordenado pelas forças estabelecidas que repitam tudo de novo, desde que apenas seja em nome de quaisquer ideais de pouca ou nenhuma credibilidade.
Quando falo de educação após Auschwitz, refiro-me a duas questões: primeiro, à educação infantil, sobretudo na primeira infância; e, além disto, ao esclarecimento geral, que produz um clima intelectual, cultural e social que não permite tal repetição; portanto, um clima em que os motivos que conduziram ao horror tornem-se de algum modo conscientes. Evidentemente não tenho a pretensão de sequer esboçar o projeto de uma educação nesses termos. Contudo, quero ao menos indicar alguns pontos nevrálgicos.Com freqüência por exemplo, nos Estados Unidos – o espirito germânico de confiança na autoridade foi responsabilizado pelo nazismo e também por Auschwitz. Considero esta afirmação excessivamente superficial, embora na Alemanha, como em muitos outros países europeus, comportamentos autoritários e autoridades cegas perdurem com mais tenacidade sob os pressupostos da democracia formal do que se queira reconhecer. Antes é de se supor que o fascismo e o horror que produziu se relacionam com o fato de que as antigas e consolidadas autoridades do império haviam ruído e se esfacelado, mas as pessoas ainda não se encontravam psicologicamente preparadas para a autodeterminação. Elas não se revelaram à altura da liberdade com que foram presenteadas de repente. É por isso que as estruturas de autoridade assumiram aquela dimensão destrutiva e —- por assim dizer de desvario que antes, ou não possuíam, ou seguramente não revelavam. Quando lembramos que visitantes de quaisquer potentados. já politicamente desprovidos de qualquer função real, levam populações inteiras a explosões de êxtase, então se justifica a suspeita de que o potencial autoritário permanece muito mais forte do que o imaginado. Porém quero enfatizar com a maior intensidade que o retorno ou não retorno do fascismo constitui em seu aspecto mais decisivo uma questão social e não uma questão psicológica. Refiro-me tanto ao lado psicológico somente porque os demais momentos, mais essenciais, em grande medida escapam à ação da educação, quando não se subtraem inteiramente à interferência dos indivíduos.
Freqüentemente pessoas bem-intencionadas e que se opõem a que tudo aconteça de novo citam o conceito de vínculos de compromisso. A ausência de compromissos das pesssoas seria responsável pelo que aconteceu. Isto efetivamente tem a ver com a perda da autoridade, uma das condições do pavor sadomasoquista. É plausível para o entendimento humano sadio evocar compromissos que detenham o que é sádico, destrutivo, desagregador, mediante um enfático “não deves”. Ainda assim considero ser uma ilusão imaginar alguma utilidade no apelo a vínculos de compromisso ou até mesmo na exigência de que se reestabeleçam vinculações de compromisso para que o mundo e as pessoas sejam melhores. A falsidade de compromissos que se exige somente para que provoquem alguma coisa – mesmo que esta seja boa —-, sem que eles sejam experimentados por si mesmos como sendo substanciais para as pessoas, percebe-se muito prontamente. E espantosa a rapidez com que até mesmo as pessoas mais ingênuas e tolas reagem quando se trata de descobrir as fraquezas dos superiores. Facilmente os chamados compromissos convertem-se em passaporte moral – são assumidos com o objetivo de identificar-se como cidadão confiável ou então produzem rancores raivosos psicologicamente contrários à sua destinação original. Eles significam uma heteronomia, um tornar-se dependente de mandamentos, de normas que não são assumidas pela razão própria do indivíduo, O que a psicologia denomina superego, a consciência moral, é substituído no contexto dos compromissos por autoridades exteriores, sem compromisso, intercambiáveis, como foi possível observar com muita nitidez também na Alemanha depois da queda do Terceiro Reich. Porém justamente a disponibilidade em ficar do lado do poder, tomando exteriormente como norma curvar-se ao que é mais forte, constitui aquela índole dos algozes que nunca mais deve ressurgir. Por isto a recomendação dos compromissos é tão fatal. As pessoas que os assumem mais ou menos livremente são colocadas numa espécie de permanente estado de exceção de comando. O único poder efetivo contra o princípio de Auschwitz seria autonomia, para usar a expressão kantiana; o poder para a reflexão, a autodeterminação, a não-participação.
Certa feita uma experiência me assustou muito: numa viagem ao lago de Constância, eu lia num jornal de Baden em que se informava acerca da peça Mortos sem sepuItura, de Sartre, que representa as situações mais terríveis. A peça incomodava visivelmente o critico. Mas ele não explicou este incômodo mediante o horror da coisa que constitui o horror de nosso mundo, mas torceu a questão como se, frente a uma posição como a de Sartre, que se ocupara do problema, nós tivéssemos, por assim dizer, um sentido para algo mais nobre: que não poderíamos reconhecer a ausência de sentido do horror.
Resumindo: o critico procurava se subtrair ao confronto com o horror graças a um sofisticado palavrório existencial. O perigo de que tudo aconteça de novo está em que não se admite o contato com a questão rejeitando até mesmo quem apenas a menciona, como se, ao fazê-lo sem rodeios, este se tomasse o responsável, e não os verdadeiros culpados. Em relação ao problema de autoridade e barbárie considero importante um aspecto que geralmente passa quase despercebido. Ele é mencionado numa observação do livro O Estado da SS, de Eugen Kogon, que contém abordagens importantes deste todo complexo e que não recebeu a atenção merecida por parte da ciência e da pedagogia. Kogon afirma que os algozes do campo de concentração em que ele mesmo passou anos eram em sua maioria jovens filhos de camponeses. A diferença cultural ainda persistente entre a cidade e o campo constitui uma das condições do horror, embora certamente não seja nem a única nem a mais importante. Repudio qualquer sentimento de superioridade em relação à população rural. Sei que ninguém tem culpa por nascer na cidade ou se formar no campo. Mas registro apenas que provavelmente no campo o insucesso da desbarbarização foi ainda maior. Mesmo a televisão e os outros meios de comunicação de massa, ao que tudo indica, não provocaram muitas mudanças na situação de defasagem cultural. Parece-me mais correto afirmar isto e procurar uma mudança do que elogiar de uma maneira nostálgica quaisquer qualidades especiais da vida rural ameaçadas de desaparecer. Penso até que a desbarbarização do campo constitui um dos objetivos educacionais mais importantes. Evidentemente ela pressupõe um estudo da consciência e do inconsciente da respectiva população. Sobretudo é preciso atentar ao impacto dos modernos meios de comunicação de massa sobre um estado de consciência que ainda não atingiu o nível do liberalismo cultural burguês do século XIX. Para mudar essa situação, o sistema normal de escolarização, freqüentemente bastante problemático no campo, seria insuficiente. Penso numa série de possibilidades. Uma seria e estou improvisando o planejamento de transmissões de televisão atendendo pontos nevrálgicos daquele peculiar estado de consciência. Além disto, imagino a formação de grupos e colunas educacionais móveis de voluntários que se dirijam ao campo e procurem preencher as lacunas mais graves por meio de discussões, de cursos e de ensino suplementar. Naturalmente sei que dificilmente essas pessoas serão muito bem-vistas. Mas com o passar do tempo se estabelecerá um pequeno círculo que se imporá e que talvez tenha condições de se irradiar.
Entretanto não deve haver nenhum mal-entendido quanto à inclinação arcaica pela violência existente também nas cidades, principalmente nos grandes centros. Tendências de regressão ou seja, pessoas com traços sádicos reprimidos são produzidas por toda parte pela tendência social geral. Nessa medida quero lembrar a relação perturbada e patogênica com o corpo que Horkheimer e eu descrevemos na Dialética do esclarecimento. Em cada situação em que a consciência é mutilada, isto se reflete sobre o corpo e a esfera corporal de uma forma não-livre e que é propicia à violência. Basta prestar atenção em um certo tipo de pessoa inculta como até mesmo a sua linguagem — principalmente quando algo é criticado ou exigido se torna ameaçadora, como se os gestos da fala fossem de uma violência corporal quase incontrolada. Aqui seria preciso estudai também a função do esporte. que ainda não foi devidamente reconhecida por uma psicologia social crítica. O esporte é ambíguo: por um lado, ele pode ter um efeito contrário à barbárie e ao sadismo, por intermédio do fairplay, do cavalheirismo e do respeito pelo mais fraco. Por outro, em algumas de suas modalidades e procedimentos, ele pode promover a agressão a brutalidade C o sadismo, principalmente no caso de espectadores. que pessoalmente não estão submetidos ao esforço e à. disciplina do esporte; são aqueles que costumam gritar nos campos esportivos. É preciso analisar de uma maneira sistemática essa ambigüidade. Os resultados teriam que ser aplicados à vida esportiva na medida da influência da educação sobre a mesma.
Tudo isso se relaciona de um modo ou outro à velha estrutura vinculada à autoridade, a modos de agir —- eu quase diria do velho e bom caráter autoritário. Mas aquilo que gera Auschwitz, os tipos característicos ao mundo de Auschwitz, constituem presumivelmente algo de novo. Por um lado, eles representam a identificação cega com o coletivo. Por outro, são talhados para manipular massas, coletivos, tais como os Himmler, Höss, Eichmann. Considero que o mais importante para enfrentar o perigo de que tudo se repita é contrapor-se ao poder cego de todos os coletivos, fortalecendo a resistência frente aos mesmos por meio do esclarecimento do problema da coletivização. Isto não é tão abstrato quanto passa parecer ao entusiasmo participativo. especialmente das pessoas jovens, de consciência progressista. O ponto de partida poderia estar no sofrimento que os coletivos infligem e se filiam a eles. Basta pensar nas primeiras experiências de cada um na escola. ~ preciso se opor àquele tipo de folk-ways, hábitos populares, ritos de iniciação de qualquer espécie, que infligem dor física muitas vezes insuportável – a uma pessoa como preço do direito de ela se sentir um filiado, um
membro do coletivo. A brutalidade de hábitos tais como os trotes de qualquer ordem, ou quaisquer outros costumes arraigados desse tipo, é precursora imediata da violência nazista. Não foi por acaso que os nazistas enalteceram e cultivaram tais barbaridades com o nome de “costumes”. Eis aqui um campo muito atual para a ciência. Ela poderia inverter decididamente essa tendência da etnologia encampada com entusiasmo pelos nazistas, para refrear esta sobrevida simultaneamente brutal e fantasmagórica desses divertimentos populares.
Tudo isso tem a ver com um pretenso ideal que desempenha um papel relevante na educação tradicional em geral: a severidade. Esta pode até mesmo remeter a uma afirmativa de Nietzsche, por mais humilhante que seja e embora ele na verdade pensasse em outra coisa. Lembro que durante o processo sobre Auschwitz, em um de seus acessos, o terrível Boger culminou num elogio à educação baseada na força e voltada à disciplina. Ela seria necessária para constituir o tipo de homem que lhe parecia adequado. Essa idéia educacional da severidade, em que irrefletidamente muitos podem até acreditar, é totalmente equivocada. A idéia de que a virilidade consiste num grau máximo da capacidade de suportar dor de há muito se converteu em fachada de um masoquismo que como mostrou a psicologia se identifica com muita facilidade ao sadismo. O elogiado objetivo de “ser duro” de uma tal educação significa indiferença contra a dor em geral. No que, inclusive, nem se diferencia tanto a dor do outro e a dor de si próprio. Quem é severo consigo mesmo adquire o direito de ser severo também com os outros, vingando-se da dor cujas manifestações precisou ocultar e reprimir. Tanto é necessário tornar consciente esse mecanismo quanto se impõe a promoção de uma educação que não premia a dor e a capacidade de suportá-la, como acontecia antigamente. Dito de outro modo: a educação precisa levar a sério o que já de há muito é do conhecimento da filosofia: que o medo não deve ser reprimido. Quando o medo não é reprimido, quando nos permitimos ter realmente tanto medo quanto esta realidade exige, então justamente por essa via desaparecerá provavelmente grande parte dos efeitos deletérios do medo inconsciente e reprimido.
Pessoas que se enquadram cegamente em coletivos convertem a si próprios em algo como um material, dissolvendo-se como seres autodeterminados. Isto combina com a disposição de tratar outros como sendo uma massa amorfa. Para os que se comportam dessa maneira utilizei o termo “caráter manipulador” em Authoritarian personality (A personalidade autoritária), e isto quando ainda não se conhecia o diário de Höss ou as anotações de Eichmann. Minhas descrições do caráter manipulador datam dos últimos anos da Segunda Guerra Mundial. Às vezes a psicologia social e a sociologia conseguem construir conceitos confirmados empiricamente só muito tempo depois. O caráter manipulador e qualquer um pode acompanhar isto a partir das fontes disponíveis acerca desses lideres nazistas – se distingue pela fúria organizativa, pela incapacidade total de levar a cabo
experiências humanas diretas, por um certo tipo de ausência de emoções, por um realismo exagerado. A qualquer custo ele procura praticar uma pretensa, embora delirante, realpolitik. Nem por um segundo sequer ele imagina o mundo diferente do que ele é, possesso pela vontade de doing things, de fazer coisas, indiferente ao conteúdo de tais ações. Ele faz do ser atuante, da atividade, da chamada efficiency enquanto tal, um culto, cujo eco ressoa na propaganda do homem ativo. Este tipo encontra-se, entrementes a crer em minhas observações e generalizando algumas pesquisas sociológicas —-, muito mais disseminado do que se poderia imaginar. O que outrora era exemplificado apenas por alguns monstros nazistas pode ser constatado hoje a partir de casos numerosos, como delinqüentes juvenis, lideres de quadrilhas e tipos semelhantes, diariamente presentes no noticiário. Se fosse obrigado a resumir em uma fórmula esse tipo de caráter manipulador o que talvez seja equivocado embora útil à compreensão eu o denominaria de o tipo da consciência coisificada. No começo as pessoas desse tipo se tornam por assim dizer iguais a coisas. Em seguida, na medida em que o conseguem, tornam os outros iguais a coisas. Isto é muito bem traduzido pela expressão aprontar, que goza de igual popularidade entre os valentões juvenis e entre os nazistas. Esta expressão aprontar define as pessoas como sendo coisas aprontadas em seu duplo sentido. Conforme Max Horkheimer, a tortura é a adaptação controlada e devidamente acelerada das pessoas aos coletivos. Algo disso encontra-se no espirito da época, por menos procedente que seja falar em espírito nesses termos. Enfim, resumirei citando Paul Valéry, que antes da última Guerra Mundial disse que a desumanidade teria um grande futuro. É particularmente difícil confrontar esta questão porque aquelas pessoas manipuladoras, no fundo incapazes de fazer experiências, por isto mesmo revelam traços de incomunicabilidade, no que se identificam com certos doentes mentais ou personalidades psicóticas. Nas tentativas de atuar contrariamente à repetição de Auschwitz pareceu.me fundamental produzir inicialmente uma certa clareza acerca do modo de constituição do caráter manipulador, para em seguida poder impedir da melhor maneira possível a sua formação, pela transformação das condições para tanto. Quero fazer uma proposta concreta: utilizar todos os métodos científicos disponíveis, em especial psicanálise durante muitos anos, para estudar os culpados por Auschwitz, visando se possível descobrir como uma pessoa se torna assim. O que aqueles ainda podem fazer de bom é contribuir, em contradição com a própria estrutura de sua personalidade, no sentido de que as coisas não se repitam. E essa contribuição só ocorreria na medida em que colaborassem na investigação de sua gênese.
Obviamente seria difícil levá-los a falar; em nenhuma hipótese poder-se-ia aplicar qualquer procedimento semelhante a seus próprios métodos para aprender como eles se tornaram do jeito que são. De qualquer modo, entrementes eles se sentem justamente em seu coletivo, com a sensação de que todos são velhos nazistas — tão protegidos, que praticamente nenhum demonstrou nem ao menos remorsos. Porém presumivelmente também neles, ou em alguns deles, existem pontos de apoio psicológicos mediante os quais seria possível mudar isto, como, por exemplo, seu narcisismo, ou, dito simplesmente, seu orgulho. Eles se sentirão importantes ao poder falar livremente a seu respeito, tal como Eichmann, cujas falas aparentemente preenchem fileiras inteiras de volumes. Finalmente, é de supor que também nessas pessoas, aprofundando-se suficientemente a busca, existam restos da velha instância da consciência moral que se encontra atualmente em grande parte em processo de dissolução.
Na medida em que se conhecem as condições internas e externas que os tornaram assim pressupondo por hipótese que esse conhecimento é possível , seria possível tirar conclusões práticas que impeçam a repetição de Auschwitz. A utilidade ou não de semelhante tentativa só se mostrará após sua concretização; não pretendo superestimá-la. É preciso lembrar que as pessoas não podem ser explicadas automaticamente a partir de condições como estas. Em condições iguais alguns se tornaram assim, e Outros de um jeito bem diferente. Mesmo assim valeria a pena. O mero questionamento de como se ficou assim já encerraria um potencial esclarecedor. Pois um dos momentos do estado de consciência e de inconsciência daninhos está em que seu ser-assim que se é de um determinado modo e não de outro —- é apreendido equivocadamente como natureza, como um dado imutável e não como resultado de uma formação. Mencionei o conceito de consciência coisificada. Esta é sobretudo uma consciência que se defende em relação a qualquer vir-a-ser, frente a qualquer apreensão do próprio condicionamento, impondo como sendo absoluto o que existe de um determinado modo. Acredito que o rompimento desse mecanismo impositivo seria recompensador.  No que diz respeito à consciência coisificada, além disto é preciso examinar também a relação com a técnica, sem restringir-se a pequenos grupos. Esta relação é tão ambígua quanto a do esporte, com que aliás tem afinidade. Por um lado, é certo que todas as épocas produzem as personalidades tipos de distribuição da energia psíquica de que necessitam socialrnente. Um mundo em que a técnica ocupa uma posição tão decisiva como acontece atualmente, gera pessoas tecnológicas, afinadas com a técnica. Isto tem a sua racionalidade boa: em seu plano mais restrito elas serão menos influenciáveis, com as correspondentes conseqüências no plano geral. Por outro lado, na relação atual com a técnica existe algo de exagerado, irracional, patogênico. Isto se vincula ao “véu tecnológico”. Os homens inclinam-se a considerar a técnica como sendo algo em si mesma, um fim em si mesmo, uma força própria, esquecendo que ela é a extensão do braço dos homens. Os meios e a técnica é um conceito de meios dirigidos à autoconservação da espécie humana são fetichizados, porque os fins uma vida humana digna encontram-se encobertos e desconectados da consciência das pessoas.
Afirmações gerais como estas são até convincentes. Porém uma tal hipótese ainda é excessivamente abstrata. Não se sabe com certeza como se verifica a fetichização da técnica na psicologia individual dos indivíduos, onde está o ponto de transição entre uma relação racional com ela e aquela supervalorização, que leva, em última análise, quem projeta um sistema ferroviário para conduzir as vitimas a Auschwitz com maior rapidez e fluência, a esquecer o que acontece com estas vítimas em Auschwitz. No caso do tipo com tendências à fetichização da técnica, trata-se simplesmente de pessoas incapazes de amar. Isto não deve ser entendido num sentido sentimental ou moralizante, mas denotando a carente relação libidinal com Outras pessoas. Elas são inteiramente frias e precisam negar também em seu íntimo a possibilidade do amor, recusando de antemão nas outras pessoas o seu amor antes que o mesmo se instale. A capacidade de amar, que de alguma maneira sobrevive, eles precisam aplicá-la aos meios. As personalidades preconceituosas e vinculadas à autoridade com que nos ocupamos em Authoritarian Personality, em Berkeley, forneceram muitas evidências neste sentido. Um sujeito experimental —- e a própria expressão já é do repertório da consciência coisificada – afirmava de si mesmo: “I like nice equipament” (Eu gosto de equipamentos, de instrumentos bonitos), independentemente dos equipamentos em questão. Seu amor era absorvido por coisas, máquinas enquanto tais. O perturbador porque torna tão desesperançoso atuar contrariamente a isso é que esta tendência de desenvolvimento encontra-se vinculada ao conjunto da civilização. Combatê-lo significa o mesmo que ser contra o espírito do mundo; e desta maneira apenas repito algo que apresentei no começo como sendo o aspecto mais obscuro de uma educação contra Auschwitz.
Afirmei que aquelas pessoas eram frias de um modo peculiar. Aqui vêm a propósito algumas palavras acerca da frieza. Se ela não fosse um traço básico da antropologia, e, portanto, da constituição humana como ela realmente é em nossa sociedade; se as pessoas não fossem profundamente indiferentes em relação ao que acontece com todas as outras, executando o punhado com que mantêm vínculos estreitos e possivelmente por intermédio de alguns interesses concretos, então Auschwitz não teria sido possível, as pessoas não o teriam aceito. Em sua configuração atual e provavelmente há milênios – a sociedade não repousa em atração, em simpatia, como se supôs ideologicamente desde Aristóteles, mas na persecução dos próprios interesses frente aos interesses dos demais. Isto se sedimentou do modo mais profundo no caráter das pessoas. O que contradiz, o impulso grupal da chamada lonely crowd, da massa solitária, na verdade constitui uma reação, um enturmar-se de pessoas frias que não suportam a própria frieza mas nada podem fazer para alterá-la. Hoje em dia qualquer pessoa, sem exceção, se sente mal-amada, porque cada um é deficiente na capacidade de amar. A incapacidade para a identificação foi sem dúvida a condição psicológica mais importante para tornar possível algo como Auschwitz em meio a pessoas mais ou menos civilizadas e inofensivas. O que se chama de “participação oportunista” era antes de mais nada interesse prático: perceber antes de tudo a sua própria vantagem e não dar com a língua nos dentes para não se prejudicar. Esta é uma lei geral do existente. O silêncio sob o terror era apenas a conseqüência disto. A frieza da mônada social, do concorrente isolado, constituía, enquanto indiferença frente ao destino do outro, o pressuposto para que apenas alguns raros se mobilizassem. Os algozes sabem disto; e repetidamente precisam se assegurar disto.
Não me entendam mal. Não quero pregar o amor. Penso que sua pregação é vã: ninguém teria inclusive o direito de pregá-lo, porque a deficiência de amor, repito, é uma deficiência de todas as pessoas, sem exceção, nos termos em que existem hoje. Pregar o amor pressupõe naqueles a quem nos dirigimos uma outra estrutura do caráter, diferente da que pretendemos transformar. Pois as pessoas que devemos amar são elas próprias incapazes de amar e por isto nem são tão amáveis assim. Um dos grandes impulsos do cristianismo, a não ser confundido com o dogma, foi apagar a frieza que tudo penetra. Mas esta tentativa fracassou; possivelmente porque não mexeu com a ordem social que produz e reproduz a frieza. Provavelmente até hoje nunca existiu aquele calor humano que todos almejamos, a não ser durante períodos breves e em grupos bastante restritos, e talvez entre alguns selvagens pacíficos. Os utópicos freqüentemente ridicularizados perceberam isto. Charles Fourier, por exemplo, definiu a atração como algo ainda por ser constituído por uma ordem social digna de um ponto de vista humano. Também reconheceu que esta situação só seria possível quando os instintos não fossem mais reprimidos, mas satisfeitos e liberados. Se existe algo que pode ajudar contra a frieza como condição da desgraça, então trata-se do conhecimento dos próprios pressupostos desta, bem como da tentativa de trabalhar previamente no plano individual contra esses pressupostos. Agrada pensar que a chance é tanto maior quanto menos se erra na infância, quanto melhor são tratadas as crianças. Mas mesmo aqui pode haver ilusões. Crianças que não suspeitam nada da crueldade e da dureza da vida acabam por ser particularmente expostas à barbárie depois que deixam de ser protegidas. Mas, sobretudo, não é possível mobilizar para o calor humano pais que são, eles próprios, produtos desta sociedade, cujas marcas ostentam. O apelo a dar mais calor humano às crianças é artificial e por isto acaba negando o próprio calor. Além disto o amor não pode ser exigido em relações profissionalmente intermediadas, como entre professor e aluno, médico e paciente, advogado e cliente. Ele é algo direto e contraditório com relações que em sua essência são intermediadas. O incentivo ao amor —– provavelmente na forma mais imperativa, de um dever constitui ele próprio parte de uma ideologia que perpetua a frieza. Ele combina com o que é impositivo, opressor, que atua contrariamente à capacidade de amar. Por isto o primeiro passo seria ajudar a frieza a adquirir consciência de si própria, das razões pelas quais foi gerada.
Para terminar gostaria ainda de discorrer brevemente a respeito de algumas possibilidades de conscientização dos mecanismos subjetivos em geral, sem os quais Auschwitz dificilmente aconteceria. O conhecimento desses mecanismos é uma necessidade; da mesma forma também o é o conhecimento da defesa estereotipada, que bloqueia uma tal consciência. Quem ainda insiste em afirmar que o acontecido nem foi tão grave assim já está defendendo o que ocorreu, e sem dúvida seria capaz de assistir ou colaborar se tudo acontecesse de novo. Mesmo que o esclarecimento racional não dissolva diretamente os mecanismos inconscientes conforme ensina o conhecimento preciso da psicologia , ele ao menos fortalece na pré-consciência determinadas instâncias de resistência, ajudando a criar um clima desfavorável ao extremismo. Se a consciência cultural em seu conjunto fosse efetivamente perpassada pela premonição do caráter patogênico dos traços que se revelaram com clareza em Auschwitz, talvez as pessoas tivessem evitado melhor aqueles traços.
Além disso seria necessário esclarecer quanto à possibilidade de haver um outro direcionamento para a fúria ocorrida em Auschwitz. Amanhã pode ser a vez de um outro grupo que não os judeus, por exemplo os idosos, que escaparam por pouco no Terceiro Reich, ou os intelectuais, ou simplesmente alguns grupos divergentes. O clima —- e quero enfatizar esta questão mais favorável a um tal ressurgimento é o nacionalismo ressurgente. Ele é tão raivoso justamente porque nesta época de comunicações internacionais e de blocos supranacionais já não é mais tão convicto, obrigando-se ao exagero desmesurado para convencer a si e aos outros que ainda têm substância.
De qualquer modo, haveria que mostrar as possibilidades concretas da resistência. Por exemplo, a história dos assassinatos por eutanásia, que acabaram não sendo cometidos na dimensão pretendida pelos nazistas na Alemanha, graças a resistência manifestada. A resistência limitava-se ao próprio grupo; e justamente este é um sintoma bastante notável e amplo da frieza geral. Além de tudo, porém, ela é limitada também em face da insaciabilidade presente no princípio das perseguições. Em última instância, qualquer pessoa não-pertencente ao grupo perseguidor pode ser atingida; portanto, existe um interesse egoísta drástico a que se poderia apelar. Enfim, seria necessário indagar pelas condições específicas, históricas, das perseguições. Em uma época em que o nacionalismo é antiquado, os chamados movimentos de renovação nacional são, ao que tudo indica, particularmente sujeitos a práticas sádicas.
Finalmente, o centro de toda educação política deveria ser que Auschwitz não se repita. Isto só será possível na medida em que ela se ocupe da mais importante das questões sem receio de contrariar quaisquer potências. Para isto teria de se transformar em sociologia, informando acerca do jogo de forças localizado por trás da superfície das formas políticas. Seria preciso tratar criticamente um conceito tão respeitável como o da razão de Estado, para citar apenas um modelo: na medida em que colocamos o direito do Estado acima do de seus integrantes, o terror já passa a estar potencialmente presente.  Em Paris, durante a emigração, quando eu ainda retornava esporadicamente à Alemanha, certa vez Walter Benjamin me perguntou se ali ainda havia algozes em número suficiente para executar o que os nazistas ordenavam. Havia. Apesar disto a pergunta é profundamente justificável. Benjamm percebeu que, ao contrário dos assassinos de gabinete e dos ideólogos, as pessoas que executam as tarefas agem em contradição com seus próprios interesses imediatos, são assassinas de si mesmas na medida em que assassinam os outros. Temo que será difícil evitar o reaparecimento de assassinos de gabinete, por mais abrangentes que sejam as medidas educacionais. Mas que haja pessoas que, em posições subalternas, enquanto serviçais, façam coisas que perpetuam sua própria servidão, tornando-as indignas; que continue a haver Bojeis e Kaduks, contra isto é possível empreender algo mediante a educação e o esclarecimento.
Tradução: Wolfgang Leo Maar
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