quinta-feira, 1 de março de 2012

Theodor Adorno


TABUS ACERCA DO MAGISTÉRIO
Theodor Adorno

O que irei expor constitui apenas a apresentação de um problema; nem é uma teoria constituída, para o que não tenho legitimidade por não ser pedagogo, nem tampouco o relato de resultados de investigações empíricas. Seria necessário acrescentar pesquisas ao que apresento, sobretudo estudos de casos individuais, principalmente em termos psicanalíticos. Minhas considerações prestam-se no máximo a tornar visíveis algumas dimensões da aversão em relação à profissão de professor, que representam um papel não muito explícito na conhecida crise de renovação do magistério, mas que, talvez até por isto mesmo, são bastante importantes. Ao fazê-lo, tocarei simultaneamente, ao menos por alto, numa série de problemas que se relacionam com o próprio magistério e sua problemática, na medida em que as duas coisas dificilmente podem ser separadas.
Permitam-me começar pela exposição da experiência inicial: justamente entre os universitários formados mais talentosos que concluíram o exame oficial, constatei uma forte repulsa frente aquilo a que são qualificados pelo exame oficial, e em relação ao que se espera deles após este exame. Eles sentem seu futuro como professores como uma imposição, a que se curvam apenas por falta de alternativas. É importante ressaltar que tenho a oportunidade de acompanhar um contingente não desprezível de tais formados, com motivos para supor que não se trata de uma seleção negativa.
Muitos dos motivos de tal aversão são racionais e tão conhecidos que não preciso me deter neles, O principal é a antipatia em relação ao que se encontra regulamentado, ao que se encontra disposto por meio do desenvolvimento definido por meu amigo Hellmut Becker como dirigido à escola administrada. Existem também motivações materiais: a imagem do magistério como profissão de fome aparentemente é mais duradoura do que corresponde à própria realidade na Alemanha. A desproporção que registro por esta via parece-me, já me adiantando, típica para todo o conjunto em questão, caracterizado pelas motivações subjetivas da aversão contra o magistério, em especial as que são inconscientes. Tabus significam, a meu ver, representações inconscientes ou pré-conscientes dos eventuais candidatos ao magistério, mas também de outros, principalmente das próprias crianças, que vinculam esta profissão como que a urna interdição psíquica que a submete a dificuldades raramente esclarecidas. Portanto utilizo o conceito de tabu de um modo relativamente rigoroso, no sentido da sedimentação coletiva de representações que, de um modo semelhante àquelas referentes à economia, já mencionadas, em grande parte perderam sua base real, mais duradouramente até do que as econômicas, conservando-se porém com muita tenacidade como preconceitos psicológicos e sociais, que por sua vez retroagem sobre a realidade convertendo-se em forças reais.
Permitam fundamentar-me em alguns testemunhos triviais. A leitura de anúncios matrimoniais nos jornais — bastante elucidativa —— revela que em seus anúncios professores ou professoras destacam que não são tipos professorais, que não são mestres de escola. Praticamente nenhum anúncio matrimonial proveniente de professor ou professora deixa de conter ressalvas atenuantes. ---- Outro exemplo: além do alemão, também outras línguas apresentam uma série de expressões degradantes para o magistério; o mais conhecido em alemão é Pauker (quem ensina com a palmatória como quem treina soldados a marchar pelas batidas nos tambores); mais vulgar e também relacionado em alemão a instrumentos musicais é Steisstrommler (quem malha o traseiro); em inglês, utiliza-se schoolmarm para professoras solteironas, secas, mal-humoradas e ressentidas. De uma maneira inequívoca, quando comparado com outras profissões acadêmicas como advogado ou médico, pelo prisma social o magistério transmite um clima de falta de seriedade. Além disso, a sociologia acadêmica e da educação pouco atentaram para a distinção que a população estabelece entre disciplinas com prestígio e desprestigiadas: entre as prestigiadas listam-se a Jurisprudência e a Medicina, e sem dúvida não consta o estudo da Filologia; nas faculdades de filosofia, a exceção visível é a altamente prestigiosa História da Arte. Se estou bem informado -— o que escapa ao meu controle por não ter acesso direto aos ambientes em questão —, num dos círculos hoje mais exclusivos, alegadamente o mais exclusivo de todos, os filólogos simplesmente são recusados. Nesta medida, conforme a percepção vigente, o professor, embora sendo um acadêmico, não seria socialmente capaz; quase poderíamos dizer: trata-se de alguém que não é considerado um "senhor", nos termos em que este termo é usado no novo jargão alemão, aparentemente relacionado à alegada igualdade de oportunidades educacionais. Numa complementariedade peculiar parece encontrar-se o inabalado prestígio do professor universitário, apoiado inclusive em estatísticas. De um lado, o professor universitário como a profissão de maior prestígio; de outro, o silencioso ódio em relação ao magistério de primeiro e segundo graus; uma ambivalência como esta remete a algo mais profundo. Na mesma ordem de questões situa-se a proibição do título de "professor", negado na Alemanha pelos docentes universitários aos docentes do segundo grau (hoje chamados de Studienräte, algo como "conselheiro de estudos"). Em outros países, como a França, não existe essa diferenciação rigorosa dividindo um sistema, o que possibilita uma ascensão continua. Não tenho condições de avaliar se isto influencia o próprio prestigio do magistério e os aspectos psicológicos a que me refiro.
Os que são mais diretamente afetados pela questão deveriam acrescentar a esses sintomas outros mais impositivos. Mas os mencionados até aqui deveriam bastar para possibilitar algumas especulações. Afirmei que na Alemanha a pobreza do professor é uma imagem do passado. Contudo, permanece inquestionavelmente a discrepância entre a posição material do docente e a sua exigência de status e poder, que deveriam lhe corresponder ao menos conforme prega a ideologia vigente. Esta discrepância não deixa de afetar o espírito. Schopenhauer atentou para essa situação no que se refere aos docentes universitários. Acreditava que o comportamento subalterno que constatava neles há mais de cem anos relacionava-se a seus péssimos salários. É preciso acrescentar que na Alemanha essa exigência de poder e status do espírito é em si problemática e nunca foi satisfeita. Haveria nisso a influência do tardio desenvolvimento burguês, da longa sobrevida do feudalismo alemão que não era propriamente afeito ao espírito, e que gerou a figura do mestre de escola como sendo um serviçal. A este respeito gostaria de relatar uma história que me parece característica. Aconteceu em Frankfurt. Num encontro social elegante e burguês a conversa chegou a Hölderlin e sua relação com Diotima. Entre os presentes havia uma descendente direta da família Gontard, muito idosa e inteiramente surda; ninguém a considerava capaz de participar desta conversa. Repentinamente, ela tomou a palavra e disse uma única frase em bom dialeto de Frankfurt: "Sim, sim, sempre há uma má vontade em relação aos preceptores". Num tempo não muito distante, há poucas décadas, ela acompanhara a referida história de amor literalmente nos mesmos termos com que outrora o senhor Von Gontard havia se manifestado frente a Hölderlin: sob o prisma do patriciado burguês, para o qual um preceptor era nada mais do que um lacaio um pouco diferenciado.
Conforme o sentido dessas imagens, o professor é um herdeiro do scriba, do escrivão. Como já assinalei, o menosprezo de que é alvo tem raízes feudais e precisa ser fundamentado a partir da Idade Média e do início do Renascimento; como, por exemplo, na "Canção dos Nibelungos", onde se expressa o desprezo de Hagen, que considera o capelão um débil, justamente aquele capelão que a seguir escaparia com vida. Cavaleiros feudais cuja educação passou pelos livros constituíram exceções; caso contrário o nobre Hartmann von der Aue não teria se vangloriado tanto de sua capacidade de leitura. Além disso, há que se acrescentar a influência de antigas referências de professores como escravos. 1 O intelecto encontrava-se separado da força física. É certo que sempre detinha uma determinada função na condução da sociedade, mas tornava-se suspeito em qualquer lugar onde as prerrogativas da força física sobreviveram à divisão do trabalho. Este passado distante na história ressurge permanentemente. O menosprezo pelos professores que certamente existe na Alemanha, e talvez inclusive nos países anglo-saxônicos, ao menos na Inglaterra, poderia ser caracterizado como o ressentimento do guerreiro que acaba se impondo ao conjunto da população pela via de um mecanismo interminável de identificações. Todas as crianças revelam afinal uma forte tendência a se identificar com "coisas de soldados", como se diz tão bem hoje em dia; lembro apenas o prazer com que os meninos se fantasiam de cowboys, e a satisfação com que correm "armados" por aí. Ao que tudo indica, eles reproduzem de novo, ontogeneticamente, o processo filogenético, que gradualmente libertou os homens da violência física. Todo o complexo da violência física, bastante dotado de ambivalência e de forte conteúdo afetivo em um mundo em que ela é exercida somente nas situações-limite por demais conhecidas, desempenha aqui seu papel decisivo. Numa anedota famosa o condottiere Georg von Frundsberg bate nos ombros de Lutero na Dieta de Worms dizendo: "Padrezinho, padrezinho, agora segues um caminho perigoso". Uma atitude em que se misturam o respeito pela independência do espírito e um desprezo. ainda que tênue, por quem, não portando armas, logo pode se tornar vitima de esbirros. Movidos por rancor, os analfabetos consideram corno sendo inferiores todas as pessoas estudadas que se apresentam dotadas de alguma autoridade, desde que não sejam providas de alta posição social ou do exercício de poder, como acontece no caso do alto clero, O professor é o herdeiro do monge; depois que este perde a maior parte de suas funções, o ódio ou a ambigüidade que caracterizava o oficio do monge é transferido para o professor.
A ambivalência frente aos homens estudados é arcaica. É verdadeiramente mítico o impressionante conto em que Kafka narra o assassinato do médico do interior rural que atendia a um chamado noturno que se revelaria falso; a etnologia sabe que o curandeiro ou o cacique tanto pode usufruir de honrarias quanto pode ser sacrificado em determinadas situações. Pode-se perguntar por que o tabu arcaico, a ambivalência arcaica foram transferidos justamente aos professores, enquanto outras profissões intelectuais ficaram livres deles. Explicar por que algo não ocorreu sempre implica grandes dificuldades do ponto de vista da teoria do conhecimento. Limitar-me-ei a urna consideração baseada no senso comum. Os juristas e os médicos não se subordinam àquele tabu e são igualmente profissões intelectuais. Mas estas constituem o que se chama hoje de profissões livres. Subordinam-se à disputa concorrencial; são providas de melhores oportunidades materiais, mas não são contidas e garantidas por urna hierarquia de servidor público, e por causa dessa liberdade gozam de maior prestigio. Aqui se anuncia um conflito social possivelmente dotado de alcance maior. Uma ruptura no próprio plano da burguesia, ao menos na pequena burguesia, entre os que são livres e ganham mais, embora sua renda não seja garantida, e que gozam de um certo ar de nobreza e ousadia, e, por outro lado, os funcionários permanentes e com pensão assegurada, invejados por causa de sua segurança, mas desprezados enquanto se assemelham a verdadeiros animais de carga em escritórios e repartições, com horários fixos e vida regrada pelo relógio de ponto. Por sua vez, os juizes e funcionários administrativos têm algum poder real delegado, enquanto a opinião pública não leva a sério o poder dos professores, por ser um poder sobre sujeitos civis não totalmente plenos, as crianças. O poder do professor é execrado porque só parodia o poder verdadeiro, que é admirado. Expressões como "tirano de escola" lembram que o tipo de professor que querem marcar é tão irracionalmente despótico como só poderia sê-lo a caricatura do despotismo, na medida em que não consegue exercer mais poder do que reter por uma tarde as suas vitimas, algumas pobres crianças quaisquer.
O reverso dessa ambivalência é a adoração mágica dispensada aos professores em alguns países, como outrora na China, e em alguns grupos, como entre os judeus devotos. O aspecto mágico da relação com os professores parece se fortalecer em todos os lugares onde o magistério é vinculado à autoridade religiosa, enquanto a imagem negativa cresce com a dissolução dessa autoridade. É digno de nota que os professores que gozam do maior prestigio na Alemanha, ou seja, justamente os acadêmicos universitários, na prática muito raramente desempenham funções disciplinares, e, ao menos de modo ideal e para a opinião pública, são pesquisadores produtivos que não se fixam no plano pedagógico aparentemente ilusório e secundário de acordo com a exposição anterior. O problema da inverdade imanente da pedagogia estaria em que o objeto do trabalho é adequado aos seus destinatários, não constituindo um trabalho objetivo motivado objetivamente. Em vez disso, este seria pedagogizado. Só isto já bastaria para dar às crianças inconscientemente a impressão de estarem sendo iludidas. Os professores não reproduzem simplesmente de um modo receptivo algo já estabelecido, mas a sua função de mediadores, um pouco socialmente suspeita como todas as atividades da circulação, atrai para si uma parte da aversão geral. Max Scheler disse certa feita que só atuou pedagogicamente porque nunca tratou seus estudantes de maneira pedagógica. Se me permitem a observação pessoal, a minha própria experiência confirma inteiramente este ponto de vista. Ao que tudo indica, o êxito como docente acadêmico deve-se à ausência de qualquer estratégia para influenciar, à recusa em convencer.
Com a transformação objetiva que se anuncia no magistério, a situação tende a se alterar. Nota-se também uma certa mudança estrutural na relação com o docente universitário. Tal como há muito ocorre nos Estados Unidos, onde processos como este acontecem de modo mais drástico do que na Alemanha, o professor se converte lenta, mas inexoravelmente, em vendedor de conhecimentos, despertando até compaixão por não conseguir aproveitar melhor seus conhecimentos em beneficio de sua situação material. Não resta dúvida que há nisto um grande avanço de esclarecimento, em comparação à imagem do professor como um deus, tal como era considerado ainda nos Buddenbrook.s; ao mesmo tempo, porém, uma racionalidade estratégica nesses termos reduz o intelecto a mero valor de troca, o que é tão problemático como o é qualquer progresso no seio do existente.
Mencionei a função disciplinar. Se não me engano, com ela toco na questão central, embora seja necessário repetir que não se trata de conclusões de pesquisa. Por trás da imagem negativa do professor encontra-se o homem que castiga, figura que também ocorre no Processo de Kafka. Mesmo após a proibição dos castigos corporais, continuo considerando este contexto determinante no que se refere aos tabus acerca do magistério. Esta imagem representa o professor como sendo aquele que é fisicamente mais forte e castiga o mais fraco. Nesta função, que continua a ser atribuída ao professor mesmo depois que oficialmente deixou de existir, e em alguns Outros lugares parece constituir-se em valor permanente e compromisso autêntico, o docente infringe um antigo código de honra legado inconscientemente e com certeza conservado por crianças burguesas. Pode-se dizer que este não é um jogo honesto, limpo, não é um fair play. Esta unfairness (desonestidade) — e qualquer docente o percebe. inclusive o universitário — também afeta a vantagem do saber do professor frente ao saber de seus alunos, que ele utiliza sem ter direito para tanto, uma vez que a vantagem é indissociável de sua função, ao mesmo tempo em que sempre lhe confere uma autoridade de que dificilmente consegue abrir mão. Esta unfairness existe na ontologia do professor, na medida em que excepcionalmente posso usar o termo ontologia neste contexto. É só pensar como o professor universitário pode dispor da cátedra em longas exposições sem qualquer contestação, para se compartilhar este resultado. Quando a seguir o professor oferece aos estudantes a oportunidade de perguntar, procurando aproximar a aula expositiva de um seminário, ironicamente há muito pouca reciprocidade por parte dos alunos. Estes hoje em dia parecem preferir aulas como preleçoes expositivas dogmáticas. Mas de um certo modo não é somente a profissão do magistério que impele o professor à unfairness: o fato de saber mais, ter a vantagem e não poder negá-la. Ele também é impelido nessa direção pela sociedade, e isto me parece mais profundo. A sociedade permanece baseada na força física, conseguindo impor suas determinações quando é necessário somente mediante a violência física, por mais remota que seja esta possibilidade na pretensa vida normal. Da mesma maneira as disposições da chamada integração civilizatória que, conforme a concepção geral, deveriam ser providenciadas pela educação, podem ser realizadas nas condições vigentes ainda hoje apenas com o suporte do potencial da violência física. Esta violência física é delegada pela sociedade e ao mesmo tempo é negada nos delegados. Os executantes são bodes expiatórios para os mandantes. O modelo originário negativo — refiro-me a um imaginário de representações inconscientemente efetivas, e não a uma realidade, a não ser que esta seja referida de modo apenas rudimentar — é constituído pelo carcereiro ou, melhor ainda, o suboficial. Não sei até que ponto é procedente a afirmação de que nos séculos XVII e XVIII soldados veteranos eram aproveitados como professores nas escolas primárias. Mas certamente esta crença popular é bastante característica para a imagem do professor. A expressão "quem malha o traseiro". acima referida, tem conotação militar; inconscientemente os professores talvez sejam imaginados como veteranos, como uma espécie de mutilados, como pessoas que no âmbito da vida propriamente dita do processo real de reprodução da sociedade não têm nenhuma função, contribuindo apenas de um modo pouco transparente e pela via de uma graça especial à continuidade do conjunto e de sua própria vida. Mas, em decorrência dessa imagem, quem se opõe ao castigo físico defende o interesse do professor ao menos tanto quanto o interesse do aluno. Só é possível esperar alguma mudança neste complexo a que me refiro quando até o último resquício de punição tiver desaparecido da memória escolar, como parece ser o caso na maior parte dos Estados Unidos.
Uma parte constitutiva essencial deste complexo parece estar em que a sociedade que se apresenta como liberal-burguesa em hipótese nenhuma reconhece a necessidade da força física para uma formação social baseada na dominação. Isto ocasiona tanto a delegação da violência — um senhor jamais castiga — quanto o desprezo pelo professor que se encarrega de executar o que é necessário para tudo funcionar, sabidamente um mal que é duplamente rejeitado pelas pessoas, na medida em que elas próprias estão por trás da execução, e ao mesmo tempo se julgam boas demais para executá-la pelas próprias mãos. A minha hipótese é que a imagem de "responsável por castigos" determina a imagem do professor muito além das práticas dos castigos físicos escolares. Se eu tivesse que orientar investigações empíricas acerca do conjunto complexo do professor. então esta seria a primeira a me interessar. Ainda que em termos bastante brandos, repete-se na imagem do professor algo da imagem tão afetivamente carregada do carrasco.
Que este imaginário é exitoso em firmar a crença de que o professor não é um senhor, mas um fraco que castiga ou um monge sem cargo, isto pode ser comprovado de maneira drástica no plano erótico. Por um lado, ele não tem função erótica; por outro, desempenha um grande papel erótico, para adolescentes deslumbrados, por exemplo. Mas na maioria dos casos apenas como objeto inatingível; basta que se observem nele leves traços de simpatia, para difamá-lo como injusto. A característica de ser inatingível associa-se à imagem de um ser tendencialmente excluído da esfera erótica. Numa perspectiva psicanalítica, esse imaginário do professor relaciona-se à castração. Um professor que, como aconteceu em minha infância com um docente bastante humano, se veste de maneira elegante porque tem posses ou que, movido por orgulho acadêmico, ostenta comportamento que chama a atenção, imediatamente é ridicularizado. É difícil distinguir até que ponto tais tabus específicos são efetivamente apenas psicológicos ou até que ponto a práxis, a idéia do docente com a vida inquestionável enquanto modelo para os imaturos o obriga a uma ascese erótica maior do que ocorre em muitos outras profissões, como, por exemplo, a do representante, para nomear apenas uma. Nos romances e nas peças de crítica à escola de inícios do século, os professores com frequência aparecem como particularmente repressivos de um ponto de vista erótico, como em Wedekind, por exemplo; como seres inclusive sexualmente mutilados. Esta imagem do quase castrado, da pessoa neutralizada ao menos eroticamente, não livremente desenvolvida, esta imagem de pessoas descartadas na concorrência erótica, corresponde à infantilidade real ou imaginária do professor. Remeto ao grande romance Professor Unrat, de Heinrich Mann, conhecido da maioria provavelmente apenas na versão kitsch do filme O anjo azul. O tirano da escola, cuja decadência forma o conteúdo da obra, não tem a imagem transfigurada pela fachada de humor, como ocorre no filme. Ele de fato se relaciona com a prostituta, respeitosamente tratada por ele como uma artista chamada Fröhlich,exatamente como o fazem seus alunos secundaristas. Identifica-se com eles, como Heinrich Mann destaca explicitamente no texto. Ele o faz com todo seu horizonte intelectual e todas as suas formas de reação: ele mesmo é efetivamente uma criança. Nessa medida acrescenta-se ao desprezo pelo professor um aspecto suplementar: por mover-se num ambiente infantil que é o seu ou ao qual se adapta, ele não é considerado inteiramente como adulto, ao mesmo tempo em que de fato é um adulto que deriva suas exigências desta sua existência como tal. Sua dignidade desajeitada continua a ser experimentada como uma compensação insuficiente dessa discrepância.
Tudo isto é apenas a configuração especifica, relativa ao professor, de um fenômeno que em sua generalidade é conhecido na sociologia pelo nome de déformation professionelle. Contudo, na imagem do professor a déforrmation professionelle toma-se praticamente a própria definição da profissão. Em minha juventude contaram-me a anedota de um professor de colégio de Praga que teria dito: "Para tomarmos um exemplo da vida cotidiana: o general conquista a cidade". Com "um exemplo da vida cotidiana" pretendia-se falar do cotidiano escolar, continuamente povoado nas aulas de Latim por frases exemplares, paradigmas, do tipo do anunciado: o general toma a cidade. Aquilo que é relativo à escola, que justamente agora merece de novo tanta atenção, se impõe no lugar da realidade, que é mantida meticulosamente à distância por intermédio de dispositivos organizatórios. A infantilidade do professor apresenta-se pela sua atitude de substituir a realidade pelo mundo ilusório intramuros, pelo microcosmo da escola, que é isolado em maior ou menor medida da sociedade dos adultos — reuniões de pais e similares são modos desesperados de romper este isolamento. Este é um forte motivo pelo qual a escola defende tão encarniçadamente suas muralhas.
Com frequência os professores são vistos conforme as mesmas categorias com que se focaliza o infeliz herói de uma tragicomédia do naturalismo; em respeito a eles poderíamos falar de um complexo de devaneius. Eles encontram-se em permanente suspeição de estarem fora da realidade. Ao que tudo indica, não estão mais longe da realidade do que, por exemplo, os juizes, para quem o distanciamento da realidade seria uma característica fundamental, conforme as análises de Karl Kraus a partir dos processos judiciais no plano dos costumes. No estereótipo do "estar fora da realidade" fundem-se os traços infantis de alguns professores com os traços infantis de muitos estudantes. O que é infantil é o realismo supervalorizado dos mesmos. Na medida em que se adaptam de modo mais exitoso ao principio da realidade do que pode fazer o professor, que continuamente precisa anunciar e dar corpo a ideais de superego, acreditam compensar aquilo que acreditam ser o que lhes falta, isto é, não constituírem ainda sujeitos independentes. Talvez seja por isto que professores que jogam futebol ou são bons de copo sejam tão populares com os alunos, na medida em que correspondem à imagem de mundanalidade deles; em meus tempos de colégio eram particularmente populares os professores que correta ou incorretamente eram considerados como tendo pertencido às corporações acadêmicas. Reina uma espécie de antinomia: o professor e os alunos praticam injustiças uns em relação aos outros: aquele quando divaga sobre valores eternos, que na verdade não o são, e os alunos quando em resposta se decidem pela idolatria debilóide aos Beatles.
Nexos como esses podem revelar a função das peculiariedades dos professores que em tão ampla dimensão constituem alvo do rancor dos estudantes. O processo civilizatório de que os professores são agentes orienta-se para um nivelamento. Ele pretende eliminar nos alunos aquela natureza disforme que retoma como natureza oprimida nas idiossincrasias, nos maneirismos da linguagem, nos sintomas de estarrecimento, nos constrangimentos e nas inabilidades dos mestres. Triunfarão aqueles alunos que percebem no professor aquilo contra o que, de acordo com seu instinto, se dirige todo o sofrido processo educacional. Há nisto evidentemente uma crítica ao próprio processo educacional, que até hoje em geral fracassou em nossa cultura. Este fracasso é atestado também pela dupla hierarquia observável no âmbito da escola: a hierarquia oficial, conforme o intelecto, o desempenho, as notas, e a hierarquia não-oficial, em que a força física, o "ser homem" e todo um conjunto de aptidões prático-físicas não honradas pela hierarquia oficial desempenham um papel. O nazismo explorou esta dupla hierarquia inclusive fora da escola, na medida em que incitou a segunda contra a primeira, tal como incitaria o partido contra o Estado na macropolítica. A pesquisa pedagógica deveria dedicar especial atenção à hierarquia latente na escola.
As resistências das crianças e dos jovens, igualmente institucionalizadas na segunda hierarquia, foram em parte certamente transmitidas pelos pais. Muitas baseiam-se em estereótipos herdados; muitas, porém, como procurei mostrar, baseiam-se na situação objetiva do professor. A isto acrescenta-se algo essencial, bem conhecido da psicanálise. Na elaboração do complexo de Édipo, a separação do pai e a interiorização da figura paterna, as crianças notam que os próprios pais não correspondem ao ego ideal que lhes transmitem. Na relação com os professores este ego ideal se reapresenta pela segunda vez, possivelmente com mais clareza, e eles têm a expectativa de poder se identificar com os mesmos. Mas por muitas razões novamente isto se torna impossível para eles, sobretudo porque particularmente os próprios mestres constituem produtos da imposição da adequação, contra a qual se dirige o ego ideal da criança ainda não preparada para vínculos de compromisso. O magistério também é uma profissão burguesa; apenas o idealismo hipócrita poderia negá-lo. O professor não é aquela pessoa íntegra que forma a expectativa das crianças, por mais vaga que seja, mas alguém que no plano de todo um conjunto de outras oportunidades e tipos profissionais concentrou-se inevitavelmente como profissional na sua própria profissão, sendo propriamente já a priori o contrário daquilo que o inconsciente aguarda dele: que precisamente ele não seja um profissional, quando justamente ele precisa sê-lo. A sensibilidade idiossincrática das crianças em relação às particularidades dos professores, que possivelmente ultrapassa tudo que se possa imaginar como adulto, provém da constatação de que a existência particular renega o ideal de uma pessoa normal e verdadeira no sentido enfático com que as crianças vêem primariamente os professores, mesmo que já tenham passado por alguma experiência em que se exige astúcia ou algum estereótipo que imponha dureza. Soma-se um momento social que condiciona tensões praticamente inevitáveis. A criança é retirada da primary community (comunidade primária) de relações imediatas, protetoras e cheias de calor, frequentemente já no jardim-de-infancia, e na escola experimenta pela primeira vez de um modo chocante e ríspido, a alienação; para o desenvolvimento individual dos homens a escola constitui quase o protótipo da própria alienação social. O costume que os professores tinham antigamente de distribuir biscoitos entre os alunos no primeiro dia de aula revelaria um pressentimento: serviria para amainar o choque. O agente dessa alienação é a autoridade do professor, e a resposta a ela é a apreensão negativa da imagem do professor. A civilização que ele lhes proporciona, as privações que lhes impõe, mobilizam automaticamente nas crianças as imagens do professor que se acumularam no curso da história e que, como todas as sobras remanescentes no inconsciente, podem ser despertadas conforme as necessidades da economia psíquica. Os professores têm tanta dificuldade em acertar justamente porque sua profissão lhes nega a separação entre seu trabalho objetivo — e seu trabalho em seres humanos vivos é tão objetivo quanto o do médico, nisto inteiramente análogo — e o plano afetivo pessoal, separação possível na maioria das outras profissões. Pois seu trabalho realiza-se sob a forma de uma relação imediata, um dar e receber, para a qual, porém, este trabalho nunca pode ser inteiramente apropriado sob o jugo de seus objetivos altamente mediatos. Por principio, o que acontece na escola permanece muito aquém do passionalmente esperado. Nesta medida, o próprio oficio do professor permaneceu arcaicamente muito aquém da civilização que ele representa; talvez as máquinas educativas o dispensem de uma demanda humana que se encontra impedido de realizar. Um tal arcaismo correspondente à profissão do professor como tal não apenas promove os simbolos arcaicos dos professores, mas também desperta os arcaismos no próprio comportamento destes, quando ralham, repreendem, discutem etc.; atitudes tanto próximas da violência física quanto reveladoras de momentos de fraqueza e insegurança. Mas, se o professor não reagisse subjetivamente, se ele realmente fosse tão objetivo a ponto de nunca possibilitar reações incorretas, então pareceria aos alunos ser ainda mais desumano e frio, sendo possivelmente ainda mais rejeitado por eles. Assim pode-se notar que não exagerei ao me referir a uma antinomia. A solução, se posso dizer assim, pode provir apenas de uma mudança no comportamento dos professores. Eles não devem sufocar suas reações afetivas, para acabar revelando-as em forma racionalizada, mas deveriam conceder essas reações afetivas a si próprios e aos outros, desarmando desta forma os alunos. Provavelmente um professor que diz: "sim, eu sou injusto, eu sou uma pessoa como vocês, a quem algo agrada e algo desagrada" será mais convincente do que um outro apoiado ideologicamente na justiça, mas que acaba inevitavelmente cometendo injustiças reprimidas. Diga-se de passagem que tais reflexões implicam imediatamente a necessidade de conscientização e de aprendizado psicanalítico para o magistério.
Por fim coloca-se a questão inevitável do "que fazer?", para a qual neste caso, como em geral, considero-me extremamente desautorizado. Muitas vezes esta questão sabota o desenvolvimento consequente do conhecimento, necessário para possibilitar qualquer transformação. Nas discussões acerca dos problemas aqui aventados já se automatizou a atitude do "é um belo discurso, mas a situação se coloca de modo diferente para quem trabalha em meio à questão". De qualquer modo posso enumerar alguns aspectos sem qualquer pretensão sistemática ou de resultados maiores. Em primeiro lugar, impõe-se um esclarecimento acerca do complexo em seu conjunto, nos termos em que foi aqui abordado, esclarecimento dos próprios professores, dos pais e, tanto quanto possível, também dos alunos, com quem os professores deveriam conversar sobre as questões cheias de tabus. Não evito a hipótese de que em geral é possível conversar com muito mais seriedade e maturidade com as crianças do que os adultos querem reconhecer para assegurar-se, por esta via, de sua própria maturidade. Mas não se deve superestimar a possibilidade de um tal esclarecimento. As motivações em causa, como assinalei, são muitas vezes inconscientes, e a mera nomeação de situações inconscientes, como se sabe, é inútil, de modo que aqueles em que essas situações se localizam não são esclarecidos espontaneamente em sua própria experiência; nesses termos, o esclarecimento só se verifica a partir do exterior. Com base nessa constatação, uma trivialidade psicanalítica, não se deve esperar muito do esclarecimento meramente intelectual, embora se deva iniciar por seu intermédio; um esclarecimento um pouco insuficiente e apenas parcialmente eficiente ainda é melhor do que nenhum. Além disto seria necessário eliminar quaisquer limitações e obstáculos ainda existentes na realidade que dão suporte aos tabus com que se cercou o magistério. Sobretudo é necessário tratar aqueles pontos nevrálgicos ainda na fase de formação dos professores, em vez de orientar a sua formação pelos tabus vigentes. Em nenhuma hipótese a vida privada dos docentes pode ser submetida a qualquer controle que não o das disposições do direito penal. Seria preciso contrapor-se à ideologia da escola, teoricamente de difícil apreensão, e que também seria renegada, mas que perpassa com tenacidade a prática escolar conforme as minhas observações. A escola possui uma tendência imanente a se estabelecer como esfera da própria vida e dotada de legislação própria. É difícil decidir até que ponto isto é necessário para que ela realize a sua tarefa; certamente não se trata só de ideologia. Uma escola aberta ao exterior sem qualquer restrição provavelmente também abriria mão dos aspectos de formação e de amparo. Não me envergonho de ser considerado reacionário na medida em que penso ser mais importante às crianças aprenderem na escola um bom latim, de preferência a estilística latina, do que fazerem tolas viagens a Roma que, via de regra, resultam apenas em desarranjos intestinais sem qualquer aprendizado essencial acerca de Roma. Certamente, na medida em que as pessoas da escola não permitem interferências, o fechamento da escola sempre tende a se enrijecer, sobretudo face à crítica. Tucholsky exemplificaria com aquela malvada diretora de escola rural, que justifica quaisquer horrores cometidos contra seus alunos frente ao protesto do simpático casal de namorados com a explicação: "aqui as coisas são feitas assim". Não interessa saber quanto deste "isto é feito assim"‘ continua dominando a prática escolar. Esta postura é corrente. Seria necessário explicar que a escola não constitui um fim em si mesma, que o fato de ser fechada constitui uma necessidade e não uma virtude como a consideram inclusive determinadas formas do movimento da juventude, por exemplo a fórmula imbecil da cultura jovem como sendo uma cultura própria, atualmente festejada no plano da ideologia da juventude como subcultura.
Por enquanto, embora em grande medida desapareça sua base social, a deformação psicológica de muitos professores perdura, se minhas observações nos exames oficiais de seleção não me enganam. Se abstrairmos da supressão dos controles ainda remanescentes, essa deformação deveria ser corrigida sobretudo mediante a formação profissional. No caso de colegas mais antigos, haveria que se apelar simplesmente —- mediante perspectivas problematizadoras — a que Condutas autoritárias prejudicam o objetivo educacional que também eles defendem racionalmente. Sempre ouvimos, e me restrinjo ao registro sem qualquer intenção de juízo, que se rompem acordos de estudos no que se refere ao tempo de formação, sem levar em conta se deste modo se elimina seu élan, seu conteúdo mais importante. Mudanças de fundo exigem pesquisas acerca do processo da formação profissional Seria preciso atentar especialmente até que ponto o conceito de "necessidade da escola" oprime a liberdade intelectual e a formação do espírito. Isto se revela na hostilidade em relação ao espírito desenvolvido por parte de muitas administrações escolares, que sistematicamente impedem o trabalho científico dos professores, permanentemente mantendo-os down to earth (com os pés no chão), desconfiados em relação àqueles que, como afirmam, pretendem ir mais além ou a outra parte. Uma tal hostilidade, dirigida aos próprios professores, facilmente prossegue na relação da escola com os alunos.
Referi-me aos tabus acerca do magistério, e não à realidade da docência e nem à constituição efetiva dos docentes; mas ambos os planos não são inteiramente independentes entre si. De qualquer modo podem ser observados sintomas que justificam a esperança de que tudo isto se transforme quando a democracia tomar a sério sua chance, desenvolvendo-se na Alemanha. Esta é uma dessas parcelas limitadas da realidade para a qual a reflexão e a ação individual podem contribuir. Não é por acaso que o livro que considero politicamente mais importante publicado na Alemanha dos últimos vinte anos, seja o de um professor: Sobre a Alemanha, de Richard Matthias Müller. Mas não se deve esquecer que a chave da transformação decisiva reside na sociedade e em sua relação com a escola. Contudo, neste plano, a escola não é apenas objeto. A minha geração vivenciou o retrocesso da humanidade à barbárie, em seu sentido literal, indescritível e verdadeiro. Esta é uma situação em que se revela o fracasso de todas aquelas configurações para as quais vale a escola. Enquanto a sociedade gerar a barbárie a partir de si mesma, a escola tem apenas condições mínimas de resistir a isto. Mas se a barbárie, a terrível sombra sobre a nossa existência, é justamente o contrário da formação cultural, então a desbarbarização das pessoas individualmente é muito importante. A desbarbarização da humanidade é o pressuposto imediato da sobrevivência. Este deve ser o objetivo da escola, por mais restritos que sejam seu alcance e suas possibilidades. E para isto ela precisa libertar-se dos tabus, sob cuja pressão se reproduz a barbárie. O pathos da escola hoje, a sua seriedade moral, está em que, no âmbito do existente, somente ela pode apontar para a desbarbarização da humanidade, na medida em que se conscientiza disto. Com barbárie não me refiro aos Beatles, embora o culto aos mesmos faça parte dela, mas sim ao extremismo: o preconceito delirante, a opressão, o genocídio e a tortura; não deve haver dúvidas quanto a isto. Na situação mundial vigente, em que ao menos por hora não se vislumbram outras possibilidades mais abrangentes, é preciso contrapor-se à barbárie principalmente na escola. Por isto, apesar de todos os argumentos em contrário no plano das teorias sociais, é tão importante do ponto de vista da sociedade que a escola cumpra sua função, ajudando, que se conscientize do pesado legado de representações que carrega consigo.
Nota
  1. Agradeço a Jacob Tatibes por esta referência.
Tradução: Wolfgang Leo Maar
Texto retirado e conforme o da página Debates

A Transcrição de Um Debate Promovido Pela Rádio Hessen 1963!!


TELEVISÃO E FORMAÇÃO
Theodor Adorno


Kadelbach – Ultimamente a televisão ocupou um espaço crescente nas discussões relacionadas à formação de adultos. Durante muitos anos as Escolas Superiores de Educação Popular (Volkshochschulen) que ofereciam formação para adultos consideraram-se prejudicadas pela televisão, alegando que o público teria se afastado pela entrada em cena deste novo meio de comunicação de massas.
No curso dos últimos dois anos tentou-se sair dessa situação conflitiva, procurando-se tematizar a televisão sobretudo em sua relação com a formação de adultos. O presidente das Escolas Superiores de Educação Popular da Alemanha, Hellmut Becker, tomou posição em relação ao tema no artigo "Televisão e formação" na revistaMerkur. Paralelamente, muitos grupos de trabalho no âmbito da própria televisão e grupos de intercâmbio com esta no âmbito das Escolas Superiores de Educação Popular revelaram que este veículo já não é visto a partir de urna perspectiva de confronto, mas que se procura estreitar as relações e a convivência com ele.
Naturalmente a isto relaciona-se todo um conjunto de questões e inter-relações pedagógicas, metodológicas e até mesmo epistemológicas. Assim, fomos motivados a debater a fundo a questão da televisão e da formação. Urna tal ordem de problemas não pode ser abordada e explicada exclusiva— mente pela perspectiva prática. Por isto pedimos a colaboração do professor Theodor Adorno, filósofo e sociólogo de Frankfurt, para participar nesta discussão com o professor Becker. Os conhecimentos do professor Adorno em relação à televisão provêm de um estudo analítico meticuloso deste veículo nos Estados Unidos, onde procurou investigar os programas de televisão e seu público. Pensa que estes dois enfoques, o Ponto de vista prático e o prisma do observador analítico, poderão proporcionar a este debate boas perspectivas de discussão e de orientação.
Senhor Adorno, o senhor conhece os esforços de aproximação realizadas pelas Escolas Superiores de Educação Popular em relação à televisão. Qual é a sua opinião a respeito?
Adorno – Começo destacando que o conceito de formação possui um duplo significado em face da televisão, e espero não ser considerado pedante ao me deter na distinção desses dois significados.
Por um lado é possível referir-se à televisão enquanto ela se coloca diretamente a serviço da formação cultural, ou seja, enquanto por seu intermédio se objetivam fins pedagógicos: na televisão educativa, nas escolas de formação televisivas e em atividades formativas semelhantes. Por outro lado, porém, existe urna espécie de função formativa ou deformativa operada pela televisão como tal em relação à consciência das pessoas, conforme somos levados a supor a partir da enorme quantidade de espectadores e da enorme quantidade de tempo gasto vendo e ouvindo televisão. Contudo, é importante ressaltar que as pesquisas ainda não encontraram uma resposta específca à pergunta tão popular nos Estados Unidos: "What television does to people? (Que efeitos a televisão provoca nas pessoas?)". Talvez possamos retornar ao tema posteriormente.
Se houve alguma espécie de controvérsia entre as posições de meu amigo Becker e as minhas, certamente devem-se a que em seus trabalhos ele se interessou pelo significado pedagógico especifico da televisão, enquanto, como sociólogo da educação, preocupei-me mais com os efeitos de transmissões sem objetivo educacional explícito, principalmente encenações televisivas. É necessário esclarecer bem esta questão, para eliminar falsas querelas. Porém disto, gostaria de acrescentar que não sou contra a televisão em si, tal como repetidamente querem fazer crer. Caso contrário, certamente eu próprio não teria participado de programas televisivos. Entretanto, suspeito muito do uso que se faz em grande escala da televisão, na medida em que creio que em grande parte das formas em que se apresenta, ela seguramente contribui para divulgar ideologias e dirigir de maneira equivocada a consciência dos espectadores. Eu seria a última pessoa a duvidar do enorme potencial da televisão justamente no referente à educação, no sentido da divulgação de informações de esclarecimento. A meu ver, o ponto de partida para uma discussão como esta estaria em situar-se de modo eqüidistante, tanto, por um lado, do pensamento daqueles que consideram apropriado não deixar entrar em suas casas algo assim, quanto, por outro, daqueles que dizem: "sou uma pessoa moderna, e por isto mesmo, superficial", e que nesta medida cultivam a televisão por considerá-la moderna. Pois, para começar, o que é moderno na televisão certamente é a técnica de transmissão, mas se o conteúdo da transmissão é ou não é moderno, se corresponde ou não a uma consciência evoluída, esta é justamente a questão que demanda uma elaboração crítica.
Becker –Creio que nesta base poderemos concordar com relativa facilidade, na medida em que meu interesse é evitar que, a partir da resistência que a televisão encontra entre os intelectuais e pedagogos na Alemanha, ela possa desenvolver com mais facilidade ainda suas danosas conseqüências especificas. Todos conhecem o ditado segundo o qual o dinheiro se vinga preferencialmente em quem o despreza. Analogamente me parece ser o perigo de muitos intelectuais e professores alemães que dizem: "nós não temos televisão para evitar a interferência em nosso ambiente íntimo", quando a resistência leva o filho do intelectual ou do professor a assistir à tevê na casa do operário nas proximidades e submeter-se sem qualquer preparo àquele veículo. Penso que o importante é nos conscientizarmos tanto da função educacional a que o senhor se referiu, da função educativa de esclarecimento da televisão, quanto do perigo da sedução que ela representa, e que a partir desta dupla consciência se gerem instituições apropriadas a ensinar televisão, ou seja, introduzir ao uso deste veículo de comunicação de massa, seja na educação de adultos, seja na escola.
Kadelbach –Esta é uma referência ao público espectador, senhor Becker?
Becker –Creio que isto vale também para os que fazem tevê. Quando se afirma que a televisão deve servir ao entretenimento, à informação e à educação, então pressupomos que entretenimento, informação e educação colaboram na formação do desenvolvimento humano, isto é, do espectador e do ouvinte. Por isto não pode ser indiferente à opinião pública o que acontece efetivamente na tevê em termos de entretenimento, informação e educação. A pergunta que se coloca para a opinião pública é: como podemos conseguir que o efeito de esclarecimento da televisão se amplie e os perigos que ela representa se reduzam a um mínimo inevitável.
Kadelbach – Talvez o senhor possa detalhar melhor sua concepção do "efeito de esclarecimento" da televisão, O senhor se refere à parte informativa deste veículo ou entende a questão num sentido mais amplo?
Becker ––Eu diria que a televisão pode significar esclarecimento num sentido bastante direto. Ao mesmo tempo é preciso ter muita clareza em relação a que nestes planos naturalmente diminui a capacidade de organizar os acontecimentos, motivo pelo qual na mesma situação em que são maiores os efeitos de esclarecimento da televisão, também se manifesta mais fortemente seu poder de sedução. É isto que torna o problema tão importante e tão difícil.
Kadelbach —-- Se entendi corretamente, a sua proposta é conseguir com que o maior número de pessoas aprendam a entender esta função de esclarecimento da tevê e aprendam a relacionar a mesma à sua própria existência ou personalidade ou vida. Isto é correto?
Becker ––Sim, e principalmente as pessoas que "fazem" tevê precisam refletir profundamente acerca de sua atividade.
Adorno ––Creio que o conceito de informação é mais apropriado à televisão do que o conceito de formação, cujo uso implica certos cuidados, e que provavelmente não é tão apropriado em relação ao que acontece na tevê.
Além disso, penso que a informação ultrapassa o mero piano da transmissão de fatos. Por exemplo: quando se viu efetivamente o que ocorreu no Parlamento junto ao episódio referido a respeito no semanário Der Spiegel e se manteve o poder de reflexão a respeito, certamente se obteve uma exposição sobre o assunto que possibilita um melhor juízo a seu respeito do que quaisquer longos discursos acerca de procedimentos a serem usados na efetivação legislativa de projetos de lei.
De resto, estou totalmente de acordo com seu ponto de vista, senhor Becker, pelo qual é necessário ensinar os espectadores a verem televisão. O quanto eu concordo com o senhor pode ser verificado a partir do titulo ––um pouco irônico, é bem verdade ––do estudo que fiz nos Estados Unidos sobre a televisão: "How to look at television?’, que significa "Como ver tevê?". Mas, abstraindo da ironia do título sem injuriar nossos espectadores, percebe-se a existência da questão de fundo: como ver tevê sem ser iludido, ou seja, sem se subordinar à televisão como ideologia. Em outros termos: o ensino que o senhor sugeriu na discussão acerca desses veículos de comunicação de massa não deveria consistir apenas em aprender a escolher o que é certo, e na apreensão do mesmo por meio de categorias, mas, desde o início, este ensino deveria desenvolver as aptidões críticas; ele deveria conduzir as pessoas, por exemplo, à capacidade de desmascarar ideologias; deveria protegê-las ante identificações falsas e problemáticas, protegendo-as sobretudo em face da propaganda geral de um mundo que a mera forma de veículos de comunicação de massa desta ordem já implica como dado.
Kadelbach —- Posso interrompê-lo por um momento, senhor Adorno? O senhor referiu-se a que a televisão ela mesma poderia ser uma ideologia, para em seguida utilizar mais uma vez o mesmo termo ideologia exatamente no contexto do perigo em subordinar-se a uma ideologia. No sentido de proporcionar clareza conceitual, talvez fosse apropriado o senhor explicar o que entende por "televisão como ideologia?"
Adorno –– Em primeiro lugar, compreendo "televisão como ideologia" simplesmente como o que pode ser verificado, sobretudo nas representações televisivas norte-americanas, cuja influência entre nós é grande, ou seja, a tentativa de incutir nas pessoas uma falsa consciência e um ocultamento da realidade, além de, como se costuma dizer tão bem, procurar-se impor às pessoas um conjunto de valores como se fossem dogmaticamente positivos, enquanto a formação a que nos referimos consistiria justamente em pensar problematicamente conceitos como estes que são assumidos meramente em sua positividade, possibilitando adquirir um juízo independente e autônomo a seu respeito. Além disto, contudo, existe ainda um caráter ideológico-formal da televisão, ou seja, desenvolve-se uma espécie de vicio televisivo em que por fim a televisão, como também outros veículos de comunicação de massa, converte-se pela sua simples existência no único conteúdo da consciência, desviando as pessoas por meio da fartura de sua oferta daquilo que deveria se constituir propriamente como seu objeto e sua prioridade. Esta espécie de instrução para ver tevê que constitui a sua sugestão, senhor Becker, deveria imunizar tanto quanto possível as pessoas em relação a esse caráter ideológico desse veículo de comunicação, antes de se referir a qualquer outra ideologia em especial.
Becker -–– Posso sugerir uma versão bem direta da questão? Penso que no funda existe o perigo de os jovens procurarem imaginar o amor, por exemplo, tal como ele é apresentado na tevê, isto é, assumam para relações humanas muito diretas representações estereotipadas antes que eles mesmos as tenham vivido. E que em seu próprio desenvolvimento procedam fixados em representações estereotipadas.
Kadelbach ---- Apresentação prévia de susbtitutivos.
Becker –– Justamente, e a questão relativa a como enfrentar esta situação coloca-se muito mais em relação a novelas de televisão do que em relação a programas acerca de assuntos políticos.
Adorno –– Muito bem!
Becker –– Precisamente porque a política, ao menos tal como se apresenta na tevê entre nós, é apresentada com forte acentuação nos debates, apresentando pontos de vista divergentes entre si, enquanto no relativo às posições fundamentais na vida cotidiana expressas nessas novelas, são veiculadas coisas que se transferem com muito mais força ao inconsciente, a partir do que, obviamente, tornam-se muito mais perigosas.
Adorno –– Em minha opinião, no fundo, em sua configuração usual, essas novelas são politicamente muito mais prejudiciais do que jamais foi qualquer programa político.
Becker –– Certo. Se hoje eu fosse fazer um filme sobre o Terceiro Reich, não mostraria as tropas da SA em marcha, mas procuraria apresentar trechos de filmes de amor rodados naquele período, e provavelmente nestes termos nos acercaríamos do clima do Terceiro Reich de um modo muito mais sutil. Mas a pergunta que se apresenta em programações deste tipo é: a televisão pode ser melhor do que a sociedade em que ela se encontra? Ela poderia, por assim dizer, atuar sobre a sociedade, ou então, para usar uma terminologia usual, funcionar como ‘instituição moral", ou trata-se meramente de um espelho da sociedade?
Adorno –– Em relação a esta questão, é possível afirmar de um modo geral que uma instituição tão prestigiada pela sociedade como a televisão evidentemente está comprometida em sua própria antologia com a sociedade. Mas penso que neste assunto é preciso evitar uma reflexão mecânica. Na medida em que uma série de pessoas com posições críticas, autônomas e freqüentemente até oposicionistas, colaboram na produção dos programas, torna-se possível romper em certo sentido as barreiras do existente simplesmente apoiando-se nas relações pessoais especificas e sobretudo na competência técnica de pessoas que têm o que dizer e fazer quanto a este assunto. Enquanto existirem pessoas tecnicamente competentes em televisão que percebem que certas encenações, como as peças de Beckett, por exemplo, são particularmente apropriadas a este veículo de comunicação de massa, pessoas além disto dotadas de energia suficiente para programar o Último elo de Beckett pelo rádio e pela tevê, em vez de veicular uma família comum dessas que tem nome diferente conforme a região, então eu diria que uma tal programação vai além da tevê nos termos vigentes, podendo contribuir para transformar a consciência das pessoas. Paradoxalmente, a relativa fixação das burocracias no interior de determinadas instituições da indústria cultural permite a essas instituições se comportar de maneira menos conformista do que se estivessem sob um controle aparentemente democrático.
Becker –– Gostaria de relatar um exemplo extremamente interessante que a UNESCO promove, por enquanto apenas nas regiões mais atrasadas dos países civilizados. Como se sabe, a cinqüenta ou sessenta quilômetros de Paris existem aldeias em que não há sequer água corrente, quanto mais saneamento ou coisa semelhante, onde as pessoas vivem num estado de consciência inimaginável a sessenta quilômetros de Paris. Nesses locais a UNESCO instalou experimentalmente aparelhos comunitários de televisão. A população da aldeia se reuniu em torno à tevê, e certas personalidades foram convidadas a discutir determinados programas com a população. Verificou-se que a partir disto poderia ser implantada uma espécie de urbanização abrangente, que talvez não representa uma formação cultural no sentido clássico, mas que para essas pessoas desempenhou uma função formativa decisiva para a participação na vida atual.
Não quero chegar ao ponto de afirmar que considero inevitável que, por exemplo, nos países em desenvolvimento, as pessoas assistam à tevê antes de serem alfabetizadas. Porém, na prática, a situação é esta, e nesta medida a televisão converte-se em um meio com que esta sociedade em que vivemos se adapta a si mesma. Evidentemente, senhor Adorno, desenvolvem-se neste plano todos os problemas relacionados ao processo de adaptação em geral. Por um lado, acontece por esta adaptação algo de essencial ao funcionamento de nosso mundo moderno. Por outro, acontece algo de muito perigoso, a que o senhor repetidamente atentou.
Adorno –– Para não haver mal-entendidos, destaco que considero as coisas relatadas pelo senhor como sendo totalmente inofensivas. Se em regiões tão atrasadas em meio a países de resto altamente desenvolvidos, a televisão possa induzir os trogloditas a abandonarem suas cavernas, eu me alegraria acerca dessa situação tanto quanto o senhor. Nos termos de minha crítica à televisão, não me opus a que ela torne as cavernas dos trogloditas mais desagradáveis, pois uma casa higiênica me apraz mais do que uma caverna simpática. Localizo o perigo em questões bem diversas. Exatamente em que, por toda a parte onde a televisão aparentemente se aproxima das condições da vida moderna, porém ocultando os problemas mediante rearranjos e mudanças de acento, gera-se efetivamente uma falsa consciência. Nem considero tão prejudicial assim o aprendizado do amor a partir da televisão, pois com freqüência podemos ver moças muito bonitas na tevê e, afinal, por que os adolescentes não deveriam se apaixonar por moças tão bonitas? Não considero isto perigoso. Mesmo que por essa via aprendam certos costumes eróticos, isso não seria desvantajoso. Valéry disse certa feita que no fundo o amor é aprendido nos livros, e o que vale para os livros também deveria bastar à televisão.
Kadelbach –– (E bons costumes sempre são úteis.)
Adorno –– E bons costumes sempre são úteis.
Kadelbach –– A pergunta que se coloca é se de fato aprendem bons costumes.
Adorno –– Provavelmente até um certo ponto sim, ainda que seja de uma maneira muito superficial e meramente exterior, mas que, tal como os autênticos processos de formação, avançam muito mais de fora para dentro do que inversamente, como o pretende a ideologia. Contudo, quero destacar também o que considero ser o perigo específico. Trata-se de algo relativo ao conteúdo, que nada mais tem a ver com o veículo técnico de comunicação de massa. Trata-se dessas situações inacreditavelmente falsas, em que aparentemente certos problemas são tratados, discutidos e apresentados, para que a situação pareça ser atual e as pessoas sejam confrontadas com questões substantivas. Tais problemas são ocultos sobretudo na medida em que parece haver soluções para todos esses problemas, como se a amável vovó ou o bondoso tio apenas precisassem irromper pela porta mais próxima para novamente consertar um casamento esfacelado. Eis aqui o terrível mundo dos modelos ideais de uma "vida saudável", dando aos homens uma imagem falsa do que seja a vida de verdade, e que além disto dando a impressão de que as contradições presentes desde os primórdios de nossa sociedade poderiam ser superadas e solucionadas no plano das relações inter-humanas, na medida em que tudo dependeria das pessoas. Penso que mesmo onde há apenas vestígios de uma tal tendência de harmonização do mundo é preciso se contrapor com muito vigor à mesma, e justamente os intelectuais, via de regra tão malvistos como desagregadores, prestam um grande serviço à humanidade quando denunciam embustes dessa ordem.
Becker –– Portanto, o senhor concordaria comigo que a frase de um teólogo protestante —-- "a televisão precisa mostrar uma vida familiar positiva" -— significa exatamente o que não queremos na tevê, ou seja, a representação da ilusão no lugar da apresentação da realidade dos problemas reais.
Adorno –– Considero esta frase do teólogo tão horrenda que, se precisasse caracterizá-la, me faltariam os termos diplomáticos exigidos pelo código vigente das telecomunicações.
Kadelbach ---- Senhores, trata-se, contudo, de questões usuais de comportamentos e de costumes. Vejo um perigo suplementar na existência em amplos círculos da opinião pública cultivada de uma expectativa em relação a que a televisão ofereça não só máximas de comportamento como estas, mas também desenvolva valores e padrões normativos que serviriam de referencial para todas as críticas, avaliações e enquadramentos. Ou, para ser ainda mais contundente, algo também conhecido do senhor Becker a partir das discussões nas Escolas de Formação Popular: atribuir à televisão a tarefa de tornar o mundo melhor, mais belo, nobre e verdadeiro com o auxílio das oportunidades inacreditáveis que, ao que se afirma, se baseariam nesse veículo de comunicação de massa.
Becker --–– Eu diria que a chance principal desse veículo está em, quando corretamente utilizado, possibilitar o encontro com a realidade e não com a ilusão, e seu perigo maior está em possibilitar o encontro com a ilusão no lugar da realidade. Neste sentido, todos os programadores de televisão têm uma responsabilidade decisiva em não pedagogizar a televisão em razão de sua função formativa.
Adorno —-- Gostaria de acrescentar uma referência á estética. Não há dúvida que o importante é contrapor-se. na televisão, à ideologização da vida, e eu seria o último a amainar esta exigência que o senhor expressou. Ao contrário, eu até mesmo a radicalizaria. Mas em relação a esta questão, deveríamos nos precaver do equivoco segundo o qual o que designamos como consciência da realidade precisa ser apresentado necessariamente com os meios de um realismo artístico. Justamente porque o mundo desta televisão é uma espécie de pseudorealismo, porque até mesmo o último detalhe da televisão é perfeito, e o público reclamaria se em qualquer instrumento técnico algo não fosse exatamente perfeito, provavelmente por isto no veículo televisivo a possibilidade de despertar a consciência da realidade vincula-se em grande parte à desistência em reproduzir mais uma vez a realidade superficial cotidiana visível em que vivemos. O embuste a que há pouco nos referimos consiste precisamente em que esta harmonização da vida e esta deformação da vida são imperceptíveis para as pessoas, porque acontecem nos bastidores. Uso o termo ‘bastidores’ num sentido amplo. Eles são tão perfeitos, tão realistas, que o contrabando ideológico se realiza sem ser percebido, de modo que as pessoas absorvem a harmonização oferecida sem ao menos se dar conta do que lhes acontece. Talvez até mesmo acreditem estar se comportando de um modo realista. E justamente aqui é necessário resistir.
Becker –– Isto afeta até o mundo da propaganda. Nós temos um tipo de propaganda que em seu primeiro plano é totalmente realista, e eu me convenci inteiramente quando recentemente li que a UNESC~ sugeriu a uma empresa telefônica, que solicitou a ela um pequeno filme de propaganda, apresentar uma senhora bem vestida com um carneiro nos braços, dizendo "este carneiro é um telefone", para deste modo fazer propaganda do telefone. Precisamente o contrário daquilo que o senhor quis dizer com o seu realismo.
Kadelbach ––Assim avançamos de modo decisivo, alcançando a possibilidade de distanciamento em relação a este veículo de comunicação de massa, e basta o simples tamanho da tela para tornar impossível apresentar de maneira realista uma cópia da vida.
Adorno ---- Só que não se toma proveito suficiente deste fato.
Becker -––Muito pouco!
Kadelbach –– Creio que foi Cocteau quem lembrou que rastros na neve e uma folha que cai podem contar uma história. É preciso justamente atentar mais para esta utilização de símbolos com distanciamento, cujo aprendizado, aliás, também seria importante para os produtores e para os espectadores.
Becker —- Poderíamos investigar muito mais a fundo tudo isso se dispuséssemos de um controle mais intensivo da transmissão por meio de pesquisas especificas. É digno de nota que na Alemanha, por exemplo, se façam pesquisas para descobrir se as pessoas gostaram do programa, o que pessoal-mente considero relativamente desinteressante. Por outro lado, consideraria muito interessante se existissem pesquisas que acompanhassem durante anos toda uma série de programas, que investigassem sociologicamente os efeitos dessas programações sobre determinados grupos de pessoas. Creio que uma tal "pesquisa de controle" de longo prazo poderia servir para se aprender com mais precisão o que a televisão afinal promove ou o que ela provoca.
Adorno –– Em relação a este problema, a investigação sociológica empírica se encontra numa situação bem difícil. Pois até hoje, utilizando seus procedimentos mais sofisticados, ela conseguiu descobrir relativamente pouco acerca deste assunto. Provavelmente isto se deve a que justamente os processos profundos aos quais também o senhor Becker se referiu há pouco ocorrem de um modo tal que são dificilmente apreensíveis como efeitos de programas individuais ou senados, mesmo usando os métodos mais aprimorados. É difícil assegurar-se daquilo que como processo inconsciente constitui propriamente o contra-senso.
Becker –– Senhor Adorno, penso que o senhor mesmo, juntamente com Pollock e Horkheimer, revelou em suas discussões de grupo que existem métodos que, além de qualquer investigação quantitativa, são apropriados para expor à pesquisa sociológica determinadas camadas do inconsciente das pessoas.
Adorno –– Sim, eu concordo. Entretanto penso que nesta questão não avançamos muito mediante os procedimentos usuais de questionários e nem com as mais sofisticadas pesquisas de opinião, mas que aqui o método mais plausível efetivamente é a content analysis (análise de conteúdo), ou seja, a análise dos próprios fenômenos, em que seria possível inferir mais ou menos o significado das conseqüências dos fenômenos para as pessoas, mesmo que este efeito não possa ser registrado. Nesta medida gostaria de chamar a atenção para que não se veja isoladamente a televisão, que constitui somente um momento no sistema conjunto da cultura de massa dirigista contemporânea orientada numa perspectiva industrial, a que as pessoas são permanentemente submetidas em qualquer revista, em qualquer banca de jornal, em incontáveis situações da vida, de modo que a modelagem conjunta da consciência e do inconsciente só pode ocorrer por intermédio da totalidade desses veículos de comunicação de massa. Sugiro efetivamente começar detendo-se na configuração do material e na sua integração, para exercer a crítica a partir deste ponto, sem confiar em que, com os métodos positivistas usuais seja possível registrar essas coisas, sem confiar em que isto atue sobre as pessoas efetivamente hic et nunc(aqui e agora) diretamente como se poderia supor a partir da análise deste material. Contudo, esses talvez sejam detalhes acerca das técnicas de investigação que podem ser deixados de lado aqui. Mas um ponto é fundamental: o fato de não podermos demonstrar com precisão como essas coisas funcionam naturalmente não significa uma contraprova desse efeito, mas apenas que ele funciona de modo imperceptível, muito mais sutil e refinado, sendo por isto provavelmente muito mais danoso.
Becker ---- Além disto creio mesmo assim ser necessário atribuir um plano muito maior a esta pesquisa, apesar de todas as dificuldades. Seria preciso esclarecer também o que, no efeito relatado da televisão, falta em especial entre nós, por exemplo, revistas que introduzam mais objetivamente à programação, possibilitando ao espectador uma opção de escolha muito mais consistente e, principalmente, uma programação fundamentada com muito mais força nos possíveis efeitos que provoca e assim por diante. Tudo isto pressupõe uma pesquisa orientada justamente para estes problemas, tomando-se apenas o cuidado de evitar respostas padronizadas. Mas a pesquisa é necessária de um modo totalmente diferente, porque numa instituição de formação — o que aliás se aplica ao conjunto de toda a formação de adultos que não é centrada em exames — os resultados são controlados somente por meio de uma investigação científica. Na ausência de controle, toda a instituição poderia se perder, por assim dizer, em suas próprias ilusões. Portanto, insisto na necessidade desse tipo de pesquisa, tanto para os resultados do trabalho das Escolas de Formação Popular, quanto para os efeitos da televisão.
Kadelbach –– Talvez haja um campo em que isto possa ser praticado em breve. Existem preparativos para a introdução de uma televisão educativa, e uma série de classes, incluindo seus professores, foi interrogada detalhadamente a esse respeito. No início de nossa discussão, o senhor Becker afirmava que muitos professores temiam que a esfera íntima da educação pudesse ser perturbada pela invasão da sala de aula pela televisão. Talvez justamente aqui se localize uma base para desenvolver critérios e métodos que poderiam depois se tornar exemplares para casos semelhantes e subseqüentes.
Becker –– Também penso assim. Creio que, obviamente, a televisão educativa precisa se subordinar a condições especiais. Os resultados de pesquisa que se tem em mente ao se examinar a televisão educativa neste sentido mais detidamente, não possibilitam uma transferência automática para outros âmbitos. Isto pode ser concluído já a partir do fato de que a televisão educativa se inclui em moldes inteiramente diferentes em uma instituição fechada. Pessoalmente considero a tevê educativa como um meio de formação que deveria ser introduzido na escola, precisamente porque oferece a possibilidade de incluir na escola de modo estimulante um ensino particularmente qualificado.
Nos Estados Unidos acompanhei algumas dessas experiências de televisão educativa e, ao contrário do que imaginava anteriormente, ou seja, que seria muito difícil transmitir a intensidade de uma boa aula através da televisão, o que ocorre é que a aula, naturalmente muito melhor preparada e muito mais cuidadosamente executada para ser televisiva, tem um grande poder de atração, provocando assim o risco de que os alunos poderiam a seguir se entediar com as aulas normais. Por outro lado, é preciso deixar bem claro que a suposição de economizar professores na escola tradicional por meio da televisão é incorreta. Um ensino através da televisão evidentemente só funciona de modo correto quando um professor presente à transmissão discute e explica o que foi apresentado. Além disso, penso que numa época de perda de qualidade, a televisão representa a oportunidade de uma multiplicação da qualidade pela ampliação constante da formação cultural. De um certo modo é difícil deixar de lado esta possibilidade, porque ainda não formamos um contingente suficiente de pessoas qualificadas para corresponder às demandas numericamente crescentes sobre o sistema formativo educacional. Evidentemente, a televisão educativa tem a vantagem do controle imediato. Nos Estados Unidos isto é feito ao se reunir os professores que acompanham essas aulas num âmbito maior em intervalos regulares com o "professor televisivo". Nessa ocasião ocorre uma crítica bastante forte ao programa especifico, que evidentemente precisa provocar efeitos positivos sobre a programação subseqüente. Penso que isto serve também para uma conclusão importante sobre a televisão em geral: que tanto a crítica como a repetição representam uma oportunidade muito grande da televisão. Até agora, com um programa nós imaginávamos que a repetição seria algo problemático. Agora constatamos que, por exemplo, um ótimo curso de formação de professores de Física dotado de experimentos excelentes pode tranqüilamente ser repetido após um ano. Ele não se tornou pior por causa disto e encontra muitos novos interessados. Contudo, isso pressupõe toda uma nova organização de programação em face da existente até então, apontando, inclusive, para além da televisão educativa, a pergunta relativa a se vale a pena ter determinados programas de formação na televisão.
Adorno –– Gostaria de ainda acrescentar algo à questão da televisão educativa. A questão levantada aqui é muito complexa. De um lado, o chamado imediatismo do ensino, aquilo que se denomina de "situação de transferência" entre o professor e os alunos. Por outro, a possibilidade de um ensino técnica e qualitativamente muito aperfeiçoado mediante uma televisão centralizada. Questões como essa, em que os prós e contras dificilmente podem ser avaliados pela mera reflexão, constituem o caso ideal daquilo que pode ser decidido mediante a investigação empírica. Seria bastante fácil imaginar uma situação experimental em que a mesma matéria, Física, por exemplo, é transmitida a um grupo de crianças por meio de bons professores na sala de aula, e a seguir oferecida pela televisão educativa. Seria preciso investigar em qual desses cursos as crianças aprenderam mais, entrevistando na seqüência as crianças e comparando-se os resultados. Coisas assim podem ser medidas com métodos investigativos precisos. Em outras palavras: o lado informativo da televisão, que nos parece ser o mais produtivo, é simultaneamente aquele que se expõe mais facilmente às modernas metodologias de pesquisa, possibilitando efetivamente decidir entre o que apresenta de bom e de ruim. Com base nos resultados seria possível inclusive introduzir aperfeiçoamentos específicos ou soluções intermediárias, combinações e toda uma gama de opções desse tipo. Porém interrompi o senhor Becker justamente quando queria referir-se a um problema muito relevante e igualmente difícil, ou seja, as programações orientadas para grupos específicos e a televisão formativa.
Becker –– Eu pretendia abordar a questão do sentido de produzir determinados programas formativos, ou seja, a concepção do "terceiro programa" nos termos da televisão. Considero muito perigoso concentrar a concepção de formação cultural em um programa, liberando, por assim dizer, os outros programas da responsabilidade pela função formativa da televisão. Isto deve ser evitado. Embora na programação televisiva vigente sejam levados em conta os problemas específicos que se apresentam, por exemplo, na formação de adultos, sempre quando acontece uma manifestação dessa ordem num programa especifico, os efeitos poderiam muito bem influenciar a programação televisiva como um todo. Acho que foi Klaus von Bismarck quem introduziu a expressão programa para minorias qualificadas". Em minha opinião elas não constituem uma minoria qualificada única, mas sim minorias qualificadas conforme a estrutura do programa.
Kadelbach —-- Aqui é necessário perguntar: quem qualifica as minorias que se consideram qualificadas?
Becker –– Ao que tudo indica, elas se qualificam a si mesmas, por exemplo, na medida em que se dispõem a aprender russo pela tevê, ou então assistir a uma exposição de Hellmut Becker e Theodor Adorno.
Adorno –– O problema que o senhor abordou é efetivamente central, e a partir dele é possível aprender algo das contradições em nossa sociedade. Aliás, isto vale não só para a tevê, mas também para o rádio, por exemplo para programas musicais, para tudo o que se relaciona a essa "terceira programação" das rádios. Trata-se de uma questão que conheço bem sobretudo no que se refere à música moderna. Neste caso, o que expus em contextos de sociologia da música, que nada tem a ver com esta nossa discussão, por meio dessa especialização de programas ocorre um reforçarnento da "neutralização da cultura". Ou seja, justamente o que é novo, o que é avançado, o que é espiritual passa a ser desvalorizado e marcado como questão para "especialistas" — termo que permite evitar a horrorosa expressão "gostos refinados". Mas do outro lado encontra-se a pressão plebiscitária de incontáveis ouvintes e espectadores, cuja única preocupação está em não serem subestimados, pressão tão forte que acaba eliminando as coisas mais importantes da programação. A antinomia social consiste precisamente na enorme distância entre a qualidade intelectual, de um lado, e as demandas dos consumidores, por sua vez já manipuladas, por outro. Se eu fosse diretor de programação, começaria a ter noites de insônia. Como felizmente sou apenas um pensador teórico diria que é necessário tentar ambas as coisas: por um lado, é preciso dar abrigo na televisão às coisas que não correspondem aos interesses do grande público, como os programas qualificados para minorias. Estes, contudo, não devem ser hermeticamente fechados, mas, mediante uma política de programação inteligente e conseqüente, precisam ser levados ao contato das outras pessoas, no que provavelmente o meio do choque, o meio da ruptura será mais produtivo do que o gradualismo, embora também nesta questão haja a "formação da tradição". Lembro nesta oportunidade o que aconteceu no plano da música: Hübner desenvolveu em Hamburgo, já há muito tempo, um determinado programa com música de qualidade exponencial, a "nova obra". Com um planejamento conseqüente de longo prazo, gradualmente se formou um grande público para os concertos, inclusive freqüentando o auditório da Rádio de Hamburgo. Penso que seria possível desenvolver algo semelhante no âmbito da televisão, inclusive porque no plano visual as resistências são menores que no plano musical. Seria preciso estabelecer um planejamento comum adequado entre os setores que se encarregam da programação para as minorias qualificadas e os responsáveis pela programação para o grande público, discutindo os problemas, inclusive sociológicos, que se apresentam neste plano. Quem sabe com programações orientadas por esta via poderíamos até abrir uma brecha na barreira do conformismo.
Becker -–– E justamente nesta questão seria decisivo ocupar-se do problema relativo ao que acontece com as pessoas depois de assistirem aos programas. O que acabei de relatar no caso das aldeias perto de Paris repetir-se-ia agora num plano totalmente diverso, não necessariamente nos termos da recepção comunitária, mas talvez sob a forma do encontro de grupos que levam em frente as coisas que apreenderam com a televisão, na medida em que uma das experiências fundamentais da formação de adultos consiste em que a integração só ocorre a partir de uma tomada de posição própria. Na medida em que não se apresente um espaço organizatório próprio para esse posicionamento individual, há o risco de que as coisas também não sejam absorvidas nem mesmo entre as minorias qualificadas.
Kadelbach –– Por tal perspectiva fica claro que pessoas e grupos das Escolas de Formação Popular se coloquem à disposição dos produtores da programação televisiva para que as matérias veiculadas na tevê sejam aprofundadas, meditando a seu respeito, interiorizando-as e interagindo com as mesmas, para não permanecerem meras declamações vazias, possibilitando ao menos, em seus termos iniciais, o que se chama de formação cultural.
Adorno –– Para terminar, sem parecer imodesto e por mais parcial que isto seja, gostaria de apresentar algumas conclusões desta conversa.
O veículo técnico da televisão é novo. Mas os atuais conteúdos, procedimentos e tudo o que se relaciona aos mesmos ainda são mais ou menos tradicionais.
Pelo prisma do veículo de comunicação de massa a tarefa que se coloca seria encontrar conteúdos e produzir programas apropriados em seu conteúdo para este veículo, e não impostos ao mesmo a partir de seu exterior. Esta talvez seja a grande contribuição de nosso debate: tudo o que elaboramos positivamente — o significado do elemento informativo e documentário, a importância da montagem e do distanciamento frente ao realismo, a importância de uma interação entre pesquisa e produção, o rompimento de toda a esfera íntima da escola e por fim a interação entre programas especiais e programação geral —, que são inovações que parecem estar em conformidade com a configuração social e tecnológica específica deste veículo de comunicação de massa, e que todos parecem se opor a tentativas de copiar ou divulgar em sua forma ou em seu conteúdo quaisquer bens culturais tradicionais por meio da televisão. Nestes termos apresentaria uma espécie de cânone ou linha de orientação para o que deveria ser o rumo da televisão, para que ela represente um avanço e não um retrocesso do conceito de formação cultural.
Becker — Isto precisa se refletir também na organização, nos grupos de controle e de programação da televisão, cujos produtores precisam tematizar as questões a que o senhor se referiu. Na medida em que isto ocorrer, será possível uma televisão no sentido delineado pelo senhor.
Tradução:
Wolfgang Leo Maar
Texto retirado e conforme o da página Debates