terça-feira, 11 de setembro de 2012


CONVERGÊNCIAS E TENSÕES REVELADAS
POR UM PROGRAMA DE PESQUISAS
SOBRE FORMAÇÃO DOCENTE
Menga Lüdke
PUC-Rio e UCP
O tema geral para o encontro deste ano, “Convergências
e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas
e práticas educacionais” é muito desaiador, mas ao mesmo tempo
estimulante, provocando logo nossa relexão e vontade de procurar
responder como for possível a esse desaio. O tópico do nosso
simpósio já estabelece alguns limites, dirigindo o foco para o campo
da pesquisa sobre a formação de professores em nosso país, o que
ainda representa uma tarefa ingente, a qual procurarei cumprir dentro
dos meus limites. Para tanto vou partir de sugestões extraídas de um
artigo de K. M. Zeichner (2009), que me levaram à consideração de
constatações de um programa de pesquisas que venho desenvolvendo
sobre o tema e a relexões ligadas a experiências no campo da
formação de professores, onde venho trabalhando há tanto tempo.
O artigo de Zeichner (2009), publicado no primeiro número de
nossa revista, do Grupo de Trabalho sobre Formação de Professores da
ANPEd, como seu título já diz, constitui uma agenda de pesquisa sobre
a formação de professores e, embora se dirija diretamente à realidade
de seu país, os Estados Unidos, não deixa de levantar questões e
sugestões bastante pertinentes ao nosso. São tantas e tão oportunas
que uma consideração devida ultrapassaria de muito os limites
cabíveis neste texto. Vou, portanto, selecionar aquelas mais dirigidas
ao nosso foco e que mais me chamaram a atenção. O autor levanta
uma série de pontos frágeis constatados na pesquisa sobre formação
de professores, em um estudo efetuado ao longo de quatro anos, por
um grupo de pesquisadores, sob sua coordenação, por iniciativa da
American Educational ResearchAssociation,AERA. O estudo procurou
fazer um balanço desse domínio de pesquisa, examinando um grande261
número de publicações no período focalizado. Dentre os aspectos
vulneráveis o autor aponta a falta de clareza e precisão sobre métodos
de coleta e de análise de dados, assim como sobre o contexto onde a
pesquisa foi realizada; a fraca consistência em relação ao referencial
teórico utilizado; a pouca disponibilidade de instrumentos de coleta
e recursos de análises bem sucedidos em pesquisas já realizadas,
que poderiam ser úteis a outras em andamento; a falta de atenção ao
desenvolvimento de medidas mais iéis e apropriadas à apreciação do
desempenho de professores e de alunos e da própria relação entre
o trabalho dos dois grupos; a escassa quantidade de estudos com
abordagens multidisciplinares e multimetodológicas, para focalizar
a grande variedade de estudantes hoje atendidos pela escola e
seus problemas; a exigüidade de programas de pesquisa, inclusive
desenvolvidos em parcerias, que possam assegurar a continuidade de
realização de estudos que demandam mais tempo e mais pessoal; a
falta de estudos sobre alternativas possíveis para a formação docente,
sobre os problemas curriculares e arranjos organizacionais de seus
cursos, sobre a validade preditiva de seus padrões de admissão e
a própria formação dos professores formadores que atuam nesses
cursos.
Depois de uma longa e bem explicitada listagem de problemas,
dos quais destaquei apenas alguns, o autor deixa clara sua convicção
de que tem havido nos últimos anos uma clara redução de recursos
governamentais para a pesquisa em educação em geral e em especial
para aquela voltada para a formação de professores e apresenta
algumas sugestões, como conclusão de seu estudo. Lamentando a
fraca relação entre os resultados da pesquisa sobre formação docente
e as decisões políticas e práticas relativas aos cursos de preparação
de professores, ele se declara assim mesmo otimista a respeito desse
campo de pesquisa educacional, ainda novo, mas bastante dinâmico
e já produzindo seus frutos.
A partir daí o autor alinhava algumas propostas de trabalho para
começar a enfrentar os desaios para o desenvolvimento do referido
campo. A primeira seria a criação de um banco de dados, em nível262
nacional, cobrindo a variedade de cursos disponíveis para a formação
docente, com todas as suas especiicidades, de modo a oferecer
informações seguras sobre as possibilidades já experimentadas, nas
quais vale a pena investir. A segunda se refere à necessidade de
maior apoio de fundações e agências inanciadoras, para assegurar
melhores condições para o desenvolvimento da pesquisa na área.
A terceira sugere a concentração de esforços sobre a formação de
pesquisadores para a área da educação em geral e em particular
para a que se dedica aos problemas da formação docente. O autor é
especialmente claro na discussão sobre o papel dos cursos de pósgraduação, sugerindo programas especíicos relativos a esse tópico e
o estímulo a estágios de pós-doutoramento, onde os recém-doutores
possam conviver e trabalhar com pesquisadores mais experientes,
conseguindo assim acesso a recursos e soluções já dominados
por eles, que representam atalhos em sua própria evolução como
pesquisadores. Finalmente, em quarto lugar, o autor apresenta uma
sugestão aparentemente surpreendente, mas que pode se revelar
de grande utilidade para o desenvolvimento de pesquisadores para o
nosso campo de pesquisa, o da formação de professores. Trata-se de
constituir e oferecer aos revisores um conjunto de orientações mais
precisas do que as disponíveis hoje, para a avaliação de pesquisas
para obterem inanciamento ou para serem publicadas.
As duas últimas sugestões estão de modo especial relacionadas
com algumas das principais constatações de um programa de
pesquisas sobre formação de pesquisadores em educação que venho
desenvolvendo há alguns anos, e despertam considerações relativas
ao tema do nosso simpósio. Para começar, trata-se de um programa de
pesquisas, uma das recomendações do autor para garantir melhores
possibilidades de continuidade de estudos que exigem maior duração.
Esse programa envolveu, em suas quatro etapas, vários grupos de
pesquisa, compostos por licenciandos, mestrandos, e doutorandos,
que foram se sucedendo, dando cumprimento aos trabalhos da
pesquisa e também à sua formação como pesquisadores, chegando
hoje a um conjunto de oito doutores, sete mestres, duas dos quais já263
em cursos de doutoramento, além de sete licenciados.
O tema central do programa de estudos é o lugar da pesquisa
na formação e no trabalho do professor da educação básica. Nossa
preocupação era conhecer mais de perto a situação do componente
pesquisa na realidade do dia-a-dia desse professor, já que na academia
ele é considerado como indispensável para um trabalho docente
autêntico, não meramente repetitivo e prescrito. Para aumentar a
probabilidade de atingir esse objetivo procuramos nos servir de uma
amostra de estabelecimentos escolares, que já oferecessem aos seus
professores algumas condições básicas para o desenvolvimento de
atividades de pesquisa, tais como, tempo, espaço, estímulo por meio
de algum inanciamento, entre outras. Uma condição preliminar seria
a própria formação desses professores, que deveriam ter passado
pelos cursos de licenciatura, onde o componente pesquisa entra
obrigatoriamente na composição curricular. Assim, para atender a esse
requisito inicial dirigimos nosso foco para professores do ensino médio,
formados, portanto, em cursos de licenciatura. Os estabelecimentos,
todos da rede pública, foram escolhidos precisamente por oferecerem
as mencionadas condições básicas, o que os torna, de certa forma,
especiais. Esta é uma característica inteiramente integrada em nosso
estudo, que procurou por meio dela, e do que ela representa, assegurar
a melhor situação disponível para nossa investigação. O que fosse
encontrado por meio dela, em termos de atividades de pesquisa,
diicilmente encontraríamos em escolas que não dispõem das mesmas
condições. O que não elimina, por certo, a possibilidade de encontrá-
las em outras escolas, mas acreditamos que a probabilidade será bem
menor. Explicamos e discutimos esse e outros pontos do estudo no
livro que resultou de seu relatório inal (Lüdke, cood. 2001/2009, 6ª
ed.).
O que merece destaque em função do nosso tema são
algumas constatações desse nosso estudo. A primeira, ainda que
não propriamente alviçareira, foi encontrar professores realizando
pesquisas em escolas da educação básica da rede pública. Não
foram muitos, nem muito numerosas as pesquisas encontradas, mas264
suicientes para conirmar a possibilidade de sua realização e levantar,
por sua vez, uma série de questões. A primeira relativa ao próprio
tipo de atividades consideradas “de pesquisa” nas escolas estudadas.
Elas vão da simples organização de uma feira de ciências, ou o
aprofundamento de umtema de estudo por um grupo de professores, até
o desenvolvimento de trabalhos bastante soisticados, com publicação
em revistas internacionais. O termo “projeto” aparece em todas elas
possivelmente representando uma exigência que, em alguns casos,
pode representar a própria pesquisa, cuja realização por completo
pode não chegar a ser cumprida. A falta de clareza sobre o que nos
foi apresentado como atividades de pesquisa levou-nos à questão da
própria conceituação de pesquisa pelos professores entrevistados.
A deinição “acadêmica” vinha logo que interrogados, mas alguns
chegaram a explicitar “que não se trata, porém, desse tipo de pesquisa
que precisamos aqui, em nossas escolas”. O que nos sugere uma
relexão necessária sobre o conceito de pesquisa dominante (o da
academia), e o que poderia corresponder às necessidades sentidas
pelos professores em suas escolas de educação básica.
Desenvolvemos esse ponto em nosso livro já citado (Lüdke,
coord. 2001), mas ele guarda também uma ligação direta com uma
das idéias trazidas por Zeichner em seu artigo de 2009, e em vários
outros trabalhos seus muito conhecidos (Zeichner, 2002; Zeichner e
Nofke, 2001). Que tipos de pesquisa, ou de atividades de pesquisa,
são mais próximos da realidade dos nossos professores? Como
preservar a integridade do conceito de pesquisa, como construção
de conhecimento de acordo com certos requisitos básicos, e ir por
meio dela ao encontro das necessidades desses professores e
também da sua formação como pesquisadores? O próprio conceito
de pesquisa sofre de algumas vulnerabilidades, de modo especial,
quando o examinamos dentro do quadro de trabalho (e de formação)
desses professores, como buscou fazer Beillerot (1991/ 2001), em um
esforço muito produtivo para entender o problema, sem a pretensão
de resolvê-lo, porém. Nesse esforço ele sugere uma classiicação
dupla, que procura atender a aproximação da pesquisa às condições265
e exigências da realidade dos professores, sem deixar de lado os
requisitos de toda pesquisa. Zeichner (2009) levanta esse desaio para
a formação de pesquisadores em educação, especiicamente voltados
para o tema da formação de professores.
Dialogando com o autor, reconheço a pertinência de sua
percepção sobre a importância de assegurar uma relação vital entre
os problemas pedindo investigação e preparação de pesquisadores
para dar conta dela, passando pelas modalidades hoje disponíveis,
assim como, por certo, pelos recursos oferecidos (nem sempre!) pela
formação, para assegurar sua credibilidade. Eis aí um ponto forte de
convergência e de tensões no campo da pesquisa sobre formação de
professores: por um lado reconhecemos a importância de desenvolver
em nossos professores da educação básica a dimensão de pesquisa,
inclusive porque representam os candidatos mais credenciados para
assumir as responsabilidades por esse domínio de investigação de
modo mais efetivo; por outro, nos encontramos um tanto perplexos
frente à falta de consensualidade a respeito do conceito de pesquisa
e de como lidar com ele na situação de trabalho e de preparação do
professor.
Passo então a outra constatação da primeira etapa de nossa
pesquisa, que conirma o ponto de tensão e convergência mencionado
e se tornou objeto central de sua segunda etapa. Os professores
pesquisadores entrevistados, em sua vasta maioria, se declararam
muito insatisfeitos em relação à formação para a pesquisa recebida em
seus cursos de licenciatura. Apenas os poucos que haviam passado
pela experiência de “iniciação cientiica” se mostraram mais satisfeitos
com essa preparação. Isso nos motivou a interrogar os formadores
de nossos professores, que lecionam nos cursos de licenciatura
das universidades às quais estão ligados os estabelecimentos
onde atuam nossos entrevistados. Nossa pergunta chave era como
esses formadores pensam e trabalham sobre a preparação de seus
licenciandos como futuros pesquisadores. Novamente constatamos
convergências: entre os cinqüenta formadores entrevistados foi
unânime o reconhecimento da importância da pesquisa na formação266
do futuro professor. Com relação à forma como deve se processar essa
preparação já não houve nem mesmo uma visão predominante. As
opiniões se dividiram entre o trabalho de im de curso, ou monograia,
considerada por alguns como uma boa introdução às habilidades
básicas para a atividade de pesquisa, de modo especial a de escrever
adequadamente. Para outros ela não passa de um artifício de “corte
e colagem” de textos já publicados de outros autores. Uma disciplina
de metodologia de pesquisa também foi indicada por um grupo de
formadores, como já tinha sido reclamada por alguns dos professores
estudados na primeira etapa da pesquisa. Alguns poucos formadores
se lembraram do potencial da iniciação cientiica e outros, ainda menos
numerosos, mencionaram a participação em grupo de pesquisa, em
colaboração com professores da universidade, fato, infelizmente,
ainda raro entre nós.
Conirma-se a perplexidade reinante em nossos cursos
de licenciatura sobre como devem eles se desincumbir da
responsabilidade sobre a formação de futuros pesquisadores, que
são todos os alunos desses cursos. Volto a lembrar que entre eles se
encontram os mais prováveis candidatos a se tornar pesquisadores
“por excelência”, aproximando-se do grau mais avançado da
seqüência indicada por Beillerot (2001), para representar as diferentes
situações de professores em relação à prática da pesquisa: estar em
pesquisa, fazer pesquisa e, inalmente, ser um pesquisador. São eles
que provavelmente se encaminharão para os cursos de mestrado e
depois, se for possível, aos de doutorado, nos quais irão completando
sua formação para a pesquisa iniciada, numa perspectiva otimista,
nos cursos de graduação. Permito-me assinalar, de passagem, a
importância urgente de considerarmos mais atentamente o papel
desses cursos na formação do futuro pesquisador, pela monograia
(bastante mal compreendida e trabalhada em geral), pela iniciação
cientiica e participação em grupos de pesquisa.
Passo agora diretamente à consideração de constatações da
quarta etapa de nosso programa de pesquisa, deixando para mais
adiante as que registramos na terceira etapa, mais relacionadas com267
a última sugestão do estudo de Zeichner (2009). Nossa quarta e
última etapa focalizou o curso de mestrado como a primeira, em geral,
oportunidade efetiva de desenvolvimento de uma pesquisa própria,
por parte de professores da educação básica, que procuram esse
curso como complementação de sua formação como pesquisadores.
A partir dos depoimentos de 30 professores, da rede pública, que
buscaram esse curso em uma universidade pública do Rio de Janeiro,
permanecendo ligados a funções docentes nessa rede, chegamos
a algumas informações que também guardam estreita relação com
nosso tema.
A mais geral e mais impactante constatação para nós foi a
clara manifestação, da quase totalidade dos entrevistados, sobre a
importante inluência do curso de mestrado, não exatamente como
eles e nós mesmos esperávamos constatar, como decisivo fator para
a solução imediata dos problemas trazidos de suas escolas. Para eles,
como pudemos acompanhar pelos depoimentos, o desenrolar dos
estudos no mestrado, ainda que não tivesse se afastado inteiramente
daqueles problemas, não se consagrou ao encaminhamento direto
de suas soluções. O que ocorreu, como perceberam bem nossos
entrevistados, foi, na quase totalidade dos casos, uma consideração
desses problemas, porém por meio de um alargamento da visão
dos mestrandos sobre eles, a partir de um aprofundamento da
discussão teórica e da busca de recursos metodológicos para seu
estudo. Esse esforço não resultou, em geral, em soluções aplicáveis
de imediato aos problemas, na volta às escolas. Mas, como icou
patente nos depoimentos, ele representou uma “mudança no olhar”,
sobre aqueles problemas e sobre a própria pesquisa. Pelo mestrado
esses professores passaram a ver seus alunos, suas escolas, e suas
respectivas limitações, “com outros olhos”, como nos disseram e a
entender a atividade de pesquisa como bem mais complexa do que
conjecturavam ao entrar para o curso. Parece-nos que uma visão um
tanto ingênua, que imaginava a pesquisa como recurso quase imediato
para o enfrentamento dos problemas da escola, cedeu lugar a uma
perspectiva mais aproximada do que entendemos nós na academia268
sobre o que é pesquisa, com toda a carga de indeinição que isso
possa carregar.
Perguntados sobre se se sentem capazes, de volta a suas
escolas após o mestrado, de proporem e conduzirem uma pesquisa,
talvez com a participação de colegas, nossos entrevistados, com
poucas exceções, responderam muito cautelosamente que ainda
não se declarariam na situação de “ser um pesquisador”, como
diria Beillerot (2001). Mas já constatam em si mesmos uma grande
transformação, no modo de entender e conseqüentemente de procurar
enfrentar os problemas que aligem nossas escolas, por meio dos
recursos oferecidos pela pesquisa, com todas as suas exigências e
limitações. E o mestrado representou para eles uma etapa efetiva em
sua caminhada como pesquisadores, sobretudo pela oportunidade de
propor e trabalhar em torno de um problema seu, que sentem como
de sua responsabilidade, como sugere Saviani (1996), mas contando
com os recursos oferecidos pela universidade, como compete ao
seu papel de formadora. Nossa apreciação geral ao término desse
estudo foi mais positiva do que supúnhamos ao iniciá-lo, com relação
ao papel do curso de mestrado como instância de preparação para
a pesquisa, como será explicitado em publicação que deverá reunir
nossas discussões sobre seus resultados.
As constatações da terceira etapa de nosso estudo reletem
com clareza algumas das convergências e tensões vividas pela
pesquisa sobre formação de professores em nosso país, assim
como em outros. A partir da discussão em torno da complexa relação
entre o professor e a pesquisa (Lüdke, 2001), onde se concentram
convergências sobre a importância desse componente na formação e
na atuação do professor e tensões no que diz respeito a sua efetivação,
tanto em uma quanto em outra, propusemos um estudo especíico
(Lüdke, coord. 2009). Queríamos lagrar aspectos dessas tensões
ao vivo e para isso usamos a estratégia de apresentar exemplos
de pesquisas realizadas por professores da educação básica,
apresentadas em encontros cientíicos, a professores pesquisadores
da universidade, pedindo-lhes que as examinassem e emitissem269
pareceres, dizendo se as consideravam como pesquisa, ou não, e por
quais razões. Esses pesquisadores foram escolhidos em função de
sua qualiicação e experiência de pesquisa, mas também pelo seu
interesse e dedicação à área de formação de professores. Assim, seu
julgamento veio carregado de signiicado para a análise da delicada
questão do envolvimento entre o professor da educação básica e a
pesquisa.
No cômputo geral, os 12 julgadores conirmaram a importância
da pesquisa para o professor, em ambos os aspectos, formação e
trabalho. Quanto aos produtos em julgamento, todos se mostraram
bastante cautelosos em relação aos cuidados exigidos de toda
pesquisa e não satisfatoriamente atendidos por eles, de modo geral.
Dos quatro exemplos examinados, apenas um foi considerado pelo
conjunto de avaliadores como se aproximando bem de um trabalho de
pesquisa. Os outros apresentavam lacunas em termos de explicitação
das análises e do referencial teórico, de um claro estabelecimento do
problema em foco e coerente desenvolvimento de seu estudo ao longo
dotrabalho atésuas conclusões emesmo de uma articulação clara entre
as partes do relato, indicando, como disseram alguns dos julgadores,
que possivelmente haveria em alguns uma pesquisa em pauta, mas
seu relato não dava conta disso. A palavra rigor foi mencionada por
quase todos os examinadores, assim como referências a cuidados
metodológicos próprios da pesquisa em educação.
Para nós esse estudo revelou o estado de tensão que existe
entre o claro reconhecimento da exigência de integração da pesquisa
na formação e no trabalho do professor e a falta de clareza sobre
os caminhos para cumpri-la. A procura de meios para atender às
necessidades de pesquisa em ambos os domínios, da formação e do
trabalho, representam desaios constantes para os pesquisadores da
área, em nosso país e em outros. Nos Estados Unidos o movimento
da pesquisa do professor, representado entre outros por autores como
Cochran-Smith e Little(1999) e Anderson e Herr (1999), trouxe grande
estímulo para a valorização desse tipo de pesquisa, que está bastante
presente em trabalhos de Zeichner já citados, de modo especial no270
que se refere à pesquisa relativa ao próprio trabalho do professor,
sobretudo quando realizada em colaboração com pesquisadores da
universidade (Zeichner, 2002).
Em seu artigo de 2009, entre as sugestões já assinaladas neste
texto, Zeichner aponta o interesse em se desenvolver uma orientação
mais clara aos revisores de pesquisa, no intuito de orientar seu próprio
desenvolvimento, por critérios que contribuam para uma aproximação
do que é usualmente considerado como pesquisa no âmbito
universitário. Sem desconhecer as muitas diiculdades envolvidas na
discussão deste tema, parece-me que os pareceres emitidos pelos
julgadores na terceira etapa de nossa pesquisa se inclinam para essa
direção. Eles também procuravam, talvez, oferecer aos professores,
autores dos relatos de pesquisa examinados, a visão de quem produz
conhecimentos, por meio de pesquisa na universidade e gostaria de
ver essa produção também efetuada pelos que estão mais próximos
dos problemas das escolas e dos seus alunos. Uma airmação de
Zeichner (2009) sobre a pesquisa provoca instigante relexão sobre
essa tensão, verdadeiro desaio para os pesquisadores da área de
formação de professores: “Um saber disciplinado, que satisfaz a
padrões academicamente rigorosos, ainda que lexíveis, é necessário,
se a pesquisa vai ser coniável e útil para outros pesquisadores,
proissionais e gestores”(p.6).
A interlocução com as sugestões e recomendações da agenda
de pesquisa proposta pelo artigo de Zeichner (2009) foi estímulo para
examinar o conjunto de constatações de um programa de pesquisas
(Lüdke, coord. 2000, 2003, 2006, 2009) voltadas para a formação
de professores, à luz do tema do nosso simpósio. Foram várias as
convergências e tensões registradas, reclamando atenção de nossa
própria agenda de pesquisas. Dentre elas destaca-se o desaio de
considerar devidamente a dimensão da pesquisa na formação de
professores, desde (e sobretudo) os cursos de graduação, onde são
lançadas as sementes do que poderá vir a lorescer em cursos de pósgraduação e a frutiicar no trabalho desses professores, em função
dos problemas que terão de enfrentar. O componente pesquisa,271
entendido dentro dos limites da seqüência sugerida por Beillerot
(2001) já indicada, é aliado valioso para auxiliá-los na labuta diária,
no desempenho de seu papel fundamental para a nossa educação
básica, de modo especial a que compete à rede pública.
REFERÊNCIAS
ANDERSON, G. L: HERR, K. The new paradigm wars: Is there room
for rigorous practitioner knowledge in schools and universities?
Educational Researcher, v. 28, n. 5, 40, 1999. (p.12-21).
BEILLEROT, J. La recherche: essai d’analyse. Recherche et formation,
n. 9, abr. 1991. (pp. 17-31). Traduzido no livro de ANDRÉ, M. (org.),
O papel da pesquisa na formação e na prática dos professores.
Campinas: Papirus, 2001
COCHRAN-SMITH, M; LYTLE, S. L The teacher research movement:
a decade later. Educational Researcher, v.28, n.7, 1999. (p.15-25).
LÜDKE, M. (coord.) O professor e a pesquisa. Campinas: Papirus,
2001/ 2009 6ª ed.
LÜDKE, M. A Complexa Relação Entre o Professor e a Pesquisa. In
André, Marli [Org.]. O Papel da Pesquisa na Formação e na Prática
dos Professores. Campinas: Papirus, 2001.
LÜDKE, M. (coord.) A pesquisa e o professora da escola básica.
Relatório de pesquisa, Departamento de Educação – PUC-Rio, 2000.
Apoio CNPq.
LÜDKE, M. (coord.) A pesquisa e o professor da escola básica na visão
de professores da universidade. Relatório de pesquisa, Departamento
de Educação – PUC-Rio, 2003. Apoio CNPq.272
LÜDKE, M. (coord.) O que conta como pesquisa? Relatório de
pesquisa, Departamento de Educação – PUC-Rio, 2006. Apoio CNPq.
LÜDKE, M. (coord.) Aproximando Universidade e Educação Básica
pela Pesquisa no Mestrado. Relatório de pesquisa, Departamento de
Educação – PUC-Rio, 2009. Apoio CNPq e FAPERJ.
SAVIANI, D. . Educação: do senso comum à consciência ilosóica.
12. ed. Campinas: Autores Associados, 1996.
ZEICHNER, K. e NOFKE, S. Practitioner research. In: RICHARDSON,
V. (org.). Handbook of Research on Teaching. 4ed. Washington
D.C.: AERA, 2001.
ZEICHNER, K. M. A pesquisa-ação e a formação docente voltada
para a justiça social: Um estudo de caso nos Estados da Unidos. In:.
PEREIRA e ZEICHNER (org.) A pesquisa na formação e no trabalho
docente. Belo Horizonte: Autêntica, 2002 (pp. 67-93).
ZEICHNER, K. M. Uma agenda de pesquisa para a formação
docente. Formação Docente - Revista Brasileira de pesquisa sobre
Formação Docente. Vol. 1 n.1 ago./dez. 2009 http://formacaodocente.
autenticaeditora.com.br/artigo/exibir/1/8/1 Acesso em: 17/02/2010.

A INTEGRAÇÃO ENTRE DIDÁTICA E
EPISTEMOLOGIA DAS DISCIPLINAS:
UMA VIA PARA A RENOVAÇÃO DOS
CONTEÚDOS DA DIDÁTICA

José Carlos Libâneo
Pontifícia Universidade Católica de Goiás.

INTRODUÇÃO À QUESTÃO
A discussão que envolve o tema está ligada ao desenvolvimento
teórico da didática e suas implicações na sistematização do “campo
do didático”. Não é nenhuma novidade admitir que em boa parte dos
cursos de licenciatura no Brasil, a despeito da intensa produção do
movimento crítico da didática desde o início dos anos 1980, mantémse a concepção de didática prescritiva, instrumental
1
. Destaca-se
nesta visão tradicional de didática uma concepção epistemológica de
aplicar uma teoria prévia à prática como, também, a separação entre
conteúdos/objetivos e métodos/meios, tratando essas categorias
como coisas distintas, não considerando a articulação entre métodos
de ensino e métodos da ciência ensinada.
A didática crítica, surgida no Brasil explicitamente no início dos
anos 1980, levou os professores a vincularem o ensino às realidades
sociais, seja entendendo os conteúdos como cultura crítica seja
relacionando-os com saberes do cotidiano. É possível questionar, por
um lado, se essa didática conseguiu, em suas várias correntes teóricas,
articular pedagogicamente o social, o político, o cultural e o escolar;
por outro, em que grau a metodologia de ensino nessas orientações
teóricas de cunho crítico têm se preocupado com o vínculo entre a
didática e a epistemologia dos saberes ensinados. Pesquisadores
ligados à teoria curricular crítica ou a pedagogias do cotidiano
2
,
1 O quadro real do ensino da didática e das metodologias especíicas das disciplinas foi
constatado com bastante realismo em Libâneo (2009).
2 Adeptos desta concepção se articulam teoricamente em torno da teoria curricular
crítica, sustentada por distintos aportes teóricos como o pós-estruturalismo, a teoria critico-82
desde os anos 1990, têm valorizado experiências de mudanças no
modo de compreender a relação entre teoria e prática em didática
que constroem suas propostas pedagógicas no próprio contexto do
cotidiano escolar. Esse entendimento põe claramente em questão o
caráter prescritivo e instrumental da didática e, assim, a ideia de que
teóricos e professores possam constituir-se como direcionadores de
caminhos para a prática docente. Escreve Lopes sobre isso:
(...) as pesquisas educacionais não são feitas para dizer
à escola e aos professores o que fazer e como fazer (...)
É possível acreditar que um entendimento mais profundo
da educação permite circular discursos e estabelecer
diálogos, em múltiplas direções, com currículo, mas
destituído da pretensão de construir um lugar privilegiado
do saber sobre a prática” (Ib., p.21). (Lopes, 2007, p.20).
Ressalte-se que não tem faltado polarizações entre educadores
de posições sociocríticas sobre o modo de funcionamento das escolas
num mundo em mudança, seja opondo a ênfase entre objetivos
sociopolíticos e culturais à tendência a propor orientações práticas
no ensino, seja opondo duas visões de escola: uma, de formação
geral (cultural e cientíica), outra de provimento de vivência social/
cultural (Cf. Libâneo, 2006). No mesmo sentido de polarizações que
se excluem mutuamente, pode-se mencionar a ênfase nas práticas
socioculturais na escola em contraponto com a ênfase nas práticas
pedagógicas (e, por conseqüência, na epistemologia dos saberes
constituídos), ou vice-versa.
Não se fará aqui a discussão dessas posições, são
mencionadas apenas para identiicar algumas pistas do percurso
assumido pelo ensino da didática no Brasil até o presente, incluindo
a questão epistemológica. Assim, pergunta-se: de que forma as
correntes atuais da didática têm tratado a questão da integração entre
emancipatória, a teoria do currículo em rede, entre outras. Não é objetivo deste texto discutir as
denominações “didática” e “currículo” e seu objeto de estudo. Mantenho a posição já registrada
em outra publicação (Libâneo, 1998), de que ambas as disciplinas ocupam-se das formas de
realização do ensino.83
didática e epistemologia? Em que grau questões epistemológicas e
da metodologia das ciências têm penetrado nas discussões sobre o
conteúdo da didática e a formação de professores? Como se articulam
nessas correntes os planos epistemológico, psicológico e didático?
A PERTINÊNCIA DA ABORDAGEM EPISTEMOLÓGICA NAS
QUESTÕES DIDÁTICAS
Pode-se identiicar na história da didática ao menos três fases.
A primeira lembra Comênio e Herbart em que se tem uma teoria
geral do ensino (didática “geral”) aplicada a todas as matérias, não
importando as particularidades epistemológicas dessas matérias.
Na segunda, tem lugar a consolidação das metodologias especíicas
das ciências ensinadas, fato que, do ponto de vista epistemológico,
representou um avanço na investigação didática, dando relevância à
dimensão epistemológica dos saberes, embora às vezes isso tenha se
dado em prejuízo do fundamento pedagógico de todo ensino, inclusive
por rechaçar a didática geral. A terceira fase, desejada por uns e
rejeitada por outros, corresponde à busca da unidade teórico-cientíica
entre a didática e as didáticas especíicas, “em que cada metodologia
especíica desenvolve seu peril mas, em razão de muitas questões
comuns, conhecimentos gerais, tarefas, etc., está relacionada com as
demais metodologias e à didática geral” (Klingberg, p. 33). Busca-se,
pois, uma integração entre a didática e as metodologias especíicas
em que se ressalta o que é comum, básico, para os objetivos de
formação da personalidade dos alunos e para o trabalho docente e a
questão da epistemologia dos saberes especíicos (Libâneo, 2008).
Para se sustentar a idéia de que toda didática supõe uma
epistemologia, é preciso admitir que o núcleo do problema didático
é o conhecimento, no qual estão implicadas questões lógicas e
psicológicas. Isso signiica reconhecer os vínculos da didática com uma
ilosoia, especialmente, com uma posição epistemológica, a despeito
do acentuado papel na constituição dessa disciplina da psicologia da
educação, da sociologia da educação, da teoria social do currículo e,84
recentemente, da linguística. Com efeito, o conhecimento é o objeto
do ensino, e para isso se estrutura a atividade de aprendizagem. Na
escola, importa que o aluno se aproprie de conhecimentos, sendo que
essa apropriação implica um modo de conhecer e os meios intelectuais
e afetivos de conhecer. Neste ponto, tem razão Charlot quando escreve:
“só há saber em uma certa relação com o saber, só há aprender em
uma certa relação com o aprender” (2001, p.17). Eis, então, que para
se criar as melhores condições de um bom ensino é preciso saber
como se dá o processo de apropriação de conhecimentos, e esta é
uma questão eminentemente epistemológica.
Dessa forma, para compreender o problema pedagógico das
mediações entre o sujeito e o saber, a pedagogia não é suiciente, é
preciso saber o percurso de construção pela humanidade dos saberes
especíicos,eassociá-losàaprendizagem.Essaquestão,precisamente,
é uma questão epistemológica, pois que “epistemologia”, em seu
sentido mais convencional, é o estudo crítico e histórico dos princípios,
hipóteses e resultados das diversas ciências, sendo que, no ensino
escolar, talvez fosse apropriado falar em “epistemologia aplicada”, ou
seja, o processo de construção de conceitos, a determinação de seu
nível de formulação, os obstáculos epistemológicos, etc.
A questão problemática a tratar aqui, portanto, liga-se a
várias perguntas. Como aprendemos coisas, ou melhor, como nos
apropriamos dos saberes inseridos nas disciplinas especíicas?
Por outro lado, é necessário aprender os conteúdos e os percursos
investigativos das disciplinas escolares? Se a resposta a esta última
pergunta é “sim”, o problema do aprender, isto é, a relação do aluno
com o objeto de conhecimento, está associado a uma postura
epistemológica ou psicológica ou a ambas? Passemos a considerar
algumas concepções atuais que formulam entendimentos sobre as
relações entre didática e epistemologia.85
CINCO POSIÇÕES SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE DIDÁTICA E
EPISTEMOLOGIA
OS DIDATAS FRANCESES
A posição mais estrutura no campo da didática a respeito do
vínculo entre didática e epistemologia vem de pesquisadores franceses
que se auto-intitulam “didatas das disciplinas”3, entre outros, M.
Develay, J.L. Martinand, J.P. Astoli, G. Vergnaud. Eles consideram
a didática como o estudo dos processos de ensino e aprendizagem
em sua relação imediata com os conteúdos dos saberes a ensinar,a
organização das situações didáticas e a escolha e os meios de
ensino. Vários deles têm preferido designá-la no plural, didática das
disciplinas, sugerindo uma recusa de uma didática geral4. Para eles,
visando compreender, explicar, justiicar as situações de ensino de
conteúdos especíicos, a didática centra-se em dois temas básicos: a
natureza do saber a ensinar e a compreensão da relação com o saber
dos alunos e do professor. Altet explicita a preocupação dos didatas:
Os trabalhos dos didatas são produto de saberes sobre
o processo ensinar-aprender ao nível dos aprendizes,
de sua maneira de aprender. Eles têm construído
especiicamente ferramentas conceituais sobre a relação
aprendiz-saber na aprendizagem de saberes escolares de
algumas disciplinas. Analisando a construção de saberes
escolares no plano epistemológico, e sua aquisição pelo
3 Conforme Altet (1997), os autores que se situam nesta orientação teórica são defensores
das pedagogias da aprendizagem compartilhando, de algum modo, da tradição do movimento
da escola nova francesa, que tem nomes signiicativos como G. Mialaret, L. Legrand, Philipe
Meirieu, entre outros.
4 Entre os pesquisadores no campo da educação, na França, é dominante o entendimento de
que didática e pedagogia são áreas distintas de conhecimento e de prática, mas que atuam em
conjunto numa mesma realidade, ou seja, o ensino na sala de aula. Pedagogia é “tudo o que diz
respeito à arte de conduzir e de realizar a aula (...) o exercício desta arte e a relexão sobre seus
recursos e seus ins. (...) As didáticas dizem diz respeito à arte ou ao modo de ensinar as noções
próprias a cada disciplina, incluindo diiculdades próprias a um domínio numa disciplina” (Cornu,
Vergnioux, p. 10). Trata-se de posição diferente daquela defendida por alguns pesquisadores
brasileiros segundo a qual a pedagogia tem mais amplitude do que a didática, englobando-a.
Ver a esse respeito: LIBÂNEO, 2009; FRANCO, LIBÂNEO e PIMENTA, 2007; FRANCO, 2008.86
aprendiz, no plano psicológico, os didatas põem em
evidência componentes chave da aprendizagem (Altet,
1997, p.35).
Reconhece-se aí a inter-relação entre didática e epistemologia,
tal como expressa, também, Develay: “A didática pensa a lógica das
aprendizagens a partir da lógica do saber (e sua epistemologia) e a
pedagogia pensa a lógica das aprendizagens a partir da lógica da
sala de aula” (Cf. Le Roux, 1997, p. 10). Com efeito, se o núcleo da
didática é o conhecimento cientíico dos processos de transmissão
e apropriação de conhecimentos de um conteúdo disciplinar, é
impossível desvinculá-la da epistemologia, ou seja, da natureza do
conhecimento, sua gênese e sua estrutura. Ao mesmo tempo, se o
ensino se dirige à aprendizagem dos alunos, o saber cientíico precisa
converter-se em saber a ser ensinado, pelo que as ciências precisam
passar uma por transposição didática. Sobre isso, escreveu Vergnaud:
Contrariamente a certas idéias geralmente aceitas, a
didática não visa apenas encontrar melhores métodos
ou novas técnicas de ensinar um conteúdo especíico
dado de antemão; ela pode considerar profundamente
os conteúdos do ensino: e isto por razões diversas
relacionadas com as inalidades do ensino, ao
desenvolvimento da criança e do adolescente, à
epistemologia do domínio considerado, ou à evolução
das qualiicações exigidas pela nossa época. (...) De
fato, a didática tem por objetivo estudar o processo
de transmissão e apropriação de conhecimentos, nos
aspectos práticos e teóricos dos conhecimentos que são
especíicos do conteúdo (Cf. Roumegous, 2002, p.33).
Os didatas franceses trabalham com vários conceitos atrelados
ao campo da didática: contrato didático, representações/concepções,
formulação de conceitos, objetivo-obstáculo, conlito sociocognitivo,87
situação-problema, transposição didática (Cf. Le Roux, p.10; Cornu e
Vergnioux, p. 45). Todos eles vinculam-se ao movimento da didática
das disciplinas, ao qual se ligam pesquisadores dos vários saberes
cientíicos ensinados na escola. Para os objetivos deste texto é
suiciente tratar do conceito de “objetivo-obstáculo”, que se aproxima
bastante do modo de lidar com a didática no plano do epistemológico.
A noção de “objetivo-obstáculo”, formulada por Martinand
e assumida por Develay e Altoli, é o ponto de partida para criar
situações de aprendizagem, com base na matéria ensinada e nas
representações dos alunos e seus modos de pensar. Astoli pergunta:
O que, em uma seqüência de ensino, constitui um
obstáculo superável, bastante exigente para que a tarefa
seja interessante, mas suicientemente calibrado para
que essa classe seja capaz de alcançar uma solução?
Como introduzir este tipo de “espaço” onde a atividade
intelectual pode ser máxima? (apud Altet, 1997, p.98).
Conforme Astoli, a noção de obstáculo está associada,
inicialmente, a algo negativo, pois são obstáculos aqueles enfrentados
pelos alunos em diferentes idades, para se apropriar das noções
disciplinares, sejam eles de caráter mais psicológico ou mais
epistemológico (existentes no próprio processo de elaboração de um
conceito). Esses obstáculos, em princípio, impediriam de se chegar
aos objetivos de aprendizagem. Mas precisamente, parte-se deles
para reorientá-los para um “saber novo”, no sentido de que o professor
aposta nas possibilidades de superação (ou não) do obstáculo, não no
seu aspecto negativo.
E como obstáculos podem se transformar em objetivos
de ensino? Sem cair numa absolutização dos objetivos, como
freqüentemente se fez na pedagogia por objetivos inspirada no
behaviorismo, Altoli propõe “utilizar a caracterização de obstáculos
como um modo de seleção de objetivos”, que não sejam nem muito
fáceis de atingir nem fora do alcance dos estudantes (Id., p.101).88
Segundo ele, os objetivos visam a superação dos obstáculos, apontam
níveis de progresso a serem conquistados, pois não são adquiridos
espontaneamente. A superação dos obstáculos pelos objetivos são os
verdadeiros objetivos conceituais.
Develay propõe um ensino com situações-problema em
que podem surgir as representações dos alunos e a identiicação
de obstáculos de aprendizagem. Para isso, em primeiro lugar, é
necessário ter clareza sobre os conteúdos a ensinar e assegurar a
vigilância epistemológica a seu respeito. É preciso identiicar os
conhecimentos declarativos e os procedimentais, sendo que nestes
devem ser precisados os níveis de conceitualização, a im de clariicar
os níveis de exigência esperados dos alunos. Por exemplo, para
abordar a respiração como uma troca gasosa, é necessário saber
como o ar é constituído, o que é um gás, o que permite as trocas
gasosas, etc.
A identiicação do campo nocional interno à disciplina e do
campo nocional externo à disciplina deve permitir recapitular o conjunto
dos conhecimentos declarativos necessário para a aprendizagem.
O mesmo se deve fazer em relação aos métodos e técnicas. O
conhecimento da história do conhecimento declarativo a ensinar,
as teorias gerais pelas quais tem sido abordado, as retiicações
sucessivas ao longo do tempo, os obstáculos epistemológicos que
tem sido enfrentados, podem constituir referências úteis para melhor
compreender as representações dos alunos, suas diiculdades
conceituais e, se for o caso, saber situações que permitiram surgir
obstáculos (Develay, apud Altet, 1997, p.106).
Os autores mencionados vinculam-se, assim, a uma
concepção em didática que estabelece relações indissociáveis entre
os planos epistemológico, psicológico e didático. Para eles, o método
didático supõe o método cientíico próprio das disciplinas ensinadas
mas, conforme Cornu e Vergnioux, no sentido de que “o primeiro não
deve ser acrescentado nem substituído pelo segundo, mas buscar os
objetos elementares e as formas de aplicação do segundo para tornarse acessível: ele é a imaginação do segundo” (1992, p. 124).89
A PEDAGOGIA DIFERENCIADA
Philippe Meirieu, bem próximo dos autores apresentados
anteriormente, considera que é o aluno que aprende por si mesmo
e que todos os alunos são diferentes. Daí sua preocupação com a
adequação do ensino à diversidade dos alunos, indicando formas
de diferenciação na gestão das aprendizagens como grupos de
necessidades, situações-problema, ajuda no trabalho pessoal,
ateliês metodológicos, pedagogia do contrato. Em seu excelente livro
Aprender sim..., mas como? (1998), após criticar uma visão tradicional
do ensino em que primeiro identiica-se o conteúdo, em seguida o
compreende e, no inal, se fazem os exercícios, ele escreve:
Essa concepção ignora a realidade dos processos
mentais. Ignora, sobretudo, que uma simples identiicação
perceptiva não existe, que uma informação só é
identiicada se já estiver, de uma certa forma, assimilada
em um projeto de utilização, integrada na dinâmica
do sujeito e que é este processo de interação entre a
identiicação e a utilização que é gerador de signiicação,
isto é, de compreensão (Meirieu, 1998, p. 54).
Requer-se, para isso, que se parta das representações dos
alunos que são, ao mesmo tempo, um progresso e um obstáculo, pois
cada sucesso obtido um dia devera ser ultrapassado, retrabalhado,
reorganizado. Meirieu propõe a formulação de objetivos, não
operacionais e imediatistas, mas voltados para operações mentais
a realizar (dedução, indução, dialética, criatividade) e com previsão
de situações adequadas para serem aplicadas. Sobre as operações
mentais escreve o autor:
O mais simples é identiicar a operação mental dominante
e organizar o dispositivo didático em função dela (...)
Mais do que a elaboração de instrumentos, o que importa
aqui é o procedimento didático (...) aquele que consiste90
não simplesmente em proclamar o quem queremos que
o aluno saiba, mas sim em questionar a respeito do que
deve “se passar em sua cabeça” para que chegue aonde
queremos e criar, a partir daí, o dispositivo que dá corpo
e vida à operação mental identiicada (Ib., p.117).
Importa, assim, que o professor traduza os “conteúdos de
aprendizagem” em “procedimentos de aprendizagem”, isto é, em
uma seqüência de operações mentais. Com efeito, escreve Meirieu,
nenhum conteúdo existe fora do ato que permite pensá-lo, da mesma
forma que nenhuma operação mental funciona no vazio, isolada de
um conteúdo. Com base nisso, o caminho didático se inicia com o
inventariamento de noções essenciais (ao nível dos alunos). Essas
noções-núcleo devem ser expressas em operações mentais e materiais
a serem mobilizadas. Em seguida, trata-se de transformar as noçõesnúcleo em situações-problema, nas quais se estabelecem resultados
a serem esperados. Nessa atividade, percorre-se as etapas da ação
material, seguida da etapa da ação verbal, chegando a uma etapa
mental (Ib., p. 119). Ver-se-á, adiante, que as proposições de Meirieu
se assemelham às orientações didáticas de Davidov.
A NOÇÃO DE RELAÇÃO COM O SABER
As posições de Charlot (2001) ampliam as perspectivas
anteriores ao trabalhar as relações entre didática e epistemologia por
meio da noção da relação com o saber, valendo-se de perspectivas
sociológicas, antropológicas, epistemológicas e didáticas. Para ele, a
diferença de comportamento de estudantes em relação às matérias de
ensino liga-se a uma certa relação entre o estudante e a matéria.
Na perspectiva da didática, a noção de relação com o saber
é encontrada por Charlot na noção de obstáculo epistemológico de
Bachelard, autor já presente nos didatas mencionados. Os obstáculos
epistemológicos, geralmente impregnados do conhecimento de
senso comum, incidem no eu epistêmico do aluno, que o ajudam91
ou o impedem de compreender um conceito ou uma teoria. Em se
tratando do conhecimento escolar, o eu epistêmico (ou o peril
epistemológico, conforme Bachelard) está em relação direta com as
normas epistemológicas especíicas do saber cientíico ensinado.
Com isso, aprender é apropriar-se de um saber, de uma habilidade,
de uma atitude, mas o que é internalizado é algo exterior ao aprendiz,
ou seja, há um conhecimento cientíico que existe independentemente
do sujeito, que tem suas especiicidades. Em poucas palavras, temse um sujeito que aprende em confronto com o patrimônio cientíico e
cultural da humanidade (Charlot, 2001, p.23).
Charlot parece aproximar aqui da teoria histórico-cultural da
atividade ao airmar que “aprender é uma relação entre duas atividades:
a atividade humana que produziu aquilo que se deve aprender e a
atividade na qual o sujeito que aprende se engaja - sendo a mediação
entre ambas assegurada pela atividade daquele que ensina ou forma”
(Ib. p.28). Isso signiica que a apropriação de saberes supõe considerar
a atividade humana anterior de produção sociocultural desses saberes.
Não se trata, porém, de repetir essa atividade, mas de “adotar, durante
a atividade de aprendizagem, a postura (relação com o mundo, com o
outro e consigo) que corresponde a essa atividade humana” e mais: a
partir dessa postura, dominar as operações especíicas de tal atividade
- aquelas que constituem sua normatividade” (p. 28).
Charlot, em proximidade à posição dos didatas franceses,
mas também com a teoria da atividade de Leontiev, desenvolve a
noção da relação com o saber, de onde se deduz que, ao trabalhar o
conhecimento cientíico, deve-se captar antes e durante a atividade de
ensino, o peril epistemológico do aluno. E também que, para o aluno
apropriar-se de um saber, é preciso que ele internalize procedimentos
lógicos e investigativos que permitiram aos pesquisadores produzir
esse saber, ou seja, que adote postura que corresponde à atividade
humana, isto é, às ações ocorridas na produção do saber. Com isso,
deine sua posição em relação aos vínculos necessários entre os
planos social, didático e epistemológico, sem desconsiderar o plano
psicológico.92
O ENSINO POR MUDANÇA CONCEITUAL
A epistemologia de Bachelard tem motivado pesquisadores
interessados na investigação didática, especialmente no ensino das
ciências, a buscar nela fundamentos para compreender os caminhos
da aprendizagem, por exemplo, o papel do quadro conceitual prévio
do sujeito na internalização do conhecimento cientíico, a relação
entre o conhecimento empírico e o movimento do pensamento, as
relações entre didática e epistemologia. A exposição das contribuições
de Bachelard à pedagogia apresentadas a seguir foi baseada em
estudos de duas autoras, uma portuguesa, Maria Eduarda Santos,
outra brasileira, Alice Casimiro Lopes.
Para Santos (1991, 2005), Bachelard demonstrou a
possibilidade de uma pedagogia do conhecimento cientíico, e mesmo
de uma pedagogia da cultura geral, assentada na epistemologia,
visando possibilitar a cada criança, a cada homem, superar seus
conhecimentos imediatos, suas representações primeiras, para aceder
a conhecimentos mais repensados, mais racionais (1991, p.130). Para
isso, no entanto, é preciso partir desses conhecimentos imediatos,
captando as concepções alternativas, isto é, aquelas construções
subjetivas, internas, presentes nos alunos quando estão em situação
de aprendizagem do conhecimento cientíico. Segundo Santos:
As concepções alternativas, como todo conhecimento
primeiro, ainda que sejam idéias que se precipitam do
real, ainda que espontâneas e erradas, são condição
necessária ao desenvolvimento cognitivo e à aquisição
do saber racional. A verdade resulta de uma rejeição
sucessiva de erros como caminho na construção do
conhecimento.
Nessa idéia encontra-se a noção de obstáculos epistemológicos,
que são entraves que aparecem no ato de conhecer, decorrentes
principalmente do conhecimento comum. Conforme Santos:93
Dizem respeito a aspectos intuitivos, imediatos e
sensíveis, a experiências iniciais, a relações imaginárias,
a conhecimentos gerais, unitários e pragmáticos,
a perspectivas ilosóicas empiristas, realistas,
substancialistas e animistas, a interesses, hábitos e
opiniões de base afetiva, etc. (...) Embora entravem o
progresso do saber objetivo, constituem um desaio a
esse mesmo progresso (2005, p. 121).
Pode-se dizer, acompanhando Santos, que para Bachelard,
a atividade de aprendizagem na escola é, sobretudo, atividade
intelectual, em que se privilegiam ações mentais que se desenvolvem
ao nível do pensamento. Por isso, ele dedica atenção aos conteúdos
e sua estruturação, de modo que a forma e o conhecimento são
indissociáveis. Escreve sobre isso Santos:
(Bachelard) considera que cada domínio conceitual
tem a sua racionalidade especíica, não podendo a
racionalidade de um domínio transitar diretamente para
a racionalidade de outro domínio. É nesse contexto que
se pode inserir o conceito de “peril epistemológico” na
pedagogia, instrumento pedagógico precioso para os
professores interessados na evolução da racionalidade
do aluno para cada conceito. (...) Note-se que, admitindo
que a ontogênese tende a recapitular a ilogênese (como
Bachelard parece admitir), uma relexão sobre os peris
epistemológicos (da ciência) relativos a conceitos básicos
a serem aprendidos, parece-nos ter um papel heurístico
crucial na descoberta dos peris epistemológicos dos
alunos (Ib. p. 41).
Lopes (2007) também apresenta um primoroso estudo sobre a
aplicação da epistemologia de Bachelard ao ensino, dando destaque
à noção de obstáculos epistemológicos, decorrentes do conhecimento
imediato, de senso comum, os quais precisam ser superados para se94
aceder ao conhecimento cientíico. Escreve Lopes:
Na medida em que o real cientíico se diferencia do
real dado, o conhecimento comum, fundamentado no
real dado, no empirismo das primeiras impressões,
é contraditório com o conhecimento cientíico. (...)
É nesse sentido que o conhecimento comum acaba
por se constituir em um obstáculo epistemológico ao
conhecimento cientíico.(Lopes, 2007, p.44).
(Na ciência), é preciso ultrapassar as aparências, pois
o aparente é sempre fonte de enganos, de erros, e o
conhecimento cientíico se estrutura por intermédio da
superação desses erros, em um constante processo
de ruptura com o que se pensava conhecido. (...) é
essencialmente a partir do rompimento com esse
conhecimento comum que se constitui o conhecimento
cientíico (Ib., p.41).
Vê-se por esse entendimento que a apreensão
do real é um caminho feito pelo pensamento, “a
realidade do mundo está sempre para ser retomada
sob a responsabilidade da razão”, pois a análise dos
obstáculos epistemológicos necessita do pensamento
cientíico abstrato; permanecer na experiência imediata
é um obstáculo ao desenvolvimento da abstração. Lopes
cita frase de Bachelard: “o pensamento abstrato não é
sinônimo de má consciência cientíica (...) a abstração
desembaraça o espírito, ela o alivia e o dinamiza” (Ib.,
p.44).
Na visão de Bachelard, aprender é modiicar nosso modo
habitual de pensar, romper com ele, e isso depende do aprendizado
cientíico. O professor precisa saber quais são esses conhecimentos de95
senso comum, para identiicar e superar os obstáculos epistemológicos
que eles provocam. A aprendizagem, portanto, deve se dar contra um
conhecimento anterior, a partir da desconstrução desse conhecimento.
Sabendo quais são os conceitos prévios dos alunos sobre um assunto,
o professor ajuda a questioná-los, tendo por base o conhecimento
cientíico. Mas não se trata de reproduzir o conhecimento cientíico
para o aluno, isto é, não é suiciente que o aluno receba do professor
os resultados da ciência que está sendo ensinada. Nas palavras do
próprio Bachelard:
Sem dúvida, seria mais simples não ensinar senão o
resultado. Mas o ensino dos resultados da ciência não
é jamais um ensino cientíico. Se não se explicita a linha
de produção espiritual que conduziu ao resultado, podese estar certo de que o aluno combinará o resultado
com suas imagens mais familiares. É necessário que
ele ‘compreenda’. Não se pode reter sem compreender.
Pois, se não lhe foram dadas razões, ele acrescenta
ao resultado razões pessoais (Bachelard, apud Lopes,
2007, p. 63).
Isso signiica, no entendimento de Lopes, que a reconstrução
do conceito implica recuperar a história do progresso da ciência
ensinada no processo de resolução de problemas cientíicos. Mas não
se trata meramente de um relato histórico, mas da história da “tessitura
epistemológica das teorias cientíicas”, ou seja, “das lutas entre idéias
e fatos que constituíram o progresso do conhecimento” (Ib., pp. 64,
65). Pode-se entender daí que aprender ciência é apreender sua
construção teórica, ou seja, o modo de construção do objeto da ciência
por meio do seu desenvolvimento histórico.
Em síntese, a superação dos obstáculos epistemológicos
requer, precisamente, a vigilância epistemológica, isto é, assegurar o
uso adequado das regras do próprio conhecimento cientíico, ou seja,
a epistemologia da ciência. Transpondo para o ensino, onde se dá96
também uma relação com os objetos de conhecimento, a vigilância
epistemológica supõe a consideração dos obstáculos epistemológicos
na aprendizagem, que podem estar associados à metodologia
de ensino e aos próprios processos cognitivos dos alunos. Dessa
forma, conforme conclui Lopes, a falta de análise epistemológica do
que se ensina reforça os obstáculos epistemológicos e, com isso, o
conhecimento cientíico ica comprometido. Mas também implica uma
análise dos obstáculos epistemológicos presentes no conhecimento
comum, captando as concepções dos alunos em relação a esse
conhecimento comum, cotidiano. (Ib., p. 53).
A TEORIA DE ENSINO DEDAVIDOV
Vasili Davídov, na tradição da teoria histórico-cultural, propôs
uma teoria do ensino, denominada ensino desenvolvimental, que
é o ensino que promove e amplia o desenvolvimento mental e o
desenvolvimento da personalidade. Uma síntese dessa teoria será
apresentada a seguir.
A teoria do ensino desenvolvimental
Com base em investigação, Davidov constata o caráter empírico
da didática tradicional, pelo qual se ensina ao aluno a selecionar, na
realidade, certos traços comuns às coisas e fenômenos e, a partir de
suas semelhanças, az organizar os conceitos gerais. Esse ensino
resulta somente na formação de um pensamento de tipo empírico que
atua apenas com dados sensoriais captados diretamente da realidade
sensível. Para superar essa didática, propõe um ensino que resulte no
pensamento teórico o qual, com base em abstrações e generalizações,
busca as relações gerais do fenômeno, as contradições, das relações
e conexões entre os fenômenos, para captar a sua essência, de modo
a ultrapassar os limites da experiência sensorial imediata. Trata-se de
um tipo de pensamento assentado no método da relexão dialética.
A necessidade de um ensino que avança para além do
pensamento apenas empírico, assim como a importância das ações97
mentais de abstração e generalização no desenvolvimento do
pensamento conceitual, já haviam sido amplamente identiicadas por
Vigotski em A construção do pensamento e da linguagem, quando
escrevia:
A tomada de consciência se baseia na generalização
dos próprios processos psíquicos, que redunda em sua
apreensão. Nesse processo, manifesta-se em primeiro
lugar o papel decisivo do ensino. Os conceitos cientíicos
(...) mediados por outros conceitos, com seu sistema
hierárquico de inter-relações, são o campo em que a
tomada de consciência dos conceitos, ou melhor, sua
generalização e sua apreensão, parecem surgir antes
de qualquer coisa (2000, p.290). (...) A abstração e a
generalização da minha ideia são diferentes por princípio
da abstração e da generalização dos objetos. (...) A
generalização é um ato do pensamento propriamente
conceitual (semântico) que relete a realidade de modo
bastante diferente de como esta é reletida nas sensações
e nas percepções imediatas (Ib., p.372).
Coube a Davídov desenvolver os elementos de uma
teoria do ensino que viesse a distinguir os conceitos empíricos (as
“representações gerais”) dos conceitos teóricos, propriamente
cientíicos, mediante os instrumentos da lógica dialética. Para ele,
o objetivo geral do ensino é promover e ampliar as capacidades
intelectuais dos alunos pela formação do pensamento teórico-cientíico
que é, em suma, a capacidade de pensar e atuar com conceitos.
A abstração e a generalização de tipo substancial
encontram sua expressão no conceito teórico que serve
de procedimento para deduzir os fenômenos particulares
de sua base universal. Graças a isso, o conteúdo do
conceitoteórico são os processos de desenvolvimento dos
sistemas totais. (...) O conceito constitui o procedimento98
e o meio de reprodução mental de qualquer objeto como
sistema total. Ter um conceito sobre tal objeto signiica
dominar o procedimento geral de construção mental
desse objeto (Davídov, 1988a, p. 86).
Para Davídov, aprender teoricamente consiste em captar o
princípio geral, as relações internas de um conteúdo, o desenvolvimento
histórico do conteúdo. É aprender a fazer abstrações para formar uma
célula dos conceitos-chave da matéria, para fazer generalizações
conceituais e aplicá-las a problemas especíicos. Em outras palavras,
o conhecimento teórico-cientíico ou o pensamento teórico-cientíico
refere-se à capacidade de desenvolver uma relação principal geral
que caracteriza um conteúdo e aplicar essa relação para analisar
outros problemas especíicos desse conteúdo. Esse processo produz
um número de abstrações cuja inalidade é integrá-las ou sintetizá-las
como conceitos.
O pensamento teórico vai se constituindo pelos princípios
lógicos, pelos conceitos, mediante os quais reorganiza os dados da
percepção sensível. O conceito – enquanto modo geral de acesso ao
objeto – vai se formando nos processos investigativos e procedimentos
lógicos de pensamento que permitem a aproximação do objeto para
constituí-lo como objeto de conhecimento
5
. Se colocado nesse
caminho, o aluno adquire um método teórico geral, isto é, o conceito,
cuja internalização possibilita a resolução de problemas concretos e
práticos.
O método teórico geral de cada ciência está expresso nos
princípios lógico-investigativos que lhe dão suporte, os quais, por
sua vez, indicam o caminho didático para a formação dos conceitos
pelos alunos. É nesse sentido que, airma Davidov, para compreender
um conceito é preciso reconstituir o modo como ele surgiu, o modo
5 Na linguagem da dialética materialista os conceitos são um conjunto de procedimentos mentais para deduzir relações particulares de uma relação abstrata. Para mais além do
entendimento convencional de “teórico” como o saber especulativo, Davidov considera conhecimento teórico ao mesmo tempo como produto do desenvolvimento histórico e processo mental.
Conhecimento teórico são, então, as categorias mentais que tornam possível lidar com os objetos de conhecimento da realidade, ou seja, um procedimento lógico da mente, isto é, conceitos
gerais possíveis de serem aplicados a situações particulares.99
geral como o objeto é construído. Isso implica em captar o caminho
já percorrido pelo pensamento cientíico, na investigação da ciênciamatéria de ensino, como forma de interiorização de conceitos e
aquisição de métodos e estratégias cognitivas. Ele escreve:
O pensamento dos alunos no processo da atividade de
aprendizagem se assemelha, de certa forma, ao raciocínio
dos cientistas que expõem os resultados de suas
investigações por meio de abstrações, generalizações e
conceitos teóricos substantivos que exercem um papel
no processo de ascensão do abstrato ao concreto. (...)
Os alunos não criam conceitos, imagens, valores e
normas da moralidade social; elas se apropriam deles
no processo da atividade da aprendizagem. Mas, ao
realizar essa atividade, eles executam ações mentais
semelhantes às ações pelas quais estes produtos da
cultura espiritual foram historicamente construídos
(Davidov, 1988b, pp. 20-21).
Desse modo, ao planejar o ensino de uma matéria o professore
deve iniciar pela análise do conteúdo, formulando conceitos nucleares,
extraindo daí uma estrutura de tarefas de aprendizagem compatíveis
com as ações mentais presentes nos processos investigados que levam
à constituição dos objetos de conhecimento da ciência ensinada. Essas
tarefas referem-se à utilização de materiais cotidianos, experimentos,
modelizações, exercícios de solução de problemas, que permitem
essa aproximação do objeto de estudo.
É particularmente relevante considerar que, para Davídov e
outros teóricos da teoria histórico-cultural, um procedimento eicaz para
a internalização de conceitos é o ensino por solução de problemas,
pois ele ajuda o aluno a internalizar um procedimento geral de aplicar
um conceito geral para situações particulares. Vigotski já escrevia: “o
conceito surge no processo de operação intelectual. (...) A formação
dos conceitos surge sempre no processo de solução de algum100
problema que se coloca para o pensamento do adolescente. Só como
resultado da solução desse problema surge o conceito (2000, p. 237).
Davídov, por sua vez, considera que a aquisição de conceitos teóricos
na escola implica a solução independente de tarefas cognoscitivas por
meio da exposição baseada em problemas.
Em suas análises da experiência social transmitida
pela escola às novas gerações, os didatas soviéticos
destacam, entre outros elementos, a experiência da
atividade criativa, exploratória, na resolução de novos
problemas. (...) Assumimos que o ensino que utiliza a
resolução de tarefas cognoscitivas (que deve ser baseado
em problemas), pode assegurar que a experiência criativa
seja transmitida às crianças (Davídov, 1988b, p.17).
Além disso, para Davidov, a qualidade e o nível de aprendizagem
dependem da orientação dos motivos dos alunos que, por sua vez,
depende da forma e conteúdo das atividades de ensino. Desse modo,
uma boa análise do conteúdo por parte do professor possibilita propor
tarefas de aprendizagem para os alunos com suiciente atrativo para
canalizar os seus motivos para o conteúdo. Tratas-se, então, de
criar situações de sala de aula relacionadas aos motivos dos alunos,
orientados para a aquisição do conteúdo, de modo a repercutir no
desenvolvimento da sua personalidade. Por sua vez, os motivos
estão diretamente ligados aos contextos socioculturais, às relações
socioculturais, signiicações, que afetam signiicativamente a relação
dos alunos com o saber. Dessa forma, expandindo a teoria de ensino
de Davídov, Hedegaard e Chaiklin (2005), propõem a articulação
entre conhecimento teórico-cientíico, tal apresentado anteriormente,
e o conhecimento local, cotidiano e pessoal dos alunos. Investigando
práticas que promovem essa articulação, eles consideram que os
professores precisam saber como avançar de características abstratas
e leis gerais de um conteúdo para a realidade concreta e, ao mesmo
tempo, ajudar os alunos avançarem de seu conhecimento pessoal101
cotidiano para as leis gerais e conceitos abstratos de um conteúdo.
Eles escrevem:
O conhecimento cotidiano pode ser uma condição
prévia para uma criança aprender o conteúdo. (...)
Reciprocamente, o conhecimento do conteúdo pode
ser integrado no conhecimento cotidiano por meio
da atividade de aprendizagem da criança. O tipo de
atividade de aprendizagem que promove essa integração
é guiado pelo conhecimento teórico em que os conceitos
nucleares orientam a exploração e experimentação
da criança. A tarefa educacional na escola deveria ser
ensinar conceitos do conteúdo às crianças relacionandoos com o conhecimento local e pessoal (Hedegaard e
Chaiklin, 2005, p. 59).
A perspectiva teórico que acabamos apresentar, a nosso ver,
permite integrar o epistemológico, o psicológico e o didático na direção
de uma concepção mais integral do ser humano. Entendemos, com
isso, que realiza-se uma relação de complementaridade entre essas
três dimensões
CONCLUSÃO
Há evidentes aproximações entre as posições trazidas aqui em
torno da problemática apontada inicialmente, a despeito de partirem
de diferentes premissas epistemológicas. Ressalta-se em todas elas a
necessária integração entre didática e epistemologia das disciplinas, do
que se conclui que a formação de professores passa necessariamente
peloestudodasbasesepistemológicasdasdisciplinasensinadas, sendo
insuiciente uma didática “geral”. Desse modo, o ensino de conteúdos
especíicos requer métodos e organização do ensino particularizados,
do mesmo que modo que não é possível ensinar conteúdos “em si”,
separados dos seus procedimentos lógicos e investigativos. É sabido102
entre pesquisadores e docentes que, até o presente, esta questão tem
sido praticamente ignorada na elaboração do conteúdo de ensino de
didática nos cursos de formação proissional de professores e, por
conseqüência, no ensino dos conteúdos especíicos, ao menos nos
anos iniciais do ensino fundamental (Cf. Libâneo, 2009).
É imprescindível que os formadores de professores continuem
acreditando no poder da educação e do ensino para a emancipação
humana, para a humanização do sistema social, mesmo num contexto
de democracia meramente formal. Mas, para além de declarações
genéricas sobre o poder da educação, realizar um trabalho docente
pela emancipação de indivíduos concretamente prejudicados,
supõe uma formação cientíica geral para todos e formação da
personalidade global, em articulação com os contextos socioculturais
da aprendizagem. Este é um pressuposto para uma formação
qualiicada especial que implica o desenvolvimento de capacidades
cognitivas, criativas e operativas, visando formar sujeitos para o
mundo do trabalho, da cultura, da cidadania, da convivência humana,
das relações socioculturais.103
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CONHECIMENTO E APRENDI